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DISCURSO DE POSSE - ISRAEL DIAS NOVAES (28/06/1983)
Acadêmico: Israel Dias Novaes

Sr. Presidente, minhas Senhoras, meus Senhores.
Srs. Acadêmicos


Recebeis neste momento, nesta Casa, por decisão própria e intransferível, alguém que ousou colocar seu sonho tão longe. Acolheis no vosso meio, abrindo-lhe generosamente as portas desta altíssima instituição, um homem de demorado empenho cultural, que contudo não o exercita no terreno aparentemente escolhido pelas academias de letras. Venho do jornal e venho da política, ambos, mercê de Deus, trabalhados com desprendimento e grandeza. Sabeis que a vida pública e a imprensa, paixões de uma existência, que se completam para defini-la, também integram, à sua maneira, o universo intelectual. Não constituísse o jornal, na realejada definição, o livro sem fim...
Relembro o grupo de amigos a sugerir-me a postulação, no momento em que a campanha eleitoral fervia na praça.
- Como, agora? O tempo da frase foi o mesmo da hesitação. Na política se sabe, e como, do risco sempre fatal de disputas concomitantes: a gula, a sofreguidão, costuma pôr todas as perder.
Mas eu vinha de sucessivas vitórias eleitorais e de dois malogros acadêmicos. Se conhecia o meio e o modo que levam à deputação, ignorava, comprovadamente, a rota da imortalidade.
Pois informo-vos, Senhores, que por mais de um mês suspendi o galope eleitoral; cancelei comícios e concentrações; adiei viagens assentadas; interrompi entendimentos e alianças para voltar-me, exclusivo, para essa outra justa, diversa e mesmo contrastante e que tem como prêmio não a precária cadeira parlamentar tantas vezes alcançada, mas a outra, a acadêmica, mais do que vitalícia, porque imortal. Devo asseverar que essa trégua na áspera jornada valeu como uma benção. Voltei as costas a um conturbado mundo, de infindas refregas, fremente mundo de impiedosa e dura competição – para ingressar num território de sutil manejo exploratório. Asseguro, a quantos almejam, às escâncaras ou em segredo, o galardão acadêmico, tratar-se de algo muito exigente: o jogo que impõe, de normas próprias e específicas, desafia experiências e testa sagacidades. Por isso advertia-me, consolador, um acadêmico veterano, quando do meu segundo tropeço na investida para o troféu:
- A Academia precisa ser cortejada, meu caro. Ela não se entrega de pronto...
Deduzo hoje que tentei sentar-me em cadeiras erradas. Só esta, a de número 3, poderia servir-me. Ensaiei nas anteriores para finalmente galgá-la.
Por quê?
Por uma série de razões, entre as quais sobreleva a da singularidade tanto de seu patrono, com de seu fundador e dos cinco titulares sucessivos. Bem examinados, afirmam-se todos como homens de ação, quatro deles de decidido impulso político. O fundador, mesmo, não da cadeira, mas da própria Academia, parecia haver reservado vaga a um avareense, cujo provimento já devia enervá-lo pela demora...
Joaquim José de Carvalho, o doutor J. J., proclamemo-lo mais uma vez, veio de Avaré, onde clinicara algum tempo, com o fito desde logo patenteado de fundar uma academia literária. Médico ilustre e dedicado beletrista. Coincidimos apenas na procedência: se também cheguei de Avaré, só a bondade poderia classificar-me como beletrista e no assunto clínico figuro apenas como paciente, sem entusiasmo nem assiduidade. Não esperou J. J. dois anos de São Paulo para compor o quadro inaugural do sodalício mentalizado. Arribara à capital já cinquentão. Tinha pressa: propôs à imortalidade intelectuais do seu círculo pessoal, título que, pela própria insuficiência, fez acenderem-se agravos e protestos, o que propiciou a revelação do brio polêmico do médico humanista. Que vigoroso escritor! Mas J. J. caiu em si, o que, no dizer de Machado de Assis dói menos do que a queda de um quarto andar, e logo se esmerou na elaboração de um elenco de paulistas já auto-imortalizados pela obra e a atividade cultural. Pouco tempo sobreviveu J. J. à instituição. Apenas o suficiente para vê-la consolidada no seu papel de pouso de imortais.
Curiosamente, à sombra de um misantropo, esquivo como se impõe na espécie, Matias Aires, o clássico reflexivo da Vaidade dos Homens, viriam a se abrigar homens dinâmicos, audazes, afirmativos, quando não polêmicos e questionadores. Lastime-se que o primeiro deles e dos melhores de todos os tempos no Brasil, Luiz Pereira Barreto, só nos últimos anos tenha começado a ressurgir na informação e no reconhecimento gerais. Cheguei tarde para conhecê-lo, mas antes mesmo da tese magistral de Roque Spencer Maciel de Barros, que o devolve, íntegro, a nossos dias, tinha dele notícia amiudada, através de contemporâneos inclusive da mocidade em Rezende. Nome de cidade, de praça paulistana e de centro acadêmico, somente agora se ressabe que o homem viveu oitenta e três anos infatigáveis, bravios, intimoratos. Positivista ortodoxo de início, a heterodoxia valeu-lhe a expulsão do paraíso comtista; pedagogo obstinado, disposto a fazer da própria existência um exemplo, desvendou áreas agrícolas, ensinou o rumo da Mogiana para o café, desafiou a monocultura, sustentou a inconveniência da imigração asiática, deblaterou, questionou, ofendeu; seus decênios de vida traduziram-se em centenas de polêmicas, nas quais com frequência se desmandou, como com Eduardo Prado, que, atarantado por tamanha agressividade, decidiu pedir à Justiça que chamasse às falas o áspero contendor. Por essa formação combatente, mas sobretudo pelo vigor de sua Inteligência, densidade cultural e acrisolado patriotismo, alçou-se Luiz Pereira Barreto à vanguarda dos brasileiros de sempre. Comovo restabelecer, hoje, a saga desse cientista, em permanente luta por ideias de cunho profético e sobre as quais não admitia contestação. Marca-se sua trajetória, ainda, por dois episódios declaradamente políticos: candidatou-se a deputado estadual em 1889, em vão, para dois anos depois eleger-se e empossar-se no mesmo posto, o que lhe valeu a presidência da Assembleia Constituinte e do Senado Estadual. O segundo deu-se no fim da vida, quando a mocidade acadêmica lhe impôs a candidatura ao Senado. Queria-o mais como bandeira de renovação política. O velho! Sua hostilidade à “barbarização germânica” emprestava-lhe características de campeão da latinidade. Do lado oposto, montado na engrenagem do situacionismo, desafiava-o o cônego Valois de Castro, germanista declarado. No instante em que o duelo se armava, surgiu na liça um cavaleiro de bravura medieval, a atrair para si as iras do PRP. Moço desabusado, notório em São Paulo por uma guerrilha cívica quase individual, alimentada com os recursos de um talento satírico de requintada linhagem, chamava-se Moacir de Toledo Piza e procurava a tragédia. Especialista em causas tão generosas quão inviáveis, tomava o partido de homens como Pereira Barreto e Amadeu Amaral contra os donos da vida. É certo que, menos do que a vitória, interessava-o a campanha, na qual ele se acomodava como em casa. Barreto perdeu, mas emergiu engrandecido da derrota, enquanto a causa da implantação democrática se assegurava preciosos pontos, e o contendor levava para o Senado um diploma amassado e ilegível.
Barreto morreu em 1923, no dia preciso dos seus 83 anos, 12 de janeiro. Para a vaga foi a Academia buscar no Rio, onde passara a residir, um escritor, jornalista, advogado e homem público dos mais reputados da época, Alfredo Gustavo Pujol. Para se aquilatar o grau de coincidências que distingue esta cadeira de número 3, assinalemos que três dos seus futuros ocupantes tiveram, a certa altura, curiosíssimo encontro. Alfredo Pujol, secretário do Interior, designava, em 1896, comissão para elaborar o plano de uma Escola de Medicina, já vãmente tentado cinco anos antes. Compunham esse organismo, presidido por Alfredo Pujol, nada menos do que mais dois futuros ocupantes precisamente desta cadeira número 3, seu antecessor Pereira Barreto e seu sucessor Franco da Rocha!
Homem de ação por excelência, Alfredo Pujol, notável advogado criminal, notabilizara-se nas campanhas pela Abolição e a República. Deputado federal (1900-1902) após ter desempenhado funções executivas, desentendeu-se nesse último ano com o presidente Campos Sales, o que o levou à renúncia. Conduzido ao Congresso Estadual, neste se assinalou pela oposição sem tréguas a esse mesmo governo.
Orador de voo desenvolto, talvez por mero deleite aceitou convites para proferir conferências literárias, usuais na época. A mais séria delas constitui um curso, dado na Sociedade de Cultura Artística, em sete palestras ao longo de mais de um ano, sobre a vida e a obra de Machado de Assis. Instalado em 29 de novembro de 1915, encerrou-se o curso a 16 de março de 1917. O êxito das palestras ganhou ressonância nacional quando reunidas em livro. Na verdade, significa esse trabalho de Alfredo Pujol, redigido em estilo límpido e elegante, o primeiro estudo sistemático da obra de Machado de Assis, cuja cadeira na Academia Brasileira de Letras o escritor foi ocupar nesse mesmo ano de 1917.
Desaparecido Pujol em 1930, o implacável revezamento acadêmico foi buscar mais uma vez no meio científico uma personalidade exponencial: Franco da Rocha. De Francisco Franco da Rocha traçou seu dileto discípulo e amigo Pacheco e Silva comovido retrato de corpo inteiro. Psiquiatra e legista, seus criteriosos pareceres eram por ele defendidos, sempre que necessário, com discernimento e destemor. Inscreveu-se para sempre na Justiça brasileira sua resposta à crítica de certo magistrado inexperiente a um laudo de sua autoria. Esmiuçando o papel, revirando-o, ridicularizando-o, Franco da Rocha acabou por produzir um libelo candente, encimado por um título apropriado: “A Jurisprudência fóssil”. O polemista em Franco da Rocha aliás repontava a cada instante. Nada que o ferisse ou que fosse de sua discordância ficava sem resposta. E que resposta!
Espírito aberto, as inovações lhe provocavam permanente interesse. A psiquiatria transcultural e a psicanálise ilustram a tese à perfeição. Nós, os homens públicos, ainda hoje nos valemos do eminente paulista para compreender a natureza, o espírito e a finalidade de certas instituições, como a do “boato”, moléstia de muito grassar no meio, e que dele mereceu alentado estudo em profundidade; o curandeirismo, a superstição.
Quanto à psicanálise, assegura seu dedicado biógrafo tê-la introduzido ele no Brasil, embora não fosse um ortodoxo e fizesse muitas restrições à doutrina de Freud. Escritor fluente e erudito, a aridez da obra científica na sua pena ganha elegância literária, como se lê no “Pansexualismo de Freud”.
Idealizador, fundador e diretor do Hospital do Juqueri, na cidade que hoje ostenta o seu nome, eis aí o tributo devido a um cientista que soube ser um sábio e um homem de ação.
O titular seguinte da cadeira nº 3 ocupa-a por inteiro. Chega alto, moreno, calvo, os óculos a rebrilharem sobre uns olhos perquiridores. Ao sentar-se, provoca a impressão de não ser uma pessoa apenas, mas muitas; cerca de 350. Ele mesmo não sabe bem a conta:
- Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta...
Chama-se Mário de Andrade. No registro civil, Mário Raul de Moraes Andrade. Esse eu conheci bem, de perto. Informada desse pormenor biográfico, muita gente, rapazes e moças sobretudo, mede-me de alto a baixo, incrédulos:
- Então, como era ele?
Fisicamente, era como ficou dito. Ainda hoje me espanta a generosa atenção daquele portentoso paulista para com o jovem repórter, ainda estremunhante da província.
Nos fins de 42, procurava Mário de Andrade na sua casa da rua Lopes Chaves, na Barra Funda, a diretoria de uma entidade acadêmica que dele recebeu concordância para repetir, na Faculdade de Direito, sua tão comentada conferência. “O Movimento Modernista”, dada no Rio, em comemoração ao 20º aniversário da Semana. A anuência de Mário resultaria em atroz desapontamento para os moços: no auditório, para ouvi-lo, apresentavam-se cinco jovens, a saber: o presidente da sessão, que ora vos fala, a seu lado, na mesa; à frente, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Rômulo Fonseca, Rui Afonso Machado, Brasil Bandecchi. Tranquilo, quase sorridente, leu Mário sua conferência para aquele escasso rol de admiradores, como se se dirigisse a uma sala repleta. No final, deixando conosco a faculdade, na garoa do largo de São Francisco comentou:
- Eu sei de tudo. Vocês andaram pelos jornais, mas nenhum anunciou nada. Vocês e eu não somos bem vistos pela ditadura.
A partir daí, aproximamo-nos de Mário, com o contido júbilo imaginável. Encontrávamo-lo às noites no bar Franciscano, com a assídua companhia de Luiz Saia, Fernando Góis, Mário Neme. Varávamos a madrugada, animados pelo chope e o “bauru”. Mário só não falava de si próprio ou de sua obra. Tinha o riso bom, na larga boca, para as anedotas piracicabanas de Mário Neme.
Uma noite, afinal, como lhe revelasse – ora, ora! – não haver ainda lido “Macunaíma”, marcou encontro para a tarde do dia seguinte e às 17 horas em ponto lá surgia ele, no “Juca Pato”, sobraçando todos os seus livros, cordialissimamente dedicados. Recordo-me de que só então observou:
- O “Macunaíma” eu quero que você leia logo e depois me conte. Os outros, não tem pressa.
Com o tempo, a conversa, deduzi que Mário de Andrade depositava nos universitários a sua maior esperança de restauração democrática. Amargava-se então o Estado Novo, paradoxal ante a nossa participação na guerra. Referia-se com frequência a Geraldo Vidigal, jovem “pracinha” que aqui deixara um conjunto de poemas maduro para o seu prefácio:
“Cantigas do rio abaixo,
Deixai que eu nunca vos cante...”

Mais tarde, muito mais tarde, haveria Antônio Cândido, seu sobrinho afim e amigo, de aludir, em “Teresina, etc.”, ao estímulo do escritor para os moços descontentes: “... para Mário atitude modelar era a dos rapazes combativos, como Carlos Lacerda no Rio e os líderes estudantis da Faculdade de Direito de São Paulo: Germinal Feijó, Israel Dias Novaes e outros que eram seus amigos”.
Certo domingo, vindo do Chile, tive como primeira notícia a da súbita morte do escritor:
“Pouco antes do meio-dia,
senti que vinha;
esperei.”

Velei-lhe o corpo pela noite a dentro, ouvindo relatos sobre a sua doença, o seu fim.
- No almoço, Mário ainda contou de sua última carta e do interesse em conhecer os poetas novos do Chile que você lhe anunciava...
Relevai-me, Senhores Acadêmicos, este parêntese pessoal. Sucede que as atenções de uma personalidade como a de Mário de Andrade, recolhidas naquele instante da vida, de muito valeriam. De certa forma, modelaram um destino, traduzindo-se num compromisso de seriedade e coerência. Ninguém passa impunemente pela figura de Mário de Andrade.




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