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Acadêmico: Benedicto Ferri de Barros Chega B. de Barros agora à nossa academia, no fastígio de suas realizações poéticas e coroando uma existência dedicada às letras.
Quero Maria que seja este meu livro maneiro como foi tua cintura em nosso primeiro encontro no Baile da Primavera. Era uma luminosa manhã de sábado. Em 1980. Os versos abriam o livro que eu recebera. Depois de lê-los, voltei à capa. Ali, além do debuxo, do vago esboço de um rosto e de um colo de mulher, havia somente o título do livro – Rapsódia de Ouro Preto e outros poemas – e o nome encapuçado do autor: B. de Barros. Era um nome anódino, insípido, inodoro, incolor. Um Barros, como são tantos, só indigitado pela inicial – que recordava o B. Lopes dos “Cromos”, da geração dos poetas perdida nos lustros iniciais do nosso século, esmagada no esvaziamento das fórmulas do Parnaso e do Simbolismo. Voltei à página onde iniciara a leitura do “Livro de Maria”. Eram somente trinta versos, quase sem pontuação. Mas que clareza cristalina! Que simplicidade sedutora! Que doçura, que delicadeza, que força lírica. E que nitidez, nas dicções; que precisão, já no tratamento das palavras, já no ajuste entre elas e a emoção que exprimiam; que musicalidade; que atitude desafiadora, no corte dos versos; que envolvente ondulação no ritmo! A estrofe que encerra o poema cantava, como ainda canta: Fique o poema na alma como na palma a cintura: maneiros um para o outro com esse encanto primeiro do nosso secreto encontro no baile da primavera e essa prisão perpétua do nosso último encontro na festa de formatura. Com essa pureza de fonte, os versos, no entanto, pareciam de um lado, maduros; de outro, traziam em si conotações de arrogância juvenil, como se, do alto de sua maturidade, o poeta reptasse quem lhe pretendesse exigir temas e motivos adultos. Folheei o volume. Seis páginas depois, enfrentou-me o poema que dá nome ao livro, a “Rapsódia de Ouro Preto”. É preciso dizer seus vinte e oito versos: O ouro já não se encontra mais à flor da terra em Ouro Preto. Eu sei. Vagueei a noite inteira pela praça imensa suspensa das ladeiras, Marília, não achei por entre a multidão de peregrinos uma pepita um grão sobre o lajedo uma faísca à luz inconvincente não vislumbrei Marília de Ouro Preto madeixas nas janelas. Em tempos idos, quando meninos e cabritos moravam nestes morros, as flores de Ouro Preto rolaram pelas serras deixando a sua ausência, Marília, a flor da terra oculta em grupiaras no seio de aluviões. Entretanto, Marília, nesta noite de ausência, sob a ponte de pedra, do mais fundo o riacho cantava o meu amor a flor da terra toda de Ouro Preto presente em teu barraco resplendor. A doçura, o cristalino, a delicadeza, a força lírica, a nitidez, a precisão, a musicalidade, a ondulação se repetiam. Mas aqui o poeta adulto assomava, senhor de si no jogo das alusões, no variado dos metros, na potência da voz que celebra já os mitos de Marília, já os fantasmas de Ouro Preto. Li, sem interromper-me, por duzentas páginas, os poemas do desconhecido B. de Barros: um livro de poeta másculo, senhor de si, senhor de sua emoção e de seus amores, agudo e incisivo em suas descrições, profundo e original em cada peça de reflexão, direto e capaz de atalhos, em cada manifestar-se do intuitivo que é. Às vezes, simplicidades, tão bem construídas como as do poema “Equipamento”: Não é a lira. É a lança. A gente é o instrumento que se atira Em direção ao infinito que se afasta. Às vezes, a invenção, de quem é capaz de incessantemente distinguir face ao nada, como em “Realizar-se”: … Diz-se da arte de cunhar a transcendência dada em projeto obsessivo vago e singular a cada um, na precisa conquilha quebradiça do aqui e agora, cedida por igual ao rei à mulher bela a qualquer um. Às vezes, a grandeza na contemplação de outros poetas. Às vezes, a capacidade de desdobrar-se e de voltear sobre seus temas, como em “A Estrada de Mato Dentro”. Às vezes, requinte e sofisticação do técnico em poesia, multiplicando soluções para o mesmo poema, como nas cinco variações da “Fuga”. E o poema final do livro, o “Poema”: O mútiplo sentido conforme o tom variado o ritmo segundo a alusão como num sonho uma mulher uma cascata um coração sangrando permutadas formas no protoplasma de um poema a mesma solidão. Eu tinha entre as mãos o livro de um grande poeta. Fazia muitos anos que não acontecia descobrir, num poeta novo, um vate. Voltei à capa. Nunca ouvira falar do poeta B. de Barros. Nunca vira assinatura sua sob poema, em jornal ou revista. Na página de rosto, sob a dedicatória, dirigida ao acadêmico Geraldo Vidigal, um telefone. Liguei, num impulso. Queria dizer ao poeta B. de Barros do prazer com que lia os poemas das Rapsódia de Ouro Preto. Foi então que B. cedeu lugar a Benedicto Ferri de Barros, contemporâneo meu, na Universidade de São Paulo – mas na Faculdade de Ciências Sociais, não nas arcadas do Largo São Francisco, que eu cursara. E soube então quem era, na vida quotidiana, o B.: um especialista em mercado de capitais, com quem eu nunca estivera pessoalmente, mas que já ouvira, num simpósio sobre investimentos. Um jornalista, muito presente na imprensa. Mas Ferri de Barros e B. de Barros eram duas pessoas inteiramente distintas. Como um novo poeta, que só então se corporificava, B. de Barros parecia um irmão mais moço – embora apenas pelo tardio do instante em que confessava, com a publicação da sua rapsódia, a afeição votada a musa da poesia lírica. Tal como sugere com a estrada de Mato Dentro, cantada por B., a vida se emaranha no novelo das voltas que faz. O poeta do Baile da Primavera, da festa de formatura, era o mesmo homem sisudo que por muitos anos ensinara técnicas e procedimentos nos meandros do mercado de valores mobiliários – destacando-se, nele, como um de seus mais respeitados consultores. Era seu o mesmo coração, quase de samurai, que, afeiçoado à história e às lendas do Japão, tornara-se, no Brasil, um intérprete das tradições do grande povo do Extremo Oriente. Era ele mesmo o herdeiro de agricultores, apaixonado pelas belezas e pelas virtualidades das nossas matas, dos nossos sertões, das amplas glebas cujas energias se represam no inexplorado, no desconhecido, no virginal; era o mesmo jornalista combativo e provocador, sempre disposto à liça, na imprensa, quando altos interesses nacionais ou temas culturais relevantes se colocam em pauta; era o empresário que, como um espadachim, se lançara à luta quando o Brasil mergulhava na recessão e nas incertezas do encerrar-se dos anos 70; era o mesmo grande poeta que, afinal, a Rapsódia de Ouro Preto revelava no esplendor de seus versos, no impulso criador de suas imagens, na vibração de seus ritmos, na maturidade de sua realização. Naquele momento em que B. Publicava a rapsódia, o acadêmico José Geraldo Nogueira Moutinho, Betty Vidigal e eu havíamos iniciado os preparativos para o lançamento da revista de poesias “Essência”. B. de Barros se incorporou ao grupo dos que fizeram nascer a revista, dando-lhe colaboração inestimável. Teve “Essência” vida brevíssima, como em regra acontece com as rosas. Mas, nos números publicados, a participação de B. foi espetacular. Em seus poemas, suas traduções, suas notas sobre a tradução, nos verbetes que recolheu, nas tarefas de recensão, organização, correspondência, registro, multiplicou-se B. nas muitas personalidades que para Benedicto Ferri de Barros a vida cunhou. Desde então, a palavra fraternal, o pensamento e muitas vezes a invenção de B. de Barros me têm feito companhia, aberto perspectivas novas, sugerido caminhos e soluções, como por exemplo vem acontecendo ao longo do último ano, na direção do Clube de Poesia. Chega B. de Barros agora à nossa academia, no fastígio de suas realizações poéticas e coroando uma existência dedicada às letras. Chega – ai de nós – para preencher o invencível vazio que nos deixou Maria de Lourdes Teixeira. A escritora, a romancista, a jornalista, a memorialista, viva em sua obra e em sua imortalidade acadêmica, já não aquece com sua presença as reuniões dos confrades. Sua partida fez esmaecer, também, a sobrevivência, entre nós, do notável homem de letras que foi José Geraldo Vieira: a imortalidade acadêmica do companheiro se potenciava no culto que lhe dedicou Maria de Lourdes. Resta o consolo de aconchegar, em nosso convívio, Rubens, o filho querido, que nos atos acadêmicos e nas letras prolonga a presença de Maria de Lourdes. É de celebrar-se, ao revés, que B. venha ocupar sua cadeira, entre nós, no ano de 1990, quando se celebram os quarenta e cinco anos desde que, em 1945, a publicação dos livros de poemas de Ledo Ivo, de Cabral de Melo Neto, de Domingos Carvalho da Silva e da minha predestinação desencadeara o momento poético que Domingos batizaria “Geração de 45”. Naquele ano, a vitória dos ideais de liberdade de dignidade do homem, na guerra mundial, repercutindo, em nosso país, em restauração da liberdade e da dignidade democráticas, fez prevalecer um sopro de liberdade literária e de dignidade no tratamento da palavra, que, como Fernando Whitaker assinalou, brotava da resistência democrática à ditadura na Universidade de São Paulo, onde Benedicto Ferri de Barros formou seu espírito. Herdeiro, a um tempo, da dignidade da tradição lírica da língua portuguesa e das aspirações de liberdade artística que inspiraram os demolidores de 1922, vem B., em 1990, com seus poemas e seu ingresso em nossa Academia Paulista de Letras, atestar a vitalidade do movimento poético de 1945, alongando trajetórias que se iniciaram nas obras de Péricles Eugênio, Cabral, Ledo, Domingos, Bueno de Rivera, Alphonsus de Guimarães Filho, Rangel Bandeira, José Paulo Moreira da Fonseca, Marcos Konder Reis, Darcy Damasceno, Artur Eduardo Benevides, Afrânio Zucolotto, Cyro Pimentel, Paulo Vanzolini, Idelma Ribeiro de Faria, Afonso Félix, Geraldo Pinto Rodrigues, Joaquim Nazário, Hilda Hilst e que prosseguiram, pujantes, em todo o Brasil – ao longo de extenso período que só ao do predomínio do romantismo pode comparar-se – nos trabalhos de centenas de poetas, entre os quais, somente a título de exemplo, em São Paulo, merecem menção José Geraldo Nogueira Moutinho, Milton Godoy Campos, Renata Pallottini, Samuel Penido, Betty Vidigal, Fúlvia Carvalho Lopes, Carlos Felipe Moisés, Antonio Fernando de Franceschi, Mariazinha Congílio, Sérgio Carvalho e, fora de São Paulo, reclama notícia Carlos Nejar, João Manuel Simões, Gerardo de Melo Mourão, Geir Campos, Marly de Oliveira, Gilberto Mendonça Teles – e tantos outros. Guarda B. a juventude de quem longamente escondeu do mundo os poemas que, hoje, lhe conferem imortalidade. É certo, por isso, que sua carreira literária apenas se inicia. Contos, ensaios, traduções, muitos outros poemas se contêm no acervo de cuja publicação é devedor. É preciso confiar em que Suzana, a musa de seus trabalhos literários, companheira de toda a vida, solidária na experiência do dia-a-dia, poderá, docemente, levá-lo a divulgar o que reteve. Nesta festa paulista que é a posse e um novo membro em nossa academia, cometerei a indiscrição de revelar um de seus mais belos poemas inéditos – canção celebrando o encanto da: Primavera no Pacaembu Não percam paulistanos no Pacaembu o Festival da Primavera deste ano. É grátis: Nas sebes as azaléias são galáxias de cores há primaveras movendo bandeirolas entre as flores-de-orquídea das bauínias. Pousados sobre as copas das sibipirunas - Em alacre amarelo sobre o verde - bandos de canarinhos balouçando à brisa atentas cabecinhas pretas, fingem ser flores. Neste ano, entretanto, quem diria? a festa é dos jacarandás que os rudes predadores dos parques, ruas e jardins da Prefeitura mutilaram: dos velhos galhos amputados jovens ramos, ébrios de luz teceram de infinitos panículos de flores uma corola em pálio de lilás cerúleo, como se a Primavera em desagravo baixasse à terra um bando de pintores para exaltar em flores o jacarandá. É o que louvam os sabiás tenores arautos matinais, cantores diuturnos das alamedas do Pacaembu: “Não percam paulistanos não percam O Festival da Primavera deste ano no Pacaembu. É grátis”. Meu caríssimo B., acadêmico Benedicto Ferri de Barros: a Academia Paulista de Letras é a sua casa. voltar |
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