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DISCURSO DE POSSE DO ACADÊMICO TOM ZÉ NA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, EM 17/11/2022
Acadêmico: Tom Zé
Tomei um susto, porque, indo tocar com uma pessoa, ela me disse: é muita honra. Mas eu não tenho honra nenhuma. Porém agora eu não posso mais fugir dessa palavra. Tenho muita honra por estar aqui.

Antigamente, ao tocar com músicos habituados à linguagem do pessoal do jazz, ouvia-se: é uma honra, e tal. Tomei um susto, porque, indo tocar com uma pessoa, ela me disse: é muita honra. Mas eu não tenho honra nenhuma. Porém agora eu não posso mais fugir dessa palavra. /tenho muita honra por estar aqui. E acho que tenho, sim, muita honra.

Bom, serei rápido;

Quero agradecer a José Renato Nalini e Gabriel Chalita, que representam a Academia. Foram os primeiros que eu conheci.

Agradeço a toda a Academia. Que Deus a abençoe.

E agradeço ao Júlio. Todos conhecem a atividade do Júlio Medaglia. Ele estudou na Europa, com Pierre Boulez, com Stockhausen. Lá ele compunha pequenas peças, para divertir a si próprio e aos músicos; eram valsinhas bem brasileiras, para os músicos alemães tocarem. Eles ficavam tão contentes! Era uma felicidade.

Júlio fez o arranjo de Tropicália, música de Caetano Veloso. Seu arranjo foi uma das coisas que carregaram a Tropicália nas costas. E ele apresenta, ou melhor, ele rege a orquestra de um programa de calouros de música clássica na televisão. Calouro de música clássica! Só há um programa assim no Brasil. Todos os candidatos selecionados vão... Outro dia estive com a Roberta Martinelli, a apresentadora. Júlio dirige a orquestra e a Roberta Martinelli apresenta o programa. Ela me contou que, ao procurar ex-candidatos, soube que atualmente todos moram na Europa.

E Júlio tem um programa na Rádio Cultura, Fim de Tarde. Esse programa merece ser comentado. Ele constrói enredos com tal tessitura...como se fosse um autor de teatro. Traz um artista, um compositor, tecendo a continuidade de tal modo que é como se você acompanhasse um enredo: para nós, ouvintes, é comovente. E traz achados curiosíssimos. Outro dia ele trouxe Marlene Dietrich cantando Luar do Sertão. Imagine aquele sotaque alemão cantando:
Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão...
A lua nasce por detrás da verde mata
Mas parece um sol de prata alumiando a escuridão...

Você imagina um sotaque de gringa cantando isso?

Bom, agora agradeço a José de Souza Martins.( Ele estava aqui, eu o vi.) E aqui também está Maria Adelaide Amaral, que me acompanhou até o palco. Foram eles as primeiras pessoas de quem fiquei próximo, na primeira vinda à Academia. Eles estavam conversando sobre o Brás dos anos 20 e 40. Eu me interessei tanto, fiquei numa felicidade, e pensei: Ah, é junto deste povo que eu vou ficar! Que beleza! Eu adoro essas histórias.

Na vez seguinte eu fiquei junto do historiador Jorge Caldeira. Ele me falou daquele tempo em que São Paulo foi invadida pelos abençoados italianos. E pelos nordestinos também. Ele destacou Juó Bananère, um cronista que pintava os canecos. Disse até que ele foi – imagine, dizer isso no meio de gente séria, vão dizer que estou inventando mentira – que ele foi o criador do Modernismo na escrita – ou coisa semelhante. (Eu estou falando bobagem?)

Olha, está aqui também o senhor Cássio Freitas. Seu Cássio, Deus lhe abençoe, sua filha trabalha conosco e ela sustenta este episódio todo. Ela merece metade desta medalha que eu estou recebendo aqui.

Ah, sim. Eu também sou um imigrante. Cheguei aqui vindo de uma Idade Média. Minha história não deixa de ter interesse, ela nasce na Idade Média. Gutenberg? Era zero à esquerda. Aristóteles? Acreditem, a gente tinha contato com Aristóteles quando entrava no curso primário. porque rua falava outra língua, que era produto da influência da invasão árabe na Península Ibérica no século VIII. O interior do Brasil espelha essa invasão árabe da Península Ibérica.

O poder estabelecido dizia, a respeito dos seguidores de Conselheiro, que estes moviam uma guerra contra a República. Imaginem!
Um autor a respeito de quem não quero deixar de falar aqui, além de Mário de Andrade, é Euclides da Cunha.
Em 1898, o jornal O Estado de São Paulo mandou Euclides cobrir a guerra de Canudos. Para esse lugar tão distante da chamada civilização urbana, começou a ir gente do mundo todo. Foi uma luta que despertou muito interesse: dizia-se que era uma guerra contra a Proclamação da República.

O Secretário de Segurança de Salvador, que sabia onde é que trabalhavam, naquele momento, os repórteres mais pertinentes, estava informado, inclusive, da vinda dessa pessoa de São Paulo (São Paulo, na época, era um fim de mundo...).

Todos esses jornalistas foram convidados a presenciar os depoimentos: “Olhe, nós pegamos uma criança de 12 anos, do grupo do Colnselheiro, e vamos interrogá-la.” Todos compareceram. Muito bem. À criança foi perguntado: “Mas por que vocês faziam isso?” Ela respondeu: “Para salvar a alma.” Todo mundo ficou na mesma.

Mas a moça, chamada Euclides da Cunha, caiu da cadeira. Então é uma coisa religiosa? Não é uma guerra contra a República? Pra salvar a alma?!
Porque mulher é assim: mulher entende muito mais do que nós, pobres homens. E Euclides escreveu todas aquelas histórias.

Aquilo que me fez...

Ora, Aristóteles tinha uma interpretação de universo que está semeada nas línguas proto-europeias. Principalmente o português, o francês... as outras eu não conheço bem... inglês, eu não sei direito, sou analfabeto.

Isso me diz o seguinte: ao tentar interpretar o universo, você não o interpreta a partir do que vê, nem do que o universo é. Você o interpreta segundo o contrato absolutamente falseado existente entre você e a língua que você fala. Então a língua que você fala prejudica sua inteligência. Um escritor -- não me lembro quem é -- diz: “Olhe, minha...” -- falarei aqui palavras simples” minha ciência não é a”... oh, que pena, o meu analfabetismo... eu tenho 86 anos, às vezes esqueço. Vamos adiante.

Bom, então, quando entrei na escola, tive uma inteligência semelhante à de Gil e de Caetano. Foi só daquela vez. No resto, eu dou aqui testemunho, eles são...eles não são moles. Eles têm uma cabeça de que o cão duvida. E eu estava ali. Eu estava lutando também naquele tal de Tropicalismo.

Mas, voltando: quando eu entrei na escola primária, compreendi que aquilo era outra língua. Eu disse a mim mesmo: olha, o professor tá falando -- eu não sabia que era Aristóteles -- mas o professor está falando de outra maneira. Eu posso entender, com a educação que recebi lá em casa, mas lá em casa não se fala assim.

Criança naquele tempo não falava com adulto, porque adulto não dava a ousadia de falar com criança. E mesmo eu tendo aquele golpe de inteligência, eu não sabia formular as questões. O que me aconteceu foi que passei três dias sentado numa escada... -- aqui wstá a cidade de Irará... -- existia uma escada que dava para a região pré-cabralina, para a mata pré-cabralina. Passei 3 dias lá, pensando: será que o mundo é assim? Como se fala lá na escola? Bom, é claro que eu voltei para escola e comecei a aprender tudo aristotelicamente.

Quando eu disse que o Tropicalismo... bom, vamos andar um pouco mais, vamos adiante.

Lá na escola, o tempo todo, estou jogando fora o que eu aprendi do mundo árabe, do mundo moçárabe, da educação que eu tivera, e que é uma visão de mundo muito interessante. Quando os árabes invadiram a Península Ibérica no século VIII, eles eram o povo mais inteligente do mundo; o resto da Europa estava dominado pelos bárbaros cristãos que derrubaram o Império Romano, derrubaram a França, e mais.

Muito bem, espere, eu não quero perder o fio da meada, porque eu não ia falar nada disso, estou encompridando demais. Eu já devia estar cantando.
Agora. uma coisa dolorosa que me aconteceu aqui: eu não ouvi... Júlio Medaglia falou 200 palavras, eu ouvi umas 3 ou 4. Imagine minha frustração!

Tania me disse um pouco do que ele fez, me disse resumidamente: ele deu muita importância a todos os meus passos na escola. É tudo o que eu sei, Júlio.
Ah sim, eu não falei de Jô Soares. Ora, minha gente, vocês sabem que eu estou ocupando a cadeira de Jô Soares. Uma grande pessoa no teatro, uma grande pessoa como escritor, um grande homem de televisão. Que criatura! Criador em todos os lugares em que se metia: ele sempre realizava algo que fazia bater o coração da gente. Deus abençoe esse lugar que eu estou ocupando, o lugar desse homem maravilhoso, que ninguém pode substituir.

Olhe, estou vendo fisionomias, algumas eu conheço. Eu não quero nem citar porque fica muito... muito... mas eu sinto muito carinho por essas pessoas que tomaram o trabalho de vir aqui, assistir um moleque como eu. Eu tenho 86 anos, mas toda vida fui tido como um moleque. Além de meus amigos, além de uma pessoa que me ajudou esse tempo todo, Mônica Monteiro. Já esteve até aqui em cima. Não posso deixar de falar na Mônica. E no marido dela que também é um grande camarada.

Bom, então, eu vou chamar a minha banda pra cantar duas músicas. Minha opinião era que deveria cantar aqui justamente as músicas mais esculhambadas. Neusa disse: “Não, na Academia? Você tem que apresentar uma coisa na qual você trabalhou com a cultura.” Eu vou obedecer porque Neusa sempre teve razão lá em casa, viu?




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