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DISCURSO DE RECEPÇÃO A DJAMILA RIBEIRO PELO ACADÊMICO LEANDRO KARNAL
Acadêmico: Djamila Ribeiro
"Decidi falar de quatro Djamilas em um poliedro possível. Toda escolha implica perdas. Fiz as minhas no caleidoscópio biográfico."

Excelentíssimo Senhor Presidente da Academia Paulista de Letras Doutor José Renato Nalini
Digníssimas Autoridades
Estimadas Confreiras e Estimados Confrades
Caras Convidadas e Caros Convidados
Querida Djamila

Custa-me, já à partida, controlar a emoção pelo dia histórico que vivemos. Que honra enorme receber o convite para saudar nossa mais recente empossada. Que alegria ser a pessoa a fazer a oração de recebimento da acadêmica Djamila Ribeiro. O teólogo deveria ficar mudo com a epifania da divindade. Eu, historiador, teria obrigação de calar-me nos dias em que a história acontece diante de mim. O convite feito – ainda bem! – obriga-me a falar.
O equinócio da primavera está anunciado para chegar daqui a três semanas. A Academia Paulista de Letras antecipou-se: hoje, neste prédio histórico, forçamos uma vanguarda esperançosa e florida. Aqui, damos posse à pessoa mais jovem da casa.
Caro Chalita: seu domínio como benjamim se encerrou! Desponta Djamila, anunciando que nossa querida entidade se reveste de ousadia e de renovação.
Quem é Djamila? Como explicar o furacão encarnado nela? De onde vem esta mulher que abre, com um misto de habilidade e de força, tantos espaços?
Decidi falar de quatro Djamilas em um poliedro possível. Toda escolha implica perdas. Fiz as minhas no caleidoscópio biográfico.
Há uma jovem de uma cidade mais antiga do que São Paulo: a Djamila santista. Firmem o olhar! Reparem: lá está a filha do ambiente do porto onde Joaquim José Ribeiro dos Santos, seu pai, trabalha. Um homem ligado à esquerda, conhecedor de dois mundos: a realidade presente do trabalhador das docas e o sonho futuro contido na palavra educação. Lá encontramos a mãe zelosa para que tudo siga no caminho da boa formação escolar: Dona Erani Benedita dos Santos, capaz de elaborar todo o apoio ao estudo dos filhos e ainda levantar pela gola um jovem agressor. Na Baixada o pai exige dedicação à escola, matricula os filhos em cursos de línguas, estimula que nossa acadêmica passe a dominar a nobre arte do xadrez. Entre uma abertura e um xeque, orienta-se estratégia, lógica e uma lição de vida. Djamila chega a ser medalhista em campeonato.
Sim, logo vemos que ela soube que era preciso dominar o centro do tabuleiro logo nos primeiros lances. Lançar cavalos, bispos no máximo alcance e fazer um roque defensivo. Dois aprendizados complexos do jogo: o foco é o rei, masculino e solene, mas frágil na movimentação. Uma casa de cada vez para a majestade lenta! A dama vale muito porque pode fazer tudo, até se entregar pela vitória. A majestade é masculina; o sacrifício, feminino.
A segunda lição complexa do jogo: as brancas sempre começam. Sempre! Porém, diga-se em defesa delas, no tabuleiro, as peças claras nunca invocam meritocracia quando vencem: são menos cínicas do que nós.
Na história enxadrística, as peças pretas precisam começar na retranca. A vitória é possível, com um acréscimo de dificuldade. Ah, o xadrez e as metáforas dos jogos de poder...
Nascida no nosso Brasil, misógino e racista, cedo nossa acadêmica descobriu que deveria ler mais, estudar mais e ter um desempenho irreprochável para vencer o jogo com regras masculinas e brancas. Percebe na escola o preconceito declarado ou velado, misturado à condescendência de professoras que, segundo o depoimento de Djamila, davam algum papel a ela se não houvesse nenhuma menina branca à altura. O jogo era complexo - com dores aqui e ali.
Há outra figura feminina fundamental para a primeira Djamila. Ela a consagra no livro Cartas para Minha Avó, depoimento maduro e tocante de grande poder. Ali emerge Dona Antônia Dias Bueno dos Santos, mulher de sabedoria intuitiva e aguda. Djamila afirma que herdou o olhar da avó para o mundo. As idas a Piracicaba formataram o caráter de nossa filósofa.
Vamos a uma etapa seguinte. A segunda Djamila: aluna aplicada com consciência de protagonismo. Eis nossa acadêmica estudando e perguntando, incomodada, por que tantos filósofos homens e tão poucas mulheres nas bibliografias. Solução: estudar uma mulher, Simone de Beauvoir. Com bolsa de iniciação e de mestrado pela Fapesp, Djamila encontra a originalidade da pensadora quase sempre tratada por alguns como... “a companheira de Sartre”.
Segue para o mestrado em Ciência Política. Burila-se a intelectual, que passa a produzir textos. A segunda Djamila é filha da primeira. Das ruas de Santos aos textos em francês, existe um abismo (uma Serra do Mar, uma muralha), porém há uma vontade determinada.
O Brasil tem muitos bons intelectuais negros. Fui aluno de Milton Santos na USP. Cresce, no século XXI, uma demanda nova. Não precisamos de mais gente falando ideias herméticas. Necessitamos de pessoas que analisem, com linguagem direta, problemas complexos. Nesse espaço, inseriu-se a intelectual pública: a terceira Djamila.
Exposta aos holofotes, publica obras de enorme sucesso: “O que é lugar de fala”, “Quem tem medo do feminismo negro” e “O pequeno manual antirracista”. Nas três obras, a coerência teórica, a enunciação de princípios claros e a linguagem voltada a um público maior. Djamila desejou e conseguiu falar com mais gente.
Penso, aqui, na primeira pessoa a encarnar o termo “intelectual” como o entendemos, Émile Zola. O francês foi um misto de alguém que pensa, que milita, que escreve o Germinal e, ao mesmo tempo, arrisca sua carreira ao defender o capitão Alfred Dreyfus.
Volto aos holofotes. Eu conheci Djamila na Rede Globo. Lá estávamos falando para mais gente, ocupando um espaço fundamental, dizendo coisas diretas. Se me é lícito lembrar, ao vê-la falar de forma tão eloquente, aproximei-me e pedi-lhe o casamento. Ela recusou, alegando já ser comprometida. Aceitei. Não guardei mágoa e segui em frente.
A terceira Djamila está na televisão e na internet. É filha da segunda e neta da primeira. Como Bauman e seu mundo líquido, ela associou-se ao conceito de lugar de fala. É bom porque é uma excelente ferramenta de análise. É ruim porque parece limitar a imensa quantidade de coisas inteligentes que ela fala a um único termo.
A terceira Djamila incomoda alguns. Claro: inteligência e sucesso são dolorosos. Aqui, cabe citar a ideia: uma mulher negra feliz é uma afronta, um desafio a todo o edifício social da nossa tradição.
Djamila está tornando a tarefa dos haters cada dia mais difícil. Os livros dela lideram vendas por muitos meses. Os prêmios? Quase demandam uma sala para serem guardados: seu Manual Antirracista ganhou o cobiçado Jabuti; a monarquia holandesa concedeu à santista o Prêmio Prince Claus. Foi laureada com o BET Awards e, por fim, declarada, pela BBC, uma das 100 mulheres mais influentes do mundo! Colunista fixa da Folha de São Paulo, presença frequente na mídia, convidada para falar no exterior a todo instante.
Não bastasse tudo isso, ainda abriu o Espaço Feminismos Plurais, em Moema, São Paulo, com amplos e densos projetos para discutir racismo, mulheres e inclusão social.
Uma escritora-editora criando espaços. Ela é jovem e já possui livros traduzidos em francês, italiano, espanhol e alemão. O seu “Lugar de Fala” está em tradução para o inglês pela prestigiosa Yale University Press.
Sim, quem não gosta da Djamila tem tarefa cada dia mais complicada! O brilho da nossa jovem acadêmica vai, sempre, atrair mariposas marinadas na dor e que não conseguem resistir ao esplendor alheio.
Aquilo que ela disse a um namorado possessivo em Santos pode ser ampliado hoje. Retomo o episódio no livro das “Cartas para minha avó”. O incauto rapaz insinuava que ela seria posse dele. Bem audível e firme, ela respondeu: “Quando foi que lhe deram a minha escritura, seu babaca?”. Djamila é dona de si, como toda filha de Oxóssi. Isso cria a ponte para a última faceta.
A quarta Djamila é um pouco menos conhecida do público. Aqui surge Djamila de Oxóssi, seu orixá de cabeça. Ela apresenta como juntó, a bela Iansã. Iniciada aos 8 anos de idade, depois um pouco distante da tradição e, por fim, reaproximada pelas mãos da amiga Flávia, hoje juíza de destaque, no terreiro de Mãe Ana de Ogum. Sob orientação de Pai Rodney, retoma o caminho de sua avó, benzedeira e fiel a tradições ancestrais.
Djamila foi católica praticante. Manteve, como me confessou, o encanto, o carinho pelo culto e por tantas boas iniciativas da Igreja. Porém, algo existia na sua busca de identidade que anelava coisas distintas. Djamila reencontrou o candomblé e reencontrou-se plenamente. No sagrado atávico, ela se tornou inteira.
Conheci o trabalho do terreiro de Mairiporã. Fiquei impressionado com o cuidado social e com o acolhimento à comunidade. O respeito ali dentro era notável. Pai Rodney adornava com flores uma imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, mostrando que as fronteiras são construções do poder e nunca dos corações. As crianças revestiam-se de alegria com os doces do dia de São Cosme e de São Damião (e de Doum). Música, comida, orações, respeito, alegria e muita gente feliz. Nunca me esquecerei daquele dia de candomblé quando, desajeitado e formal, prestei tributo à poderosa imagem de Exu à minha frente.
Nossa academia tem um carinho imenso pelo bispo Dom Fernando, uma unanimidade nesta casa. Agora, temos uma ebômi do candomblé para se juntar a ateus, católicos, judeus e agnósticos. Aqui se proclama que o diálogo é possível e que o ódio é coisa de gente insegura. Se fosse a peça “O Pagador de Promessas”, de Dias Gomes, esta casa hoje se identificaria com Zé do Burro, com Iansã e Santa Bárbara, para dizer que aceitamos a alteridade como elemento construtor do real. Pureza cultural ou racial?
No dia de hoje, primeiro de setembro, lembramos a trágica invasão da Polônia: início da Segunda Guerra Mundial, na Europa, há 83 anos. Quem promoveu a violência? Um grupo que acreditava em pureza cultural e racial. Bertold Brecht garantiu que “a cadela do fascismo está sempre no cio”. Sabemos disso como tragédia e como farsa.
Há 62 anos, uma escritora intuitiva e densa, Carolina de Jesus, lançou Quarto de Despejo. Carolina sequer conseguiu sonhar com este ambiente. Como aconteceu com Teresa de Benguela, a história tem um peso específico para cada época. Em meio a tantos desafios, o Brasil percebe seus talentos com Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves, Cristiane Sobral e tantas outras. Não se trata de destacar escritoras negras; simplesmente é hora de parar de ocultá-las.
Honro aqui a memória de Ruth Guimarães: poeta, contista, tradutora, capaz da beleza dos textos como o romance “Água Funda” e da coletânea “Contos Negros”. Além disso, quero evocar algo muito especial para mim: Ruth foi professora de língua portuguesa, na rede pública, por mais de três décadas. Ela foi empossada nesta casa aos 88 anos. Faleceu em 2014, ocupando a cadeira 22.
Como todas e todos sabem, a Academia Brasileira de Letras foi fundada por Machado de Assis. A Paulista, esta casa, já teve Mário de Andrade, ocupando a cadeira três. Ambos foram “branqueados” nos retratos e só recentemente conseguimos restaurar um pouco das suas faces afrodescendentes. O maior escritor brasileiro e o mais importante autor paulista viveram em outra época; também pagaram seus preços. Quando um amigo ambíguo, Oswald de Andrade, desejou atacar Mário, insultou-o com as duas coisas que mais poderiam feri-lo. Oswald disse que o autor de Macunaíma era uma “bonequinha de piche”. A intensa agressividade sobre a orientação sexual e racial mostra que, mesmo sob os mantos da modernidade criativa, alguns chegavam, no máximo, a criticar o formalismo parnasiano dos antigos moradores da Casa Grande, sem abandoná-la de fato.
Destacar autores negros não é criar uma lista a partir de uma moda “politicamente correta”: trata-se de retirar o véu histórico que ocultava uma imensa galeria de talentos. Então, querida Djamila, você não está nesta casa por alguma subjetiva “política de cotas”. Você está aqui pelo seu poder intelectual; porque, enfim, tenhamos nos dado conta de que era necessário interromper uma objetiva política de cotas estruturada há décadas, expondo um hábito tão histórico que se tornou invisível.
Hoje, testemunhando mais uma vitória sua, posso falar do orgulho do seu Joaquim e de Dona Erani. Erani, a mulher inteligente de “pés rachados e olhar triste”, hoje sorri satisfeita. A trajetória de seu Joaquim rumo à descoberta da ternura pode ter se completado agora. Dona Antônia, sábia, vê nesta noite o fruto de tantas rezas pela neta. A Djamila vitoriosa integra todo o seu histórico para uma nova conquista. O poliedro das quatro Djamilas brilha mais do que nunca. Uma filha de Oxóssi é solidária, com gosto refinado, conexão com a natureza viva e a astúcia de uma caçadora. Bem vinda, Djamila. Òkê Arô! Òkê Òsóòsi. Que seu poderoso ofá nos proteja sempre! Amém! Shalom! Axé! Muito obrigado!




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