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DISCURSO DE POSSE
Acadêmico: Antonio Ermírio de Moraes
"Que láureas terá um engenheiro para integrar uma academia de letras? Que títulos terá um pelejador da indústria para ombrear com os criadores de sonhos e fantasias? O engenheiro é seco, vai direto ao ponto, ama a linha reta e se às vezes admira uma parábola ou uma catenária é tão somente para desvendar-lhe a equação fria."

Senhor Presidente, Senhores Acadêmicos,
Senhoras e Senhores.

Que láureas terá um engenheiro para integrar uma academia de letras? Que títulos terá um pelejador da indústria para ombrear com os criadores de sonhos e fantasias? O engenheiro é seco, vai direto ao ponto, ama a linha reta e se às vezes admira uma parábola ou uma catenária é tão somente para desvendar-lhe a equação fria. O acadêmico de letras é artista, ama a parábola pela beleza da forma pela harmonia da curva e imediatamente põe-se a idear correlações insondáveis. O industrial é prático, exige resultados palpáveis que se possam medir, contar, pesar. O acadêmico é sonhador, produz o imponderável consubstanciado em uma frase terminando em reticência, em uma rima que mais que idéia produz som harmônico.
É verdade que um engenheiro, e militar, produziu a obra de maior fôlego da literatura social brasileira: Euclides da Cunha o fabuloso autor de "Os Sertões". Obra versátil que no livro da Terra demonstra vastíssimo conhecimento geológico, ciência quase exata, contrastando com o livro do Homem onde mostra uma extraordinária sensibilidade na apreciação sociológica, arte humanística, das populações sertanejas, para terminar com o livro da Luta, talvez a maior série de reportagens que o jornalismo brasileiro já produziu. Mas Euclides da Cunha é exceção e as exceções existem somente para confirmar as regras.
Permanece, então, essa singular combinação que tem a explicá-la, unicamente, o traço de união que é a bondade dos eleitores. Vim porque sua bondade o quis.
Assim, venho a esta Casa de mãos e alforje vazios confiado apenas em que persista a bondade que até aqui me trouxe, bondade que prometo retribuir no futuro quando, com mais vagar, puder levantar um pouco esse mágico véu que, entreaberto, procura sugerir sem nunca mostrar, o segredo da fantasia que espelha a realidade; contradição apenas aparente posto que existe.
Explicada a razão da minha recepção que sinceramente agradeço o passo seguinte é expor o meu entendimento sobre o que é uma Academia de Letras. De início rechaço a natureza corporativista. Não só porque abomino o corporativismo, seja de que segmento for, mas também porque um literato não pode ser um ente a parte sem estreitos laços com a sociedade que integra, da qual tira forças e para a qual produz suas obras. Literato sem sociedade é Anteu sem contacto com a Terra: vítima fácil de qualquer Hércules de ocasião. Também não é mero local de passatempo, de amenas conversas ou distração após a labuta do dia. É, isto sim, Casa de trabalho e de aperfeiçoamento. Não posso conceber uma Academia de Letras onde as correntes de estilo, de pensamento e de conteúdo não se digladiem mas sem se ferirem. Onde o constante vir-a-ser da sociedade e da vida não seja objeto de profunda reflexão e debates buscando soluções que possam ser ofertadas à nação, com fundamentos científicos por uns ou ainda que sob o ameno disfarce da ficção, por outros. A arte pelo amor da arte não tem mais lugar em um mundo que se debate em crises de todos os gêneros e espécies. Ainda que sob a aparência de um sonho, uma solução qualquer deve ser proposta. Afinal, muitos sonhos tornam-se realidade - e Deus nos livre se não fosse assim.
Exposto o meu pensamento sobre o assunto é tempo de passar em revista a existência da Academia Paulista de Letras.
Fundada em 27 de novembro de 1909 foi fruto suculento do idealismo do Dr. Joaquim José de Carvalho, médico, escritor e polemista de escol. Uma primeira tentativa, já em 1907, também encetada e pugnada pelo mesmo Dr. Joaquim José de Carvalho havia abortado por força de antagonismos e ferrenha oposição ao empreendimento. Ainda não tenho a exata compreensão do "por que" de tal antagonismo. O fato é que existia e matou a primeira iniciativa e por ocasião da fundação definitiva ainda existia e obrigou o fundador, Dr. Joaquim José de Carvalho a uma árdua porfia para sua defesa; não fora ele denodado polemista já experiente um pelejas travadas no Rio de Janeiro e em Curitiba. Após a fundação, porém, escasseiam registros fidedignos da vida acadêmica havendo apenas registros da polêmica travada pelos jornais e que comprovam que era ainda forte a animosidade contra a criação de uma associação do gênero. A falta de sede própria parece ter sido a causa da inexistência de melhor documentação. O que se tem deve-se ao esforço do acadêmico e secretário-geral René Thiollier que, com a criação da Revista, em 1937, nela publicou todo o acervo que conseguira reunir em peregrinação às residências dos vários acadêmicos. É pequeno o conhecimento desde pouco depois da fundação até 1929 quando tomou vida nova com Amadeu Amaral e Gomes Cardim e o auxílio inestimável de Ulisses Paranhos, um dos que, durante a década de retraimento da Academia, jamais deixou de nela crer e que, a expensas próprias, registrou-a em cartório no dia 28 de fevereiro de 1921. Doze anos após a sua fundação! Outro nome que não pode ficar no olvido ao se tratar do reerguimento da Academia, em 1929: Aristeu Seixas que, ao ter que se transferir para Buenos Aires, por volta de 1927, delegou a Gomes Cardim a tarefa de reerguê-la.
Durante todo esse tempo a Academia, mesmo sem sede própria, mostrava sua existência e sua pujança pelas suas múltiplas atividades: quer com presença amiudada na imprensa diária; quer recebendo convidados ilustres em salões como o do Automóvel Clube ou do Mappin; quer nas costumeiras caravanas literárias pelo interior do Estado e em outros; quer em solenidades oficiais federais e estaduais. Com altivez e pertinácia logrou afastar as inexplicáveis animosidades do seu início. Alcântara Machado, Altino Arantes, Gofredo Teixeira da Silva Telles e Aristeu Seixas foram condutores seguros dessa jornada.
Inicia-se, então, a fase de consolidação do prestígio conquistado e essa consolidação está simbolicamente representada pela construção da sede própria em terreno doado pelo Interventor Fernando Costa. O nome que avulta nesse difícil empreendimento é o do presidente honorário Gofredo Teixeira da Silva Telles que com sua experiência de muitos anos na tesouraria da instituição, sua capacidade na gerência de patrimônios públicos e particulares, levou a empreitada a bom termo.
Paro aqui esse esforço despretensioso porque entendo que as situações históricas devem ser apreciadas desde a perspectiva longa dos tempos. Nada melhor, para deturpar uma paisagem, que apreciá-la com o nariz colado ao muro. Só a distância oferece a visão do conjunto e ressalta detalhes e harmoniza diferenças. É hora de louvar a quem merece e neste momento o louvor é a Lycurgo de Castro Santos Filho, o ocupante da cadeira 23 a quem tenho a honra de suceder.
De início, uma afinidade: Dr. Lycurgo de Castro Santos Filho foi médico atuante e eu, por trinta e seis anos ininterruptos, tenho emprestado colaboração, na parte administrativa, a Hospitais que tenham ênfase no atendimento aos menos favorecidos. No início foi a Cruz Vermelha, depois a Cruz Verde e por fim a Beneficência Portuguesa.
Ao ser recebido nesta Casa o Dr. Lycurgo foi saudado pelo acadêmico José Carlos de Ataliba Nogueira que, pelo trato direto que com ele tinha não deixou, em sua oração, qualquer lacuna que se devesse ou pudesse preencher. Seria, portanto, uma reedição piorada se neste momento eu me abalançasse a refazer caminho já dantes palmilhado. Mas é tão significativa a sua obra, desse período pré-Academia, que se não resiste a uma vista d'olhos, ainda que rápida. Avultam dois verdadeiros tratados: a "História da medicina no Brasil", em dois volumes e "Uma comunidade rural do Brasil antigo". É curioso. Em um país onde tão pouca atenção se dá as condições de vida das grandes populações, quase todos - lembremos Euclides da Cunha e agora o Dr. Lycurgo - demonstram preocupações sociais e buscam interpretações sociológicas para os nossos males. Falta-nos, apenas, dinamizar as idéias. Não basta pensar, é necessário executar.
Voltando ao trabalho impar do Dr. Lycurgo, desde as primeiras páginas é forçoso admitir o extraordinário senso de observação e de identificação de particularidades que o distingue dos meros relatores circunstanciais. Já nos idos de 1947 o Dr. Lycurgo identificava no Brasil uma medicina própria que, embora não sendo centro de irradiação de doutrinas já não era, porém, mero importador, como já o fora, afirmando que "Em significativas partes da Medicina aqui já se pensa, já se pesquisa e já se pratica em termos próprios". Isto é uma verdade que hoje se patenteia quando se considera que o estudo sistemático da medicina, em Portugal, iniciou-se em 1.130, no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, fundado por D. Afonso Henrique e só 400 anos depois o Brasil seria descoberto. Mesmo com essa defasagem de meio século, é certo que hoje é francamente favorável ao Brasil o cotejo entre o estado de desenvolvimento das duas medicinas. O estilo do Dr. Lycurgo não é vazio ou floreado. Pelo contrário, trás densa carga de matéria útil. Os fatos observados e expostos não ficam só nisto. São elaborados e produzem conclusões lúcidas, pontos de partida de perquirições mais altas. Tudo em linguagem clara, sem afetações ou exibicionismo. A soma de informações, conhecimentos e conclusões verdadeiras, arroladas nesses dois volumes, é imensa. Muitos anos de pesquisa séria devem ter sido consumidos para a sua obtenção. Verdadeiramente a obra "História Geral da Medicina Brasileira" é impar e fascinante. É com relutância que se interrompe a sua leitura.
Nessa obra há um capítulo de 30 páginas onde expôs um minucioso estudo sobre a origem e evolução das Santas Casas de Misericórdia, indispensável para quem do assunto queira se esclarecer. Foi ainda mais longe em sua exaustiva pesquisa e remontou ao início do ensino médico em Portugal ocorrido, como já antes referido, em 1.130, no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e prosseguiu, a passo e par, o seu desenvolvimento lá e no Brasil até os dias da feitura da obra. O índice de obras referidas é de pasmar, verdadeiro trabalho de artífice joalheiro.
Esses trabalhos de grande fôlego são secundados pelo sem número de palestras que pronunciou, sobre os mais variados temas. A palestra é gênero difícil. Há que se transmitir uma considerável soma de conhecimentos que levem algo novo para os ouvintes sem, entretanto, ser exaustivo e nem maçante. Dr. Lycurgo de Castro Santos Filho foi exímio prolator de palestras.
Em 27.09.73, por exemplo, pronunciou uma, no Pátio do Colégio, repleta de dados históricos e que integrou o XI Curso de História de São Paulo, sob o título "A Cidade de Campinas Primeiro Reinado e Regência". Com apoio em sólida bibliografia (sete obras citadas) expôs a fundação e desenvolvimento da cidade de Campinas desde 1.774, o ano da fundação quando foi oficialmente criada a freguesia de "Nossa Senhora da Conceição das Campinas" cuja origem primeira foi a "Povoação do Matto Grosso de Jundiaí" ou "Povoação de Campinas". Essa passagem foi rapidíssima pois em maio de 1774 o Morgado de Matheus, capitão-general em São Paulo, determinou que Francisco Barreto Leme fundasse uma povoação "no caminho dos Goiases" e já em 14 de julho do mesmo ano de 1774 instalavam-se o distrito e freguesia com celebração da primeira missa, tendo tomado o nome de "São Carlos", embora os viajantes e mesmo os moradores teimassem em chamá-la "São Carlos de Campinas". Só em 1.842, no dia 5 de fevereiro, foi que a Assembléia Legislativa de São Paulo decretou sua elevação à categoria de cidade, juntamente com outras 5: Taubaté, Itu, Sorocaba, Curitiba e Paranaguá. Foi então que São Carlos, a 6a da lista, recebeu a denominação oficial de Campinas. Com a elevação dessas 6 vilas à categoria de cidade a província de São Paulo passou a ter 8 cidades - as duas outras eram São Paulo e Santos - e 40 vilas. A palestra continua recheada de detalhadas informações, inclusive sobre a produção agrícola, a população e sua composição e, dado interessante: identifica, em 1804, o sub-diácono Diogo Feijó como mestre de primeiras letras em Campinas. O mesmo que veio a ser o deputado provincial, ministro, senador e regente do Império. São jóias histórico-literárias que devemos ao D.. Lycurgo de Castro Santos Filho.
Esse notável acadêmico, Dr. Lycurgo de Castro Santos Filho, nasceu a 10 de junho de 1910, na cidade do Rio de Janeiro. Integrante de uma família de cinco gerações de médicos, formou-se em 1934 pela Faculdade Nacional de Medicina, do Rio de Janeiro. Passou a residir em Campinas, Estado de São Paulo, onde se radicou, constituiu família e exerceu a medicina, tendo sido um dos fundadores do Hospital Santo Antônio. Após a aposentadoria, em 1970, dedicou-se exclusivamente à pesquisa histórica e literária sobre temas ligados à medicina, principalmente, e outros temas esparsos.
Teve vida de extraordinária atividade tendo, além da profissão médica, exercido o magistério na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Participou de inúmeras sociedades e academias históricas e literárias tais como: Academia Nacional de Medicina, Academia Paulista de Letras, Academia Campinense de Letras, Carioca de Letras, Piauiense de Letras, Cearense de Letras e de Institutos Históricos como o Histórico e Geográfico Brasileiro, Histórico de São Paulo, de Minas Gerais e de Santa Catarina. Da Academia Paulista de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo foi Presidente.
Senhores, é impossível esgotar ou sequer dar idéia da proficuidade da obra desse notável homem em apenas um discurso acadêmico. Sua vida exige um livro, que, no futuro, certamente surgirá.
Finalizando, só me resta agradecer a bondade dos acadêmicos, agora meus confrades para orgulho meu, que hoje me recebem em meio de tão grande cultura, cavalheirismo e distinção onde sou, certamente e sem falsa modéstia, a menos brilhante das luzes.



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