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DISCURSO DE RECEPÇÃO PELO ACADÊMICO ALCÂNTARA SILVEIRA
Acadêmico: João de Scantimburgo
"A continuidade do vosso esforço em defesa da língua portuguesa, na divulgação do blondelismo e no estudo do Brasil sob os ângulos político, econômico, filosófico e sociológico é o que a Academia Paulista de Letras aguarda de vossa cultura, de vossa inteligência, de vosso idealismo. Sede bem-vindo."

Acabais de praticar, proferindo vosso substancioso discurso, o último ato que a Academia Paulista de Letras exige dos que anseiam por ocupar uma de suas tão ambicionadas cadeiras. Geralmente, a partir da manhã em que o intelectual se apresenta candidato até a noite festiva e solene de sua recepção como acadêmico, percorre ele uma estrada pedregosa, repleta de encruzilhadas e espinheiros. Muitos chegaram a esta tribuna com as mãos rasgadas pelos abrolhos e os pés feridos pelo matagal, trazendo ainda no rosto a poeira do caminho penosamente percorrido.
Outros, no entanto, empunham as laudas de seu discurso com mãos bem tratadas e unhas polidas, porque suave, largo e reto foi o caminho trilhado para a conquista do Silogeu. Pertenceis, Sr. João de Scantimburgo, ao grupo dos que ignoraram os obstáculos do caminho e chegaram a esta noite sem o mais leve vestígio de luta, esforço ou canseira. Foram tão poucas as barreiras que encontrastes em vossa campanha eleitoral que, praticamente falando, nem as tivestes. Dir-se-ia mesmo que os deuses que vos são favoráveis se encarregaram de aplainar o chão por onde iríeis transitar, tornando-o livre de raízes inesperadas, de cachoeiras imprevistas e da célebre pedra mineira que Carlos Drummond de Andrade transformou em tema nacional. . .
Se tivésseis sido eleito para a Academia Francesa, teríeis, ainda, antes de assomar a esta tribuna, que submeter vosso discurso ao exame de uma comissão de imortais, que o expurgariam de palavras que não constassem do seu dicionário. Aliás, mesmo antes de ser festivamente recepcionado, serieis convidado a tomar parte nos trabalhos do dicionário. Somente mais tarde é que, já então de uniforme verde, espadim e bicorne emplumado, faríeis vossa entrada no pequeno salão da Academia de Richelieu sob as espadas dos guardas e o rufar de tambores.
Há neste ritual uma simbologia muito profunda: expurgando o discurso do novel acadêmico de vocábulos espúrios, de termos de gíria, de neologismos sem raízes, a Academia Francesa faz sentir ao novo imortal a obrigação de escrever corretamente, pelo menos após o ingresso sous la Coupole. . .
Dificilmente a exigência da Academia Francesa poderia ser, nestes tempos de agora, adotada entre nós, porque nosso idioma no Brasil se encontra em involução (ou evolução, no entender de outros...) pois estamos chegando ao cúmulo de não saber mais distinguir o português do economês, bem como de outras línguas e dialetos que são criados e acolhidos em nome do progresso, da civilização e da técnica. Falando, por exemplo, sobre a língua paulistana, disse o poeta Afrânio Zuccolotto, há 20 anos passados:

“Tua língua pura
cacologia
nela és fecunda
nela és amada
bella giornata
You fool she said
somos em cinco
barbaramente
língua improvisa
língua terceira
muy rica hermosa
que diariamente
se faz e morre
Servus wie geht's
como tuas casas
que morrem antes
barbaramente
e vivem menos
que os moradores.”i

Mas muito antes do poeta, um médico de grande saber - o Prof. Miguel Couto - assim discorria sobre as línguas vencidas pelo progresso material de seus países:
“As línguas, à semelhança das correntes d'água, vão-se conspurcando no seu curso com os detritos que das margens se desagregam para o álveo, e quanto mais os povos que as falam caminham no progresso material em que porfiam, tanto mais, e mais depressa, elas se mascavam; a vida intensa não consente lazeres para as coisas mínimas e pouco a pouco cada idioma vai-se tornando um esperanto.” ii
A esperança de que o português falado e escrito no Brasil não se transforme tão já no esperanto de que falava Miguel Couto, reside nos escritos de autores como vós, Sr. João de Scantimburgo, que, além de ser um pensador de boa cepa, tendes a pena molhada num longo passado de jornalismo à moda antiga e conservais, em vossa voz, esse pronunciar correto que a cátedra, em geral, imprime à fala dos professores. Vossa preocupação estética com a língua portuguesa é uma constante em vossos escritos, principalmente nos capítulos que, em qualquer de vossos livros, dedicais ao tema.

O PORTUGUÊS NO BRASIL DE HOJE

Logo às primeiras páginas do vosso Tratado Geral do Brasil (que é o único estudo existente sobre o Brasil, da formação da nacionalidade à prospectiva do futuro) dedicastes vários excertos à matéria, mormente ao problema das tentativas feitas com a pretensão de substituir a língua portuguesa por uma língua brasileira, tema tão querido de Gladstone Chaves de Melo. E a respeito dos neologismos escrevestes serem eles "necessários, pois nenhuma língua é estática, nem mesmo as mortas que, ensinadas ainda, adaptam-se aos novos tempos por meio de circunlóquios".iii
Concordo convosco em parte, pois não ignoro ser o povo e não os professores, o criador da língua viva, mas o que vem acontecendo no Brasil é a criação de uma língua subsidiária do português por parte precisamente das elites e da classe média a serviço dessas elites. Lamentavelmente a tendência desses brasileiros é criar, sem maior exame ou autoridade, os belos neologismos que pululam por aí. Possuindo o gosto pelo palavreado difícil e complicado, eles preferem o rococó à simplicidade.
Nem sempre foi assim, porém. Ao tempo em que os bacharéis se impunham, social e politicamente, à sociedade brasileira, em cuja liderança tomavam parte, como figuras de prol, outro era o panorama intelectual. A nossa maneira correta de escrever e de falar, era influenciada pela do bacharel, cujo aprendizado se fazia nas antigas e raras Faculdades de Direito do País e do estrangeiro. É verdade que os advogados abusavam um pouco da sinonímia (como no caso de Rui) ou do latim, nas defesas ou acusações do júri, nos comícios políticos, nos agravos e apelações forenses. As frases latinas de ontem, todavia, longe do pedantismo ou da obscuridade das frases em inglês ou dos neologismos de hoje, revelavam cultura, resultavam de sólido aprendizado humanístico e não eram produtos de manuais de comunicação lidos e decorados pelos empresários, pelos legisladores e pelos técnicos de agora. Forçoso é reconhecer que, num passado não muito remoto, quando as normas jurídicas ainda eram redigidas por bacharéis e não por economistas e tecnocratas, outras eram a sua compreensão, a sua clareza e a sua inteligibilidade.
Várias são as razões que poderiam ser apontadas como motivadoras da situação em que se encontram a linguagem e a fala nacionais, mas não é essa a minha missão nesta tribuna. Não quero, todavia, deixar de trazer para ela a teoria que esse sutil (e por isso mesmo esquecido) Alberto Ramos tinha a propósito do palavreado difícil, rebuscado e nebuloso.

O MULATISMO NACIONAL

Dizia Alberto Ramos, em Prosas de Arieliv que esse gosto pela novidade, pelo arrevezado, faz parte daquele estado de espírito por ele classificado de mulatismo nacional. Longe de ser uma relação de etnia racial, de coloração epidérmica ou entrosamento capilar - escreveu Alberto Ramos - o mulatismo é uma espécie de tara indígena peculiar à boa parte do meio brasileiro e que se manifesta simultaneamente na ordem política, social e literária.
Realmente, assim como o burguesismo é um estado e uma orientação do espírito, maneira especial de sentir a vida, como ensinou Berdiaeff em O Espírito Burguês - pois não é de ordem econômica ou social, mas uma categoria espiritual, ontológica, assim também o mulatismo se revela mais por gestos e atitudes que por traços físicos. O mulato Machado de Assis jamais pode ser acusado de mulatismo literário.
Sofrendo ou não de mulatismo, a verdade é que atualmente poucos resistem ao desejo de usar palavreado inusitado, raros fogem à vontade de criar verbos e neologismos ou dar a velhos vocábulos novos sentidos que, além de não enriquecerem a língua, tornam-na quase incompreensível.
A língua portuguesa, hoje escrita e falada no Brasil, parece dar razão a André Breton quando escreveu que "une monstrueuse aberration fait croire aux hommes que le langage est né pour faciliter leurs relations mutuelles".v Embora Breton haja escrito essa frase a propósito de poesia e numa época já afastada, considero-a atual, principalmente em relação aos homens que não são poetas. Sim, porque aos poetas sempre se permitiram extravagâncias e fantasias vocabulares, já que - como escreveu Thierry Maulnier - "dans les mains du poète, la prise du langage sur le monde est magique, et non logique seulement".vi

EXCITANTES E RELAXANTES

Classifiquei, certa vez, os livros em excitantes e relaxantes. Dei mesmo a uma de minhas obras o título de Excitantes e Relaxantes. Excitantes são os livros cuja antipatia ou cuja sedução permanece com o leitor após o término de sua leitura, são os livros que trazem uma contribuição a mais à nossa inteligência, enriquecendo-a ou perturbando-a. Relaxantes são os livros que não imprimem nada no nosso cérebro: uma vez terminada sua leitura, foi como se nada de marcante, de belo ou de poderoso houvéssemos tido sob os olhos... O que era branco continuou branco, o que era liso permanece liso.
Se fosse necessário citar, a título exemplificativo, apenas alguns autores de livros excitantes, eu lembraria Blondel, Proust, Péguy, Mounier, Pirandelo, Kafka, Joyce, Kazantzakis, Alain. Imenso - ao revés - é o rol dos autores de livros relaxantes, principiando pelos best-sellers universais; Jorge Luís Borges, Júlio Cortazar, Gabriel Garcia Marques, Hemingway e uma infinidade de outros romancistas e pseudo-romancistas nacionais e estrangeiros formam um exército de literatos relaxantes.
A maioria de vossas obras, Sr. João de Scantimburgo, pertence ao gênero excitante; elas desafiam o leitor, mexem com suas idéias e não poucos de seus conceitos permanecem no espírito de quem os lê, tal a coragem de quem os escreveu ou a veracidade de suas afirmações.
O mais excitante de todos os vossos livros é, sem dúvida, A Extensão Humana. Classificastes-o de "uma longa meditação", de "capítulo de uma obra mais vasta, na qual trabalhamos",vii circunstâncias que levam a imaginar o aparecimento de um livro em vários tomos, que será o coroamento de vossa obra filosófica.
Ao contrário de outros livros que escrevestes, Sr. João de Scantimburgo, que se estendem por 300, 400 e até 600 páginas, vossa Extensão Humana, que é a única obra em português sobre o fenômeno da técnica em nosso tempo, não chega a 190 páginas. Dentro, porém, da magreza dessa obra há mais nervos e músculos do que os existentes nos demais livros.
Baseado na filosofia de Maurice Blondel, esse livro é um estudo profundo da personalidade do homem, como que esquartejado nesse complexo de contradições formado pela tecnologia e pelo humanismo ateu que, no vosso falar, "é a toxina deletéria da nossa civilização e da nossa cultura".


O VALOR DE UMA OBRA

Não sois, porém, apenas o autor de A Extensão Humana. Escrevestes várias obras sobre História, Sociologia, Economia e Política e prometeis a publicação de outros tantos livros, inclusive um estudo sobre a filosofia de Camões.
A mim, todavia, não impressiona a circunstância de haverdes publicado vários volumes e prometerdes a próxima edição de outros, porquanto o valor e a fama de um escritor como vós não se aferem pelo número de livros publicados, mas pela substância da vossa obra, fosse ela apenas uma. Félix Arvers publicou vários livros, principalmente peças de teatro e, no entanto, ficou conhecido apenas por causa daquele celebérrimo soneto que começa assim: "Mon âme a son secret, ma vie a son mystère".
Marcel Proust escreveu somente um romance, mas até hoje, cinqüenta anos após a sua publicação, À la Recherche du Temps Perdu - esse tempo que segundo dissestes na parte principal de vosso discurso, é "a matéria-prima da história" - À la Recherche continua lido, relido, discutido, examinado, escalpelado por críticos, estudiosos, psicólogos, sociólogos, lingüistas, geógrafos, semiologistas; até mesmo o estruturalista Gérard Génette tem-lhe dedicado capítulos da série das Figures.
Ao contrário do que acontece com a obra proustista, a vossa, Sr. João de Scantimburgo, não tem sido analisada quanto devera. Mas esta circunstância, no vosso caso, é destituída de qualquer significado porquanto, conforme eu já disse algures, o destino do intelectual brasileiro é viver em solilóquio, escrevendo sobre temas que ninguém lê, aos quais ninguém dá importância. As idéias caem silenciosa e mansamente, como folhas mortas, desaparecendo numa mistura de geléia e cortiça. Escrevestes em A Crise da República Presidencial (estudo sócio-histórico sobre a evolução do regime político brasileiro desde Deodoro até Castelo Branco) que a "república presidencial (é) a grande devoradora da inteligência".viii Mas devoradora não é apenas a república. Devoradoras da inteligência são, como lembrou Afrânio Coutinho, ao comentar aquela minha imagem, “a desordem reinante nos espíritos, a subversão de valores, (...) situação ainda agravada em nosso meio pelas deficiências que nos são peculiares no terreno educacional”.ix

Vossa obra não teve até agora um crítico à altura. Mas, no fundo, a falta de crítico não é tão angustiante quanto parece, porquanto é sempre preferível a ausência de bons críticos que a presença de maus críticos, pois, como disse Elsa Triolet, "Les mauvais critiques sont dangereux comme les médecins qui se trompent de diagnostic. Comme des assassins professionnels. Comme des ignorants qui se mêlent de juger ce qu'ils ne connaissent pas".x
Para vossa felicidade, rarearam os críticos de que falava Elsa Triolet para ter mantido uma polêmica convosco no instante em que algumas de vossas obras foram publicadas. O Destino da América Latina, por exemplo, deveria ter provocado em 1966, quando surgiu, contestações de variada espécie, a partir da vossa afirmação de que a América Latina "é o continente da pobreza; mais do que da pobreza, da miséria".xi
O Destino da América Latina, em que demonstrais a incompatibilidade da democracia angÍo-saxônica, protestante, com um continente de formação católica autoritária, pertence a essa classe de obras não definitivas, isto é, das obras que, de tempos em tempos, precisam ser revistas pelo autor que, diante da evolução ou involução dos acontecimentos, ratificará ou retificará seu julgamento.
Ilusões e Desilusões do Desenvolvimento é uma das últimas obras publicadas por João de Scantimburgo. Em suas páginas o desenvolvimento é estudado segundo uma filosofia econômica e seu resumo, a grosso modo, pode ser contido nesta frase: o homem não é subproduto do desenvolvimento, mas o seu sujeito.
O desenvolvimento tem sido definido das mais variadas formas, segundo o ponto de vista de quem lhe examina o conteúdo e o campo de ação em que está situado. A Escola de Guerra, por exemplo, ensina, muito acertadamente, aliás, "constituir objetivos da Política Nacional de Desenvolvimento: assegurar a estabilidade política; dinamizar o crescimento econômico com justiça social; proporcionar condições para a plena realização humana; contribuir para o estabelecimento das condições de segurança".xii
Para a maioria, porém, desenvolvimento significa simplesmente riqueza material. E dentre os que assim raciocinam estão grandes contingentes de homens de negócios que, antes de sofrer o indefectível enfarte, debatem-se na ânsia de aumentar seu capital. Para eles desenvolvimento é sinônimo de muito dinheiro e é nisto que pensam não somente no escritório ou na Bolsa; mesmo na praia, na boate, no restaurante, na piscina, na estação de águas, no iate, no clube, eles apenas falam em open market, overnight, blue chips, leasing, draw-back, incorporações, cotações e inflações. Os homens de negócios deveriam ler Ilusões e Desilusões do Desenvolvimento para ficar sabendo o que é o desenvolvimento segundo a palavra de um pensador blondeliano.
A Crise da República Presidencial é livro de debate, "um ensaio político" como escreveis na sua justificação, "tendo os fatos históricos como sua fundamentação".xiii Não é obra didática como o Tratado Geral do Brasil, que ainda ontem, neste começo de ano letivo, vi empilhado nos balcões das livrarias, ao lado de gramáticas, químicas, geografias e livros sobre crítica literária. (Meu Deus! Quanto se escreve no Brasil, sobre crítica e história literárias!) Por ser mais para adultos esclarecidos do que para estudantes, as páginas de A Crise da República foram escritas com mais vibração, maior entusiasmo e calor, qualidades intelectuais que já possuíeis mas que o contato com a filosofia de Maurice Blondel ajudou a expandir e aprofundar. Confessais mesmo que no estudo a que procedestes sobre a crise da República nacional, recorrestes, para a interpretação filosófica dos acontecimentos, ao pensamento blondeliano.xiv




O BLONDELISMO

Aliás, o blondelismo, meus senhores, está presente na maioria das obras do acadêmico que recepcionamos, cujo pensamento é quase totalmente banhado pelas idéias que informam aquela doutrina. Haja vista, por exemplo, a idéia de prospectiva, definida pelo Mestre como "pensamento ou característica do pensamento, enquanto orientada no sentido do futuro".xv
Bastaria, ao meu ver, a filiação da obra de Scantimburgo ao blondelismo para recomendá-la à leitura e meditação dos que têm a obrigação de se preocupar - com o destino do homem e da sociedade nacionais. Talvez haja nesta frase certa dose de parti-pris, pois sendo eu também blondeliano, considero sua filosofia a mais completa da atualidade, conforme tive oportunidade de declarar no Primeiro Congresso Brasileiro de Filosofia,xvi e nos meus livros Diálogo com os Irmãosxvii e A Brecha no Muro, em que escrevi: "a filosofia da ação é a doutrina que contém indicações para os nossos destinos, um rumo a seguir, é uma filosofia para o Brasil".xviii Hoje eu escreveria: "é uma filosofia não só para o Brasil mas para o mundo", porque não mais estando Deus presente à criatura - como acontecia na Idade Média - todo pensamento atual deve ter por missão essencial restituir Deus ao homem, partindo desse mesmo homem, que se tornou seu próprio deus. Ora, esta transcendência ou elevação sem limites acima de nós mesmos, só pode ser alcançada, atualmente, pelo método blondeliano da imanência, que visa a assimilar os seres humanos pelo íntimo, até a sua união transformante, livremente desejada e realizada, não em um deus artificialmente feito à nossa medida, mas no verdadeiro Deus do amor, da caridade e da justiça.

FILOSOFIA E HISTÓRIA

Não é apenas do blondelismo que João de Scantimburgo se socorre no estudo dos problemas nacionais. Serve-se também e naturalmente da História, por ele considerada, num de seus livros, "como um grande anfiteatro de lições".xix Realmente olhar para trás ainda é uma ação estimulante, porque, repetindo Jaspers,xx "nós e o nosso presente estamos apenas no meio da História", esse imenso rio que não se sabe onde nasce e cujo desaguadouro se perde no desconhecido.
Naturalmente quando dizemos História referimo-nos à Ciência Histórica ou à Filosofia da História, já que, depois da célebre frase de Brunschvicg, segundo a qual a História é o laboratório do filósofo, evidente se tornou a necessidade de encarar em conjunto História e Filosofia.
Lembro-me, a propósito, de um debate travado há tempos no Centre Catholique des Intellectuels Français, em que Henri Marrou, criticando os excessos da ciência histórica, exclamou que "l'histoire s'est dégradée en érudition et le public ne sait plus distinguer l'histoire authentique de ses caricatures".xxi Respondeu Raymond Aron afirmando "qu'en matiére d'histoire (...) ne pas philosopher, c'est encore philosopher".xxii Mas, de todo esse debate emergiu e flutuou a opinião de Jean Hyppolite, para quem "l'histoire ce n'est pas seulement la technique des historiens, les ouvrages qu'ils publient et leurs commentaires, c'est la vie même, l'existence de l'homme . . . ".xxiii
Creio não errar dizendo que a concepção espiritualista da História adotada por Scantimburgo tem como meta a valorização da criatura, preparando-a para o seu destino transcendental. E a esta altura meu pensamento se volta, reverente, para a personalidade de Emmanuel Mounier, que soube, como ninguém, batalhar, sem desfalecimento, pela valoração da pessoa, por meio de um apostolado que talvez se irradiasse pelo universo todo, não fosse ele tão cedo desta vida arrebatado. Mounier, com seu movimento personalista, mostrou ser a pessoa o único valor que conta no mundo. Costumava ele dizer que nessa pasta decomposta em que se transformou a Europa, era necessário multiplicar os homens que possuem ossos, idéias firmes, coragem e algumas teimosias irredutíveis, e nesta frase, Sr. João de Scantimburgo, talvez pensáveis quando escrevestes sobre esta "época abastardada na corrupção, na miséria dos corações queimados pela aridez do egoísmo, envilecidos pela servidão do dinheiro".xxiv
Eis aí, em traços ultra-rápidos, para não cansar os ouvintes desejosos de abraçar o novel acadêmico, alguns comentários sobre a sua obra. A respeito de suas atividades fora do livro, precisaria fazer outro discurso que relatasse o que tem sido a vida de quem foi diretor dos "Diários Associados", diretor do "Correio Paulistano", fundador da "Televisão Excelsior", diretor do "Digesto Econômico", é comentarista de rádio e televisão, professor, conferencista, etc...

Senhor João de Scantimburgo!

Chego ao final de minha oração relembrando aquelas frases do grande Lecomte du Noüy, físico que criou a teoria filosófica do telefinalismo: "Mieux vaut un idéal inaccessible qui vous dirige pendant votre vie comme les étoiles conduisent le navigateur, qu'un but accessible qui, une fois atteint, vous place dans la necessité d'en choisir un nouveau. La Fin ultime n'est pas à notre portée. Ce qui compte ce n'est pas tant le succès local et momentané, c'est la continuité de l'effort".xxv A continuidade do vosso esforço em defesa da língua portuguesa, na divulgação do blondelismo e no estudo do Brasil sob os ângulos político, econômico, filosófico e sociológico é o que a Academia Paulista de Letras aguarda de vossa cultura, de vossa inteligência, de vosso idealismo. Sede bem-vindo.




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