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DISCURSO DE POSSE (20.05.1970)
Acadêmico: Osmar Muniz Pimentel
"Senhores Acadêmicos: Reitero-vos comovida gratidão por me terdes convocado para vossa companhia."

Sou paulista do Vale do Paraíba, nativo espiritual de Lorena. Sou, por isso, homem de planície com nostalgia de cordilheira.
Sobre o chão escorreito, a cidadezinha onde tive o privilégio de aprender razão e sensibilidade. Numa lonjura: azul, a Mantiqueira inumerável. Entre uma e outra, o Paraíba profundo - rio viril, rio-Pai do Vale e avô dos nossos sonhos, rio sagrado porque foi junto e ao longo de suas margens que a civilização do café tornou mais viva a consciência política daquele Brasil.
Perdoai, senhores Acadêmicos, essas reminiscências de geografia
ecológica e afetiva. Elas me explicam esta noite.
Vim da planície do Vale. E chego, hoje, à cordilheira que é, simbolicamente, a Academia Paulista de Letras.
Viajei - no tempo do espírito - motivado pela tenacidade de homem de terra cordial, mas sofrida. E pela mesma secreta nostalgia que tornava mais azul, mais luminosa minha Mantiqueira de menino.
Se aqui me encontro é que o Rio me ajudou. Alentou-me em minhas fraquezas. Foi a barroca fonte musical de minha esperança. E ensinou-me a paciência e a humildade desinteressadas sem as quais o homem não pode sequer tentar compreender a linguagem dos rios, do Tempo e da literatura.
Senhores Acadêmicos:
Quem chega para as boas vindas fraternais, creio que necessita de
agradecer o agasalho e dizer a que veio e por que veio.
Sou profundamente grato a todos vós pela honra que me conferistes elegendo-me para esta Casa. Grato a todos, e, especialmente, aos ilustres Acadêmicos que subscreveram a moção regulamentar da minha candidatura: Cassiano Ricardo, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Aureliano Leite, Menotti del Picchia, Octacílio de Carvalho Lopes.
Pertenço a uma geração com o sentimento de hierarquia intelectual. Nunca me agradou o fácil elogio cortesão, a impostura com palavras. Posso, assim, afirmar-vos que ingresso na Academia Paulista de Letras com a consciência de quem nasceu para ler e aprender, com a decisão de tudo fazer para servi-la. Quero ler a Academia para aprendê-la.
Eleito, sou novamente candidato. Não mais, é certo, aos votos que vos pedi, e me destes.
Candidato-me, agora, à vossa compreensão, à mesma simpatia através de cujas mãos companheiras me tornastes um de vós. É que necessito de uma e de outra.
Não me refiro - e já o terei percebido - à compreensão e à simpatia apenas do homem afável que o paulista, socialmente tímido, é e sabe ser. Falo da compreensão e da simpatia com que estimastes os poucos livros que já publiquei, e que, assim o espero, possam abrigar quantos, já escritos, desejo publicar, e os que, se o permitir meu destino que é de Deus, ainda quero escrever.
Chego, portanto, para aprender. E em escola ilustre, como tentarei sugerir agora, depois de me ter iniciado menos superficialmente nos gloriosos quase 61 anos de vida criadora desta Casa.
Senhores Acadêmicos:
Dizem que a mais antiga Academia de Letras do mundo foi chinesa e chamava-se "Os sete preguiçosos do bosque de bambu".
Apresso-me em reconhecer que nossa Academia é diferente.
Não somos apenas sete. Este edifício não é de bambu. E o único bosque paulistano não é, precisamente, o da Saúde; é o da modinha "Até pensei", de Chico Buarque de Holanda.
Mas nem por isso pôde e pode esta Casa esquivar-se da tradicional maledicência mais ou menos espirituosa com que, em qualquer latitude terrena, as Academias são glosadas e julgadas.
Entre nós, são poucos - para não dizer raros - os que conhecem a história desta Academia e, especialmente, seu poder criador, no passado e no presente, em diversos setores do pensamento e da arte.
Os outros - maioria inefável - ou atribuem à instituição, acriticamente, poderes mágicos, ou a tomam como uma espécie de preguiçoso Senado do pensamento conservador, se não reacionário.
Parece-me inútil analisar esse respeito mítico e popular por Academias de Letras. Talvez seja eco do sincretismo religioso nacional. Mais oportuno será lembrar, aos fabricantes inteligentes de perfídias anti-acadêmicas, que uma Academia de Letras, mesmo em era espacial, continua sendo como mulher bonita: tanto mais cortejada quanto mais distraída.

A ACADEMIA E AS "DUAS CULTURAS"

Já vos disse que não me considero perito em história desta Casa. Sei dela, porém, o bastante para respeitá-La como sede - e por direito de conquista - da inteligência de São Paulo.
Ela é, a meu ver, exemplo claro de como podem conviver, hoje, criativamente, como conviveram num passado de quase 61 anos, Humanismo e Ciência - "as duas culturas" cujo diálogo começou a ser reclamado, há pouco mais de uma década, como imperativo de salvação do pensamento contemporâneo. E em convivência: e diálogo marcados por saudável espírito de inconformismo diante de idéias caducas ou em transe de morte.
Peço permissão para evocar quatro - mas, infelizmente, só quatro,
por falta de tempo - expressões de Ciência e Humanismo que, no passado, honraram esta Casa com presença e saber. Dois cientistas: Luís Pereira Barreto, Franco da Rocha. Dois humanistas: Basílio de Magalhães, Spencer Vampré.
Não se dirá, certamente, que Luís Pereira Barreto tenha contribuído com idéias originais para: a doutrina comteana, à Littré, que professava com entusiasmo e bravura. Mas foi, sem dúvida, um dos primeiros pensadores científicos sérios com que passamos a contar para ferir numerosos abusões filosóficos e políticos que singularizavam o ronceirismo intelectual do Brasil daquele tempo. Mereceu, sempre, o respeito do seu grande adversário Silvio Romero. Era um mestre, esse altivo paulista de Jacareí.
Franco da Rocha foi o primeiro psiquiatra brasileiro a conhecer e divulgar, entre nós, com espírito científico, a psicanálise de Freud.
Apesar de geralmente mal aprendido, o pensamento freudiano está tão disseminado, hoje, no Brasil, que muitos falam, aqui, da psicanálise, tranquilamente, como se ela fosse simples consistia do inconsciente.
Não era assim no tempo de Franco da Rocha. Ninguém sabia, então, quem era Freud, em que consistia sua doutrina. Foi o humano sábio desta Casa quem teve a coragem lúcida de lembrar, à psiquiatria, ortodoxa da época, que Freud não era bruxo ou impostor. Limitava-se a ter idéias pioneiras e úteis ao conhecimento e à terapêutica: das chamadas dores da alma.
Não me deterei na evocação de Basílio de Magalhães e Spencer Vampré, humanistas exemplares.
Direi apenas que, sabedores eméritos de Latim e Grego, familiarizados com o melhor das letras clássicas, foram - mais que eruditos venerandos - notáveis ciganos das idéias.
Depois de traduzir o lírico Stechetti, o tupinólogo Basílio escreveu estudos que são, ao mesmo tempo, historiografia e história idôneas.
Spencer foi principalmente jurista. Tinha ternura pelas Arcadas do Largo de São Francisco. Via, em Álvares de Azevedo, o santo leigo da poesia que gostaria, talvez, de ter escrito.
Tive a satisfação de conhecê-lo, de ouvir-lhe preleções. Sempre imprevistas, suas aulas eram conversas de nômade da lucidez. Parecia
Ariel ensinando Ciência do Direito.
Mas não é só.

CRIADORA E INSUBMISSA, ONTEM

Criadora e insubmissa em Humanismo e Ciência, esta Casa o foi, também no setor específico da invenção literária.
Cabe-me recordar, a possíveis deslembrados, que pertenceram Academia alguns dos mais combativos escritores paulistas - de vanguarda ou não - desde a década de 20: Mário de Andrade, René Thiollier, Guilherme de Almeida, Monteiro Lobato.
Mário e Lobato: desabusados e, às vezes, desbocados. Guilherme e René: senhoriais, polidos, mas igualmente implacáveis com o bem-bom da mediocridade formal.
Mário veio de "Paulicéia desvairada" para a serenidade aparente
desta Casa. Nem por isso deixou de ser o rebelde clarividente que sempre foi.
Houve em René um eficaz, embora despretensioso, guerrilheiro da
Semana de Arte Moderna. Condicionado, em palavras e gestos, por sua qualidade de "grand seigneur" do patriciado paulista, o escritor que ele foi, com rara decência, ajudou a eclosão da Semana, mas sem dar na vista. Sua sensibilidade era bem educada até para servir a verdades
literárias.
Guilherme de Almeida, outro poeta acadêmico de vanguarda. Sim;
o mestre romântico do artesanato poético brasileiro, o mago tradutor de Baudelaire, o poeta que decantava a garoa paulistana como se ela tivesse
a graça sensual da lírica de Camões.
Monteiro Lobato não rimou com o modernismo de 22. Implicava
com a pintura de Anita Malfatti. Mas a verdade é que poucas revoluções terão eclodido, no Brasil, com a importância da literatura infantil escrita pelo pestanudo de Taubaté. "Reinações de Narizinho" deu um
reino de fantasia poética às crianças desta República. Esquisito petroleiro acadêmico, esse Monteiro Lobato inesquecível.
Dir-se-á, em contradita, que Oswald de Andrade - temperamento
de quase Rabelais tropical com alma de criança desiludida - não pertenceu à Academia Paulista de Letras. E é verdade.
Não creio, porém, que a desprezasse.
Foi, certa vez, candidato à Academia Brasileira de Letras, Na carta com que se candidatou, advertiu de que iria descer, de paraquedas, no ilustre sodalício.
Não foi feliz no pouso.
Uma pena. O produtor de irreverências, às vezes irresistíveis, que Oswald foi, seria, presumo, acadêmico notável. Tinha talento, amava as ideias sérias. A Academia terá sido, a meu ver, sua outra "estrela de absinto".

APL DE HOJE

Como no passado, a Academia Paulista de Letras é, hoje, centro de estudos de Humanismo e Ciência. O tema de seu destino continua sendo
o diálogo entre "as duas culturas".
Não o faz com alarde. Nem - penso - deve fazê-lo. Esta Casa tem o pudor da comunicação comercializada. Seu ceticismo, às vezes irônico, defende-a bem de possíveis tentações publicitárias da "cultura de massa".
Mas não se deverá dizer que a Academia é, ou foi, remanso de ócio
intelectual e de conservantismo ideológico.
Sem uma só exceção, os que ingressaram nesta Casa fizeram-no
com passaporte de obra realizada. E em diferentes setores da atividade intelectual. Receberam o prêmio exemplar por trabalho do espírito levado a termo, às vezes sob condições ásperas de quase insegurança material, em unamuniana luta agônica contra a solidão do escritor brasileiro.
Obra realizada na palavra impressa. Um só - Ibraim Nobre, há pouco desaparecido - teve o "panache" de continuar dizendo sua mensagem sem recolhê-la em livros. Justifica-se, porém, a suposta exceção: o verbo, quando romanticamente iluminado, pode fazer-se carne na consciência das gerações que sabem fazer História.
Já lembrei alguns dos grandes inconformados que esta Casa abrigou
antigamente. Cito outro, agora, e - esse - surpreendente: Afonso Schmidt. O marxista Afonso Schmidt.
Chamei-o, certa vez - e, creio, com alguma razão - de "Poverello do marxismo".
Poeta formalmente quase parnasiano mas de alma libertária; contista proletário de "Os impunes"; ideólogo lírico da sociedade sem classes, mas à maneira de São Francisco de Assis - foi membro da Academia Paulista de Letras. Ocupou e honrou a cadeira nº 10.
Como se percebe, criadores, insubmissos, abrigo da honesta luta das idéias, mesmo ideológicas - os quase 61 anos de vida desta Casa.
Tive, aliás, pachorra de fazer levantamento dos gêneros literários a que se dedicam os 38 acadêmicos atuais, com exclusão do recenseador.
Embora diversos acadêmicos versem mais de um, adotei, para efeito de classificação, o critério de optar pelo gênero em virtude do qual o nome do autor se tornou mais conhecido.
Eis o resultado: 7 consagram-se à história; 6, à poesia; 6, à ficção; 6, ao ensaísmo; 5, ao direito; 3, à poligrafia; 4, à ciência.
O recenseamento parece indicar ecletismo nas atividades intelectuais desta Casa, mas subordinado ao diálogo essencial entre Humanismo e Ciência.
Não é meu propósito nomear os acadêmicos, um a um, com remissão à respectiva obra. Nem disponho de tempo para tanto.
Desejo, contudo, por imperativo de justiça, fazer, a propósito, duas afirmações. Uma, já referida: todos os acadêmicos ingressaram nesta Casa com obra realizada. Vale dizer: de cabeça intelectualmente erguida. Outra: alguns são escritores de renome internacional.
Ambas as afirmações têm fundamento na leitura atenta da: produção humanística ou científica dos atuais membros da Academia. Os que desejam confirmá-las ou, eventualmente, rejeitá-las, terão por isso, de lê-las com idêntica atenção.
E é aí que, a meu ver, o carro pega, como costuma dizer nosso caboclo. Confesse-se o óbvio: não temos, no Brasil, o hábito de ler os textos, todos os textos de autor.
Na melhor hipótese, contentamo-nos com a leitura de um ou dois livros do escritor, e com estimá-lo à base dessa informação insuficiente, para não dizer arbitrária. Na pior, não o lemos e, assim, tendemos a, julgá-lo de acordo com o que ouvimos, a seu respeito, graças ao colunismo literário, a conversas urgentes de porta de livraria e, até, às inevitáveis maledicências de desafetos.
Registre-se, ainda, que o escritor não lido é sempre vítima de um destes dois equívocos ou duas leviandades: o do "não li e não gostei" e do "não li mas gostei".
Não podeis, senhores Acadêmicos, esquivar-nos dos males dessa preguiça intelectual do nosso leitor comum. Nem a Academia conseguirá eximir-se da culpa, que tantos erroneamente lhe atribuem, de dispor de apenas 40 caldeiras quando perfazem número evidentemente maior os que nela mereceriam assentar-se.
Cabe-me, apenas, recordar, agora, que essa quase injustiça - tão proclamada quanto flagrante - não é desta: Casa. É do número 40 e da tradição que ele representa, desde a fundação da Academia Francesa.


40: FRÁGIL NÚMERO INCOMPREENDIDO

A Academia dispõe de apenas 40 cadeiras. Os que nela: desejam sentar-se, com ou sem razão, atingem número bem superior, talvez opressivo.
A desproporção crônica entre vagas e postulantes há de ser, por certo, causa eficiente da crítica - que tantos lhe endereçam - de abuso de poder, de ação monopolística na República democrática das letras.
Não tenho mandato para defender esta Casa da increpação interessada. Falo em caráter pessoal. Mas a verdade é que a crítica parece-me, no mínimo, injusta.
O fato de o número 40 reger soma e destino da Academia é evidente sinal de fragilidade do, digamos, Poder Literário, pelo menos em nosso Estado.
Forte, nesse sentido, é o Poder Legislativo.
Até há pouco, o número dos senhores deputados estaduais era proporcional à população de São Paulo. Chegou a ser 115. Hoje, ao número de eleitores regularmente inscritos.
Não sei, ainda, qual seja. Mas há de ser, sem dúvida, superior a 40. Como, assim, acusar de abusiva a fragilidade estatística desta Casa? Como não ter simpatia: por 40, número pelo menos constante num país,
como o nosso, onde tudo geralmente sobe para nunca mais descer?
Foi esse número - academicamente propício ou fatal, conforme o caso - que, no passado, trouxe, para esta Casa, Franco da Rocha, sem, contudo, lembrar-se do mestre de criação científica que se chamou Henrique da Rocha Lima. Foi esse número. de algum modo "coquette" que convocou, para a Academia, Basílio de Magalhães, esquecendo-se, porém, do sábio humanista que foi José Augusto César. E sábio não só pelo saber acumulado e criador: sábio por ter tido a coragem de ser inteligentemente modesto, de nunca ter pretendido recriar a realidade múltipla à imagem e semelhança de sua: razão poderosa, mas finita.
Obra humana e, por isso, contingente como esta Casa é, não lhe
faltarão, certamente, imperfeições. Entre estas, porém, parece-me injusto incluir a de dispor de apenas 40 possibilidades para satisfazer, digamos, uma, duas centenas, talvez, de candidatos a curiosa espécie de imortalidade: a que, não podendo ser física, nem sempre é literária.
Há mais: uma Academia, por ilustre que seja, não tira ou acrescenta coisa alguma à carreira do escritor, que será julgado, exclusivamente, em termos de literatura, por sua obra escrita.
Assim, todos quantos tiverem sido, eventualmente, esquecidos por
esta Casa, serão, um dia, se verdadeiros escritores, lembrados, pela Literatura, na memória não-volúvel das gerações. O reconhecimento da condição literária legítima - todos o sabemos - é, antes, função e dever do Tempo, da posteridade, que de convicções, às vezes ilusórias, de contemporâneos.
Senhores Acadêmicos:
Já vos disse do sentimento de humildade intelectual com que ingresso nesta Casa.
Devo afirmar-vos, agora, que ele não é "quimicamente puro". Marca-o, também, e ambiguamente, certo "quantum" de orgulho ocasional.
Orgulho-me de suceder a Paulo Nogueira Filho na cadeira cujo patrono e cujos primeiros quatro ocupantes foram, em pensamento e ação, módulos da maneira original por que o paulista pensa, sente, vive a paixão de ser brasileiro.
Paulista, por destino e aculturação, honra-me o encargo de, no limite de minhas possibilidades, procurar manter, ilesa, a tradição da cadeira que vou ocupar. Tradição brasileira, como nos ensinam o formar-se e o desenvolver-se da nacionalidade. E que, por isso, nunca foi, não é, nunca será regionalista ou vulgarmente bairrista, como, às vezes, costumam insinuar intérpretes míopes da saga bandeirante hoje revivida, em função do Brasil, pelo trabalho da nossa ecumênica democracia étnica.
Em seu preciso discurso de posse, proferido neste mesmo anfiteatro, Paulo Nogueira Filho, estudou, com pertinente visão sintética, vida e obra do Brigadeiro Machado de Oliveira, de Brasílio Machado, de Alcântara Machado, de José Carlos de Macedo Soares.
Nada tenho a acrescentar ao que disse meu ilustre antecessor, e incorporo, idealmente, a este discurso.
Valha-me, porém, agora que dele vou falar, pelo menos uma parcela, da objetividade com que soube resumir a história intelectual e humana dos que lhe precederam na cadeira nº 1.

AUTOBIOGRAFIA E MITO

A obra escrita de Paulo Nogueira Filho compõe-se de 4 opúsculos e 7 livros em 12 volumes, um dos quais ainda a ser publicado: o quinto e último volumes de "A guerra cívica".
Inicia-se com um estudo de história política: "O Clube Republicano de Campinas", conferência publicada em 1916.
Prossegue no trato de típicos problemas políticos e sociais. Alguns, vinculados à defesa do Estado democrático durante o governo Getúlio Vargas, e à autonomia do Estado de São Paulo. Outros, em favor de um "regime de liberdade social" ou de denúncia de "conjuração das opressões capitalistas e comunistas".
A seguir, uma autobiografia no calor de duas campanhas: a do "burguês progressista" pela fundação e atuação, em São Paulo e no Brasil, do Partido Democrático, e, ainda, a do mesmo "burguês progressista" pela "guerra cívica" de 1932.
Finalmente, a análise, em "Autogestão", de expressivos aspectos de experiências modernas em matéria de participação de empregados na direção de empresa.
Do avô materno a Joseph Broz Tito - esses, os pólos e a reta do pensamento paulino.
Como caracterizá-lo, embora em linhas muito gerais?
Creio poder sugerir que a obra escrita de Paulo Nogueira Filho é autobiografia singularizada por coerência ideológica e respeito à verdade dos fatos - especialmente à verdade histórica - sendo, ainda, fruto de cotidiana, de ardente "práxis" do autor pelas liberdades democráticas e pelo bem comum.
Desde sua primeira página, ainda adolescente, à última, escrita no pórtico do envelhecer, há, nela, perceptível fusão harmoniosa de estilo e autor. O vidente coração do homem na sinceridade despojada do seu modo de exprimir-se literariamente.
Leitor atento, fiz a travessia dessa admirável aventura do espírito. A lição que nos lega, em qualquer de suas páginas - de livros ou de opúsculos -contém-se nesta paráfrase de um pensamento goethiano: "Quem toca nestas páginas, toca num homem". E não sei de elogio maior a um escritor que o de realçar-lhe, no estilo veraz e formal, o pulsar de um coração lúcido.
Poderia, talvez, causar estranheza o fato de essa obra ser considerada, criticamente, em seu conjunto, como uma longa autobiografia.
Esse espanto parece-me infundado. Na realidade, ela o é.
Ocorre apenas que Paulo escreveu-a como Gramsci gostaria de ter escrito a dele próprio. Não a autobiografia redigida enquanto "ato de orgulho" por quem acredita que "sua vida seja digna de descrição por ser original, diferente das outras". Mas a autobiografia "concebida politicamente", como uma espécie de "ensaio político ou filosófico em que se descrevesse em ato o que, no ensaio, se deduz logicamente", como acentuou Salvatore Francesco Romano, biógrafo de Gramsci. Autobiografia de que resulta "um sentimento significativo do vínculo entre ação pessoal e experiência intelectual, civil e moral de uma época, e uma concepção das relações entre vida individual e leis históricas, que nos são extremamente reveladoras" (Salvatore Francesco Romano, "Gramsci", Utet, Turim, 1965, pág. 5).
A análise de autobiografia "concebida politicamente", à semelhança da de Paulo, postula tanto o conhecimento do respectivo tempo histórico-político quanto o do homem - mais precisamente: do ser humano - que a escreveu.
A evocação do tempo histórico-político em que Paulo viveu e atuou não me parece demasiadamente difícil. Mas não creio que se possa, conhecer ou revelar, menos superficialmente, o homem, o ser humano múltiplo que Paulo foi.
A época vai, digamos, de 1915 - ano em que ele ingressou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, e deve ter despertado sua consciência política - até o final de 1969, quando faleceu.
São 54 anos de experiência e ação políticas num Brasil republicano mas oscilando, do ponto de vista da organização estatal, entre a chamada Ordem e a chamada Revolução. Entre a sedução pelo formalismo jurídico de Estado quase liberal e as pressões tumultuárias de forças econômicas em processo de desenvolvimento. Entre um Estado estruturalmente agrário e uma aspiração por Estado situado, um tanto "à la diable", entre forças industriais, financeiras, tecnológicas.
Essa época, todos a conhecemos. Ou, pelo menos, conhecemos-lhe as linhas gerais, já delineadas pela ciência histórica.
Não se poderá, contudo, dizer o mesmo do homem Paulo Nogueira Filho.
Todos sabemos que a psicologia tem caminhado muito devagar no rumo do conhecimento do ser humano. Cartesiana, experimental ou em profundidade, seus resultados mais fecundos, nesse sentido, parecem ser, até agora, as análises da mente infantil, de Jean Piaget, e as penosas, as tantas vezes conjeturais, sondagens da infra-consciência devidas a Freud e, creio, principalmente, ao gênio de Jung, "esse desconhecido". Infelizmente, o "Quid est veritas?" é a interrogação com que se deve concluir qualquer estudo bem intencionado de psicologia humana.
Cabendo-me estudar, embora sumariamente, a obra de Paulo Nogueira Filho, e, em virtude de sua essência autobiográfica, a personalidade humana: do autor, julgo necessário advertir-vos de que não me considero apto para falar, com propriedade, do homem que Paulo foi.
Para suprir essa deficiência compreensível, recorro a duas confissões, também autobiográficas, de Jung: "Minha vida", escreveu o mestre da psicologia: analítica, "é a história de um inconsciente que conseguiu realizar-se". E: "Só se pode exprimir por meio de um mito o que um homem é segundo, sua intuição, interior e o, que ele pensa ser "sub specie aeternitatis".
Vou, por tanto, estudar a autobiografia de Paulo, à luz duma historicidade e do, mito, junguiano que ele, a meu ver, conseguiu ser.
UM "DICHTER" DA POLÍTICA

No, caso, de Paulo Nogueira Filho, o homem explica a obra tanto quanto, a obra explica o homem. Há, entre uma e outra, compromisso de sinceridade recíproca.
Aludirei aqui, inicialmente, ao, homem, apesar das dificuldades inerentes ao, tema. Depois, à obra.
Como sempre ocorre com qualquer ser humano, houve pelo menos dois Paulos: o Paulo físico, visível, gestual; e o que chamarei de invisível porque secreto,
Aparentemente, o Paulo, gestual foi muito, conhecido. Era, sobretudo, o político, E como corolário dessa condição, um rico homem de empresa, um combativo jornalista bissexto.
Nem sempre, porém, terá sido, bem compreendido nessa tríplice dimensão.
Conviria, assim, clarificá-la. Não, me parece justo, que o, perfil póstumo, de um homem, como ele, continue sendo, a mesma, digamos, caricatura psicológica feita, quando, ele vivia, pela observação apressada e, às vezes, superficial dos seus contemporâneos.
A meu ver, Paulo, foi político, autêntico um desses raros indispensáveis à própria existência do, Estado, e da comunidade. Simultaneamente realista e lírica, sua cruzada pela ordenação jurídica e social da vida pública, pelas liberdades contra a opressão tinha: tanto, de quixotismo bravio, quanto de desinteresse pessoal.
Em seu conhecido estudo "Mirabeau o el político", Ortega y Gasset parece fazer da impostura e da falta de caráter atributos necessários à personalidade do, verdadeiro político do, "homo politicus". Atribui-se, geralmente, a Talleyrand autoria de frase famosa, segundo, a qual o homem foi dotado de palavra não, para exprimir, mas para ocultar os próprios pensamentos.
Político, Paulo Nogueira Filho foi uma espécie de anti-Mirabeau orteguiano. Talleyrand nunca lhe foi autor - já não direi de cabeceira, mas de simples consulta.
Suponho que o político autêntico, está para o Estado, como o poeta legítimo para a linguagem. O primeiro, ordena o mundo concreto dos relacionamentos sociais; o segundo, o mundo ideal das relações de linguagem.
Cada um é, por isso, simultaneamente, autor, ator e profeta. "Dichter", como se diria em língua alemã.
Creio poder afirmar que a perspectiva do tempo nos ensinará esta simples verdade contundente: Paulo Nogueira Filho foi um dos poetas, um dos "Dichters", da política brasileira.
Será necessário, ainda, referir a maneira por que meu ilustre antecessor foi rico homem de empresa e jornalista polêmico, embora ocasional.
Como deixam claro seus livros, especialmente "Autogestão", Paulo acreditava na função social do capital e do trabalho. Nunca, porém, sob regime patriarcalista de convivência econômica.
Quem, como ele, estimava o valor social da produtividade do trabalho, não poderia cingir-se ao culto do dinheiro pelo dinheiro, à mística leiga e neurótica do enriquecimento pela acumulação de juros de capital. Tinha fé no suor do rosto operário; descria da fisionomia tensa do agiota.
Não foi, assim, um rico simplesmente ocioso, como tantos outros. Era muito paulista para deixar de trabalhar. Foi demasiadamente humano para desconhecer a dor alheia, especialmente a dos humildes. Era tão perspicaz que nunca se resignaria a ser, como certos personagens de Balzac, "valet de chambre" da fortuna, serviçal do cifrão.
Foi de ideias políticas o jornalismo que praticou. No "Diário Nacional" - que fundou mais com coragem do que com capitais - nunca fez proselitismo político em proveito próprio. Fazia dele apenas uma tribuna gráfica dos princípios que defendia contra os que repudiava.
É certo que, não poucas vezes, terá sido mais panfletário que articulista sereno. Mas, panfletário de boa fé. Duro no ataque, é verdade; mas guardando sempre, durante a luta, o "fair play" dos sinceros e dos fortes.

UM AVÔ CARLYLIANO

Não pretendo - nem saberia - fixar, aqui, a personalidade humana do meu eminente antecessor. Baseado em evidências disponíveis, posso, porém, formular hipótese de trabalho analítico sobre o valor que a ordenou em termos de vivência individual e de experiências no existir em termos de sociedade.
Esse valor foi José Paulino Nogueira, avô materno de Paulo.
Desde a adolescência, o neto - observador e sensível - viu, no avô, um homem excepcional, o herói carlyliano, um professor de vitórias na vida. E sem que o percebesse, talvez, identificou-se com ele. Sua vida, no tempo histórico, deveria ser - e seria - continuação da vida do velho José Paulino. Paulo referiu-se numerosas vezes ao avô querido quando evocou a própria infância e mocidade.
Deslumbra-o o solar da rua Conselheiro Crispiniano: "Para mim, aquilo parecia um conto de fadas. Meu avô José Paulino, o caixeirinho de Campinas, chegara àqueles cimos!" ("Ideais e lutas de um burguês
progressista", Editora Anhambi, São Paulo, 1958, pág. 44). José Paulino permitia ao neto ficar "na escuta da política". Paulo comenta: "Eu, preparatoriano de calças compridas, não me limitava mais tão-só a sapear a prosa de José Paulino com seus amigos. De vez em quando, arriscava meus apartes e, com ser escutado, ia criando confiança em mim" (Idem, pág. 45).
Creio que se Paulo tivesse escrito autobiografia à maneira tradicional - e não, como fez, à maneira de variante de ensaio político - poderia dar-lhe, por epígrafe, o pensamento junguiano, já citado: "Minha vida é a história de um inconsciente que conseguiu realizar-se". Mas o leitor dessa autobiografia teria de situar, além desse inconsciente, a força do arquétipo que me parece tê-lo motivado: o arquétipo primevo do Velho Sábio, nome que se pode dar, em psicologia analítica, à figura civil e familiar do avô propício.
A identificação do neto no avô foi tão profunda que - sabe-se - Paulo sempre desejou escrever a biografia de José Paulino.
Não pôde fazê-lo, é certo. Mas devemos lembrar-nos de que seu primeiro trabalho literário - a conferência "O Clube Republicano de Campinas", publicada em 1916 - pode ser considerado, de algum modo, capítulo possível da biografia a ser escrita.
Demonstrando, nesse trabalho, que, como Presidente da Câmara Municipal de Campinas, José Paulino é quem proclamara a República na cidade, Paulo parecia querer avisar a todos: "Vejam só! Foi meu avô José Paulino quem proclamou a República em Campinas. Ele, e mais ninguém!"
Paulo tinha razões para admirar o avô, para além dos vínculos de afetividade genética.
José Paulino Nogueira encarnava bem a figura legendária do "self-made man" paulista. Tinha amor ao trabalho, espírito de sacrifício e a vontade de vencer que caracterizam, hoje e no passado, o caráter bandeirante.
Nasceu, em 1853, quase na pobreza.
Campinas estava muito longe, então, de ser considerada cidade relevante do interior do Estado. Teria de cumprir, ainda, mais sete anos de lutas até poder começar a competir, em matéria de renda tributável, com Bananal, a mais rica cidade do então poderoso Vale do Paraíba.
Foi a partir da zero hora da riqueza, e numa Campinas ainda economicamente insegura, que José Paulino se elevou, com trabalho e esperança, à condição de um dos líderes da economia, da sociedade e da política de São Paulo.
Aos que nada encontrarem de singular nessa compreensão de neto com relação a avô - pois compreensão assim é julgada tão trivial que pode parecer quase folclórica. - lembrarei que a de Paulo é singular na medida, mais profunda, em que ele desejou reviver, em si mesmo, o avô. E não apenas evocá-lo como tradicional e inofensivo protetor brincalhão, o avô sempre do sim, o clássico avô-montaria-de-neto.
É certo que Paulo não se cingiu à imitação de José Paulino. Tinha,
para uso próprio, conceito muito severo de personalidade livre.
É, porém, fora de dúvida que se inspirou, não poucas vezes, na vida e nos exemplos do avô.
A vida de José Paulino Nogueira era sua terra de Anteu. Tocava nela, periodicamente, para fortalecer-se, para humanizar-se cada vez mais.

CONFISSÃO E TESTEMUNHO

Paulo Nogueira Filho não foi - nem, creio, quis ser - escritor igual ou semelhante aos que cultivam as chamadas belas letras. Escritor profissional, no sentido que se atribui, comumente, ao substantivo literato. Nunca foi, como diria Oswald de Andrade, "escritor de carteirinha".
Era espírito mais afeito à análise científica dos fatos, principalmente de fatos políticos, econômicos e sociais. E, presumo, só se tornou escritor -escritor no sentido amplo da palavra - em virtude de dois imperativos de sua sincera e livre personalidade psíquica: o desejo de confessar-se para justificar-se, como homem; e a decisão de testemunhar em favor do que há de legítima "charitas" cristã na verdadeira liberdade humana, em favor de um mundo para sempre liberto de todas as opressões.
Cabe-me precisar, ainda: essa confissão e esse testemunho provêm no tempo genético e no tempo da cultura, de um paulista inconfundível. Vale dizer: do paulista ao mesmo tempo sincero e afoito, realista e ingênuo, lírico e prático em sua paixão de ser brasileiro.
Quem estuda, criteriosamente, a obra escrita de meu ilustre antecessor, não haverá de chegar, suponho, a conclusão diversa.

A OBRA ESCRITA

Os centros de interesse da obra escrita de Paulo Nogueira Filho podem ser assim considerados, do ponto de vista da análise critica: a) problemas jurídicos, ligados principalmente à atuação do autor como Deputado federal por São Paulo; b) problemas sociais específicos, como os do livro "Sangue, corrupção e vergonha"; c) problemas de História - de história pessoal e de História coletiva - como ocorre em "Ideais e lutas de um burguês progressista", tanto nos dois volumes relativos ao Partido Democrático e à Revolução de 1930 como nos dedicados à "guerra cívica" de 1932; e, finalmente, d) as questões de política e economia empresariais exaustivamente expostas e discutidas em "Autogestão".
Suponho que o estudo, mesmo sumário, de obra assim extensa, deve ser feito através de sondagens críticas parciais nos centros de interesse que a compõem.

PLANFLETOS DE HISTORIÓGRAFO

Depois de publicado seu trabalho sobre "O Clube Republicano de Campinas", Paulo silenciou, editorialmente, durante 29 anos.
Só em 1945 recomeçaria atividades de escritor.
A partir de então, e até 1956, ano do aparecimento do livro "Sangue, corrupção e vergonha", deu à publicidade 4 opúsculos e dois livros. Todos, versando temas jurídicos, políticos e sociais. (Com a queda do regime de Vargas, Paulo voltara às lutas políticas, ocupando uma cadeira de Deputado federal por São Paulo).
Esse momento da obra paulina é, certamente, de leitura indispensável. Nem lhe faltam, de vez em quando, observações e achados fascinantes.
É, porém, antes historiografia que História. Documenta o inflamado, e justo, ardor polêmico do democrata nato em "defesa das instituições fundamentais do regime representativo", naquele Brasil apenas saído de longo estágio à sombra do poder carismático de Getúlio Vargas. Mas não é o ponto alto da carreira do autor, mesmo se a considerarmos mais sob perspectiva política que literária.
A explicação dessa circunstância parece-me clara. Paulo não era, propriamente, jurista. E contentava-se com ser, àquela época, autodidata de sociologia econômica.
Seus trabalhos de então - lidos, hoje - ressentem-se dessa dupla contingência. Têm, digamos, a eficácia do bom panfleto. Falta-lhes, contudo, aquela nota de originalidade no plano da teoria jurídica ou econômica, sem a qual os documentos dessa natureza servem apenas à historiografia do tempo político a que se destinavam.
Num dos seus numerosos instantes de autocrítica, Paulo queixou-se do sofrível curso de Direito que fizera na velha Academia do Largo de São Francisco.
Não creio, porém, ter sido esse o motivo por que não foi - já não direi jurista, mas advogado militante, como tantos.
A meu ver, Paulo descria da parada codificação das leis escritas. Interessava-lhe - e creio que até intuitivamente - bem mais a dinâmica das forças sociais, que geram as leis mutáveis, do que a possível perfeição formal das leis transformadas em palavra impressa. Era muito dinâmico - ou muito sagaz - para ver, na lei escrita e dogmática, o sol irrecusável da convivência social.
Autodidata de sociologia econômica, valeu-se desse aprendizado, feito de observação e de experiência vivida, para, nesses mesmos trabalhos, ferir a atenção dos chamados juristas puros e dizer-lhes mais ou menos isso: a lei escrita nasce, quando válida, das contradições e da dor da vida. Não deve ser, como parece a alguns, decorativa como punhos de renda.
E o valor, ainda visível, desses trabalhos, digamos, circunstanciais, é o de serem pioneiros, também, de uma posterior tomada de contacto do nosso Direito com as fontes autênticas do estilo brasileiro de convivência humana. Os pontos mais altos da obra escrita de Paulo Nogueira Filho, são, a meu ver, "Ideais e lutas de um burguês progressista" e "Autogestão". É nos numerosos volumes dessa longa autobiografia política que Paulo dá a medida exata de sua condição de escritor e de homem, de paulista e de historiador.
Em "Ideais" - já o assinalei - narra, principalmente, a história da formação e desenvolvimento de um Partido político criado para opor-se, na luta pelo Poder, ao todo poderoso P.R.P. Em "Autogestão" - ainda um momento, creio eu, de seus ideais de "burguês progressista" - procura justificar, teórica e praticamente, a tese da necessidade de participação dos operários nos conselhos diretivos e nos lucros das empresas, como medida preparatória mais adequada para o já irreversível processo de democratização do capital, no mundo de hoje.
São alguns milhares de páginas densas de meditação, embora leves de estilo. Ser-me-ia impossível comentar-lhes, neste discurso, alguns dos capítulos mais sugestivos. São demasiadamente ricos de sugestões e, até, de convites à controvérsia para poderem ser resumidos lealmente.
Impossibilitado de estudá-las com a devida profundidade, cumprirei meu dever para com a memória do autor ressaltando-lhe, na vocação para o estudo da História, a honestidade do método de análise, e, pelo menos, alguns dos seus frutos, porventura mais abertos à polêmica.
História, historiador... Conviria, contudo, um esclarecimento preliminar.

OS CARTOMANTES DA FUTUROLOGIA

À primeira vista, pode parecer anacronismo o falar-se, hoje, de História, de análise presente do passado.
Há quem afirme que, ciência ou arte obsoleta, a História já está, praticamente, revogada pela Futurologia - ciência jovem, útil, vigorosa. Ciência "prá-frente" - asseguram moços e velhos possivelmente imaturos, depois de terem ou não lido "O ano 2.000", dos futurólogos Herman Kahn e Anthony J. Wiener.
Peço, porém, licença para lembrar que esse livro é, - menos apologia, - que desculpa da Futurologia.
Seus autores consideram-no tão somente "uma estrutura para especulação sobre os próximos 33 anos". Advertem de que seu livro "está longe de ser uma soma exaustiva de conjeturas sobre todo elemento importante do futuro; e, menos ainda, uma tentativa: de "predizer" qualquer aspecto particular do futuro". E assim se justificam: "Infelizmente, as incertezas, em quaisquer estudos que se projetem a mais de 5 ou 10 anos, são geralmente tão grandes, que a simples cadeia de predição, mudança política e nova predição se torna realmente muito débil".
Como se vê, a Futurologia - segundo dois dos seus eminentes sábios - não passa, ainda, de rascunho ou esquema de especulação, organizado mais para deflagrar do que para prever problemas. E organizado, ou rascunhado, tanto à margem do chamado pensar científico ortodoxo quanto em função da crise atual do racionalismo e das ciências.
Não cabem, aqui, referências mais objetivas a essa crise. Para documentá-la, bastará lembrar a incapacidade de as ciências chamadas rigorosas definirem limpamente os conceitos básicos de espaço e de tempo.
Será melhor, por isso, regressarmos à História.
Ciência, a Futurologia ainda está por nascer. Arte, parece novela de "science-fiction".
Ao menos por enquanto, os futurólogos não passam de cartomantes da matemática e da estatística. Acredite neles quem quiser.

HISTÓRIA, "FAÇANHA DA LIBERDADE"

O espírito de Paulo era antes o do cientista experimental que o do tribuno do Direito, Em parte por vocação política, em parte por essa característica espiritual, consagrou-se, literariamente, à História. E colocou seu método de investigação dos fatos a serviço da tese que amava sobre todas as coisas: a do mundo verdadeiramente livre.
Pode parecer paradoxal, e indefensável, essa aliança entre método científico e preconcebida tese político-filosófica.
Na realidade, o paradoxo inexiste.
Como Croce, embora com maior atenção à cotidianeidade do fluir dos fatos, Paulo considerava a História como "façanha da liberdade". E esforçava-se por demonstrar a validade da tese ilustrando-a com massa de fatos selecionados e manipulados com rigor científico.
Fazia-o, invariavelmente, com amor. Nunca, porém, com a desprezível paixão menor do sectário, dos empulhadores de textos. Seu entusiasmo pela pesquisa e interpretação de fatos históricos foi a do verdadeiro homem de ciência. (A atitude de neutralidade científica diante da natureza e da vida é apenas lenda de manuais escolares. Não há ciência, não há História sem paixão).
Dessa pesquisa, dessa interpretação só poderiam resultar, como resultaram, análises perspicazes das virtudes e defeitos da burguesia brasileira de sua época, bem como das respectivas consequências no lento processo de autoafirmação do Brasil.
Suponho poder afirmar que a essencial crítica paulina à sua classe burguesa era uma só: a de que ela deveria assumir, no processo brasileiro, o comando das forças progressistas da sociedade, dando, definitivamente, de ombros, à filosofia hedonista em que tantas vezes parecia comprazer-se.
Burguesia, pois não, mas progressista; e, assim, em aliança com o Trabalho para a emancipação econômica de nossa independência política.
O quadro político, econômico e social levantado, com esse objetivo, por Paulo, é, sem favor magistral. Nada - ou muito pouco - lhe escapa à argúcia de historiador, de psicólogo e de sociólogo da História.
Nele estão, de corpo inteiro, o São Paulo e, por extensão, o Brasil monocultor e "essencialmente agrícola" que começaram a morrer, politicamente, a partir da revolução de 1930. Nele estão também, de corpo inteiro, o São Paulo e, por extensão, o Brasil da época da revolução constitucionalista de 1932, quando um choque, aparentemente só militar e só pelo Poder, iria ser transformado, pelo inconsciente coletivo de São Paulo de Piratininga, numa epopéia de bravura, de sacrifício, de idealismo e até de boa fé política.
Um capítulo de "Ideais" e outro, de "A guerra cívica", bastam, a meu ver, para evidenciar a honesta, a fremente lucidez do historiador.
Nesse sentido, selecionei o primeiro capítulo, intitulado "Estudante de Direito", de "Ideais e lutas de um burguês progressista", e as páginas de introdução aos volumes de "A guerra cívica", em que o autor analisa - e refuta - uma interpretação mecanicamente marxista da Revolução Constitucionalista de 1932.

POLÍTICA SOB AS ARCADAS

O capítulo referido tem 52 páginas. Conta, principalmente, a iniciação do autor na vida acadêmica em que o estudo do Direito era, por assim dizer, companheiro inseparável de outro gênero de estudos: os de ingresso na política partidária da época.
Valha-me o lugar comum: lê-se o capítulo como se ele fosse boa ficção. Em estilo seco mas sugestivo; dando à narração um ritmo de
"collage"; disposto a dizer a verdade, mesmo que sob forma de autocrítica - Paulo Nogueira Filho escreveu, em "Estudante de Direito", páginas que faltavam à história convencionalmente cronológica da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Entre tantas observações sagazes, esse capítulo contém um estudinho pertinente sobre as relações entre os dois grupos de acadêmicos em que se dividia, por acordo tácito, a coletividade estudantina: o pequeno grupo fechado, dos aristocratas, e o outro - bem mais numeroso - da, digamos, plebe.
Posso dar, aliás, testemunho pessoal sobre a validade da análise paulina. A situação era a mesma durante o período em que estudei nas velhas Arcadas - de 1933 a 1937.
Evoquei-a em artigo sobre o Prof. Almeida Júnior, publicado na "Folha da Manhã" em outubro de 1948, e em que aludi a alguns dos meus colegas de turma, um dos quais, Manoel Tavares da Silva, mestre de literatura francesa e de bom gosto literário.
Envaidece-me a circunstância de minhas idéias a respeito coincidirem com as que meu eminente antecessor exporia, dez anos depois, no primeiro capítulo de "Ideais".

A MÁSCARA DE UM CHAVÃO

Pode considerar-se da mais alta significação para o estudo, do pensamento político de Paulo Nogueira Filho a "Introdução geral" aos volumes de "A guerra cívica".
Nessas longas páginas, o autor expõe diversas interpretações da Revolução constitucionalista de 1932. E, como era do seu dever, aponta-lhes erros e parcialidades. Entre elas, gostaria de ressaltar a então chamada interpretação marxista da "guerra cívica".
Todos sabemos em que consistiu esse equívoco.
O marxismo brasileiro da época considerou a Revolução bandeirante como simples tentativa de retomada, pelas armas, de um Poder que fugira das mãos paulistas em virtude de a aristocracia cafeeira ter sido superada, historicamente, depois do "crack" financeiro de Wall Street, pelas forças da então nascente industrialização brasileira.
Paulo não negou - antes, evidenciou - o vínculo necessário entre movimento revolucionário e tomada, ou retomada, do Poder. (Não fosse ele, como era, político autêntico!) .
Recusou-se, porém, a permitir que um movimento de tão amplas
proporções, inclusive psicológicas, como a Revolução paulista, fosse interpretado unilateralmente, e, o que era pior, desfigurado por motivação que não honrava nem o civismo paulista, nem o próprio entendimento correto da doutrina marxista.
A perspectiva do tempo deu razão a Paulo. Aquela análise marxista da "guerra cívica" estava errada; à luz do verdadeiro marxismo. Era
crítica do já então superado marxismo mecanicista.
A possível motivação política e econômica da luta não lhe retirava o caráter de epopéia. E de epopéia brasileira, se a situarmos no panorama da história do Brasil que é, em parte substancial, uma função do pioneiro espírito paulista em luta pela autoafirmação da nacionalidade.
Como todos sabem, existe, hoje, perfeitamente definida, a "marxologia", ou seja, uma ciência para estudo do pensamento de Marx.
Baseada, de início, na análise dos escritos filosóficos e políticos do jovem Marx, a marxologia desmascarou, definitivamente, todos os chavões que, até sua aparição, passavam como sendo marxismo idôneo. E
um dos quais é, precisamente, o chavão pretensioso, mas estéril, com
que, principalmente na década dos anos 30, alguns teóricos marxistas
nacionais mal informados pretenderam analisar, e desmoralizar, a revolução constitucionalista de 1932.
Por incrível que pareça, o "burguês progressista" Paulo Nogueira Filho teve a intuição, pelo menos, da marxologia. Basta, a, meu ver, esse fato para honrar-lhe a condição de cientista da História.
Cientista que pagou o preço amargo do próprio idealismo: alguns
exílios e 26 prisões. E cuja obstinação coerente pela Liberdade lembra-me a do outro seu grande companheiro de lutas: Júlio de Mesquita Filho, o destemido, o honrado "chevalier sans peur et sans reproche"
do liberalismo político.
Paulo Nogueira Filho, Júlio de Mesquita Filho.
Ilumina-os, hoje, o "sol dos mortos". Iluminou-lhes as vidas esta convicção definitiva: Felizmente, não há cárcere para sonhos; nem Código Penal, para a esperança.
Reitero: quem lê os livros fundamentais de Paulo Nogueira Filho haverá de considerá-los, em conjunto, e um pouco de acordo com o desejo de Gramsci, como ensaios políticos de essência autobiográfica.
São documentos palpitantes das relações entre a vida do autor e a experiência global dai época em que pensou e agiu. E - afirmo-o sem hesitação - com a marca de uma grande vida.
Agora que, desaparecido, Paulo aguarda a inevitável justiça da
História, pode dizer-se, desde já, que seu nome ficará, ao lado dos de Jorge Street e Roberto Simonsen, como um dos líderes indiscutíveis, no Brasil, do melhor pensamento capitalista contemporâneo.

"AUTOGESTÃO"

"Autogestão", seu último livro, contém 397 páginas, das quais 14, de bibliografia. É simultaneamente, obra de erudição e de atualidade óbvia.
Nela, Paulo defende a tese de que a democratização do capital de empresa é a técnica mais adequada - senão única - de salvação do capitalismo no mundo atual.
Esse democratizar-se postula participação dos empregados nos lucros
e na gestão da empresa, E através de contrato coletivo de trabalho, que vincule os empregados à responsabilidade de contribuir para o aumento da produtividade - base de sobrevivência da empresa tradicional neste mundo espacial e tecnológico.
"Autogestão" é livro de publicação recente. Creio que ainda não foi submetido à análise sistemática da crítica especializada. Merece, porém, leitura imediata, mesmo por parte de leigos.
Trata-se, a meu ver, de ensaio escrito com as reconhecidas virtudes da "scholarship". O estilo, conciso e eficaz; o método lógico de exposição; a afirmativa acompanhada sempre de prova ou citação adequada; a visão global do problema, depois da respectiva análise setorial; e, sobretudo, o respeito à lição dos fatos.
Não se poderá dizer, é certo, que, escrevendo esse livro, Paulo tenha conseguido manter aquela frieza emocional diante do tema que, segundo alguns, define trabalho de "scholar" autêntico.
Não; não a manteve. Mas também não transigiu com o próprio entusiasmo; nem com o grande, nem com o miúdo. E um dos encantos de "Autogestão" consiste precisamente em o leitor perceber a luta de Paulo para manter serenidade expositiva em instantes em que lhe seria mais cômodo valer-se da simples linguagem de panfletário honesto.
Gostaria de citar, como documento da humanidade essencial do pensamento paulino, as páginas em que ele estuda, em seu último livro, a atual ameaça de "robotização" do homem.
Não são apenas páginas de alta análise filosófica, política e econômica. São defesa e ilustração clarividentes do poder da condição humana diante do imperialismo publicitário de robôs, computadores eletrônicos, modelos de inteligência artificial e outros brinquedos ilustres com que se excita a razão lúcida do próprio homem.
Senhores Acadêmicos:
Dentre as alegrias desta noite, uma - e das mais puras - é a de ser recebido, nesta Casa, por um poeta da grandeza lírica e humana de Cassiano Ricardo.
Tive o privilégio de conhecê-lo quando eu era ainda estudante de Direito. Trabalhei a seu lado durante longos anos. Nossa amizade foi, desde o primeiro instante, fraternal. Pude, por isso, acompanhar, com atenção e emoção, a atividade literária múltipla, especialmente a poética, de quem é, como todos sabem, um dos raros grandes poetas brasileiros.
Já escrevi, diversas vezes, sobre a poesia ricardiana, que considero digna de ressonância transcontinental. Chamei de "brasileiro cósmico"
Jeremias Sem-Chorar, personagem do seu mais recente livro de poemas. E já me queixei, publicamente, de ele ter assinado seu imortal "Soneto da ausente" - soneto que todos os poetas - reais ou apenas frustrados, como eu - gostariam de ter escrito, mesmo sem assiná-lo:

É impossível que na furtiva claridade
que te visita sem estrela sem lua
não percebas o reflexo da lâmpada
com que te procuro pelas ruas da noite.

É impossível que, quando choras,
não vejas que uma das tuas lágrimas é minha.
É impossível que com teu corpo de água jovem
não adivinhes toda a minha sede.

É impossível não sintas que a rosa
desfolhada a teus pés, ainda há um minuto,
foi jogada por mim, com a mão do vento.

É impossível não saibas que o pássaro
caído em teu quarto por um vão da janela
era um recado do meu pensamento.

Ingresso, por isso, nesta Casa, sob signo duplamente propício: o da poesia e o da consciência literária de um grande artista que é, também, grande homem.
E - last but not least - a satisfação de ver prestigiando, pessoalmente, esta solenidade, o Governador do Estado e Presidente de Honra da Academia, Dr. Roberto Abreu Sodré.
Político por vocação e destino, Sua Excelência é amigo leal, amigo desinteressado da literatura, das artes, das ciências. Posso testemunhá-lo: sou seu modesto colaborador.
Fazendo de uma pacífica revolução educacional o centro de interesse do seu governo de mãos e de idéias limpas, programou e fez executar uma política de cultura que, quando divulgada, convocará, para São Paulo, o aplauso do Brasil.
O Museu de Arte Sacra do Estado, a ser inaugurado brevemente, é um dos muitos exemplos dessa política de inteligência e de amor ao que há de verdadeiramente perene na vida: arte e espírito, que transcendem ao tempo histórico.
Senhores Acadêmicos:
Reitero-vos comovida gratidão por me terdes convocado para vossa companhia.
Ao empossar-me na Academia Paulista de Letras, confesso que não me sinto com alma de imigrante em terra nova.
O país do espírito é um só; e são irmãos os que o habitam.



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