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DISCURSO DE RECEPÇÃO PELO ACADÊMICO ISRAEL DIAS NOVAES
Acadêmico: José Benedicto Silveira Peixoto
"Quando foi a Academia Paulista de Letras festivamente inaugurada, a 27 de novembro de 1909, já José Benedicto Silveira Peixoto o testemunhou, nos seus oito meses e pico ..."

Senhor Presidente, Acadêmico Péricles Eugênio da Silva Ramos, Senhores Acadêmicos, Minhas Senhoras, Meus Senhores, Senhor Acadêmico Silveira Peixoto:
- ressaltemos desde logo, acadêmico Silveira Peixoto, a circunstância de não termos hoje, aqui, perante este denso e tenso auditório, um primeiro encontro entre o escritor e a Instituição que o recebe: na verdade, escritor e Academia nasceram juntos, ao mesmo tempo, naquele remoto 1909 e ambos na Paulicéia. Quando foi a Academia Paulista de Letras festivamente inaugurada, a 27 de novembro de 1909, já José Benedicto Silveira Peixoto o testemunhou, nos seus oito meses e pico ... Imagino o menininho paulistano, com o moreno pescoço já fazendo entrever a gravata "borboleta" que o enfeitaria enquanto o seu portador - e este chegou a nossos dias e aqui está, ostentando larga reserva de vida, paulista exponencial construído em honra e raça. Larga reserva de vida e trabalho, presididos ambos por notória generosidade de espírito. Um cidadão de mentalidade coletiva, apostado em servir sem se servir, numa caminhada não raro áspera,
marcada de sacrifícios e incompreensões, mas tendo a iluminá-la uma tranqüila certeza de não haver cedido nunca e só ter exigido o justo e o digno, para a sua gente e o seu tempo.
Pois aí está Vossa Excelência, Sr. José Benedicto Silveira Peixoto, finalmente assentado numa cadeira que há tanto o aguardava... Vossa Excelência acalentou a extensa e intensa aspiração de um dia conquistá-la, não pelo manejo escuso, mas pelo reconhecimento de títulos e merecimentos. Estes Vossa Excelência os tem, de sobejo: o homem e a obra portam alta categoria. Não adentra os nossos portais de mãos vazias e coração ermo. Traz o nome e os livros, estimados todos pelo amplo meio paulista.
Faço causa comum com a gente, a gente toda de São Paulo, senhor Silveira Peixoto, que sempre o conheceu de perto e bem. Na verdade, Vossa Excelência integra a paisagem paulistana e não apenas a intelectual. Os dois octogenários que hoje aqui se recebem, a Academia e o escritor, ambos em pleno vigor, mereceram-se reciprocamente. Não é à toa que o recipiendário entra pela porta da frente e em toda a sua altura: foi ungido sem competidores, solitário na apresentação e perante a corporação solidária; mais: após esperar tanto tempo pela sua hora, viu finalmente esta consubstanciar-se em algo pleno de simbolismo: sua cadeira tem o número 1, cadeira presidencial, na qual pela primeira vez acomodou-se o primeiro presidente, Brasílio Machado... Correu sozinho a pista da imortalidade, culminação de uma espera que suscitou até mesmo o ineditismo de uma respeitosa indagação à Mesa, formulada do Plenário pelo poeta Paulo Bomfim, a quem parecia demorada a unção do escritor... Poucas vezes assistiu a Instituição a uma aquisição tão generalizada, a uma decisão de tão decidida e inquestionada unanimidade.
Recordo a esta altura um acadêmico de passado recente, incomparável
narrador das Bandeiras e de São Paulo, Affonso de E. Taunay, ao informar-se da minha jovem decisão pela imprensa:
- Você dará um ótimo técnico em generalidades...
Definição irônica, no entanto cabe-nos à feição. Somos os jornalistas a todo momento convocados para assuntos díspares, às vezes surpreendentes.
- Jornalista - conceituou um dia Galeão Coutinho - tem de conhecer um pouco de tudo sem ter tempo para conhecer tudo de nada.
Esse aparente reparo ao homem de imprensa não se aplica a nós todos. Sustento mesmo a tese de que em todo jornalista vocacionado lateja um escritor. Tristão de Athayde vai mais longe: a seu ver, constitui o jornalismo nada menos de que um gênero literário e como tal tem de ser reconhecido. Sei da existência de numerosos confrades a reterem em secretas gavetas originais de romances, poemas e contos, para, quem sabe, um dia... Quando divulgadas, tais obras revelam características incomuns nos literatos que o sejam exclusivamente: fluência, sem prejuízo da concisão, oralidade qualificada... Jornalista escreve mais como lê, do que como quem escreve, pois suas laudas visam a consumo rápido e imediato. "O jornal- eis aí uma velha definição - não passa de um livro sem fim ... "
Vossa Excelência, Silveira Peixoto, foi para o jornal e vem do jornal sem sair dele. Madrugou nas redações. Estreou na Província, demandou a Capital na adolescência, arranjou emprego, firmou-se: para sempre. Pulou de jornal em jornal. Entrou em jornal novo, assistiu a empastelamento de órgão em que labutava; cresceu profissionalmente, ganhou nomeada. Seu pouso mais alongado e visível deu-se na "Gazeta", o paulistaníssimo mensageiro de Cásper Líbero que aguarda recuperação. Ao comprido de decênios, São Paulo afinal passou a ver no assíduo e acelerado transeunte de seu centro algo como um sinônimo de repórter, grande repórter, inconfundível mormente por manter-se fiel mesmo na vestimenta à "belle epoque": colete, gravata borboleta... Retrato em preto e branco do "Diário Nacional" e do Partido Democrático...
Pois toda a obra literária e historiográfica, principalmente, que V. Excia.
elaborou mostra raízes e espírito jornalísticos. A mais popular delas, "Falam os Escritores", reúne uma série infindável de entrevistas com os intelectuais da época, lá pela terceira década do século. Às voltas com as limitações impostas pelo "Estado Novo", que de próprio só oferecia a arbitrariedade, a violência, a corrupção, V. Excia., a exemplo dos confrades decentes, usava a imaginação para tourear a censura. Revivedor do gênero de João do Rio, com seu inquérito literário dos anos dez, passou a entrevistar escritores inicialmente coestaduanos, para logo superar as fronteiras e galgar todo o país.
Quando lhe foi sugerido - ou melhor, imposto - que reunisse em volume o material estampado na revista "Vamos Ler", V. Excia. o fez com esta exigência: um prefácio de Monteiro Lobato, que, não por mera coincidência, se encontrava preso, pelo singular delito de opinião... Assim, a abertura lobateana, eivada de intenções, é datada de "10 de Junho de 1941 - Casa de Detenção".
"Falam os Escritores" com os anos fez-se indispensável a quem quer que intente conhecer ou relatar o pensamento artístico-literário do Brasil. Muitos dos depoimentos são únicos, por significarem posição e atividade de autores que não deixaram memórias ou reminiscências. Impõe-se manusear os três volumes do privilegiado repórter, ora raros mas em vésperas de reedição, a 4ª ou 5ª.
(Quando ouvido, Agripino Grieco perguntou ao repórter, sorrindo
matreiramente:
- "Você ainda não pensou em candidatar-se à Academia Paulista de Letras?"
Peixoto, contrafeito:
- A gente sempre sonha...
Agripino:
- Pois não sonhe mais. Acadêmico da Paulista só é imortal até Queluz..).
Outra marca pessoal de V. Excia. instrui igualmente a condição de jornalista. A versatilidade, que atordoa. Não só freqüenta, como agita assuntos contrastantes e às vezes complexos. Musicólogo, jurista, técnico em cooperativismo, teatrólogo, ator! Em dado momento redigiu uma peça radiofônica de divulgação de Rochdale, tema que em outras mãos seria enfadonho, não nas suas; participou em pessoa do elenco e mais tarde ouviu, deslumbrado, a obra transmitida em inglês pela B.B.C.! Na música, escreveu, deu conferências pelo país. Para estranheza geral, fez da
harmonia objeto de rumorosa polêmica, da qual resultou o folheto "Rapsódia de Escândalos" . Em páginas candentes, como de uso, reduziu V. Excia. a escombros um concurso musical promovido na época. Questionou o encaminhamento do certame e sobretudo suas decisões finais, para pasmo dos interessados, que eram todo mundo.
Ora, numa viagem a Piracicaba, mais de devaneio, V. Excia., em visita a uma escola que ostentava o nome de Prudente de Moraes, soube pelo diretor que se estava às vésperas do centenário do notável estadista. Era 1942. Ocorreu-lhe de pronto um artigo, assinado, na "Gazeta". Suas primeiras investigações logo revelaram a grandeza e profundidade do assunto. Uma reportagem? Também não. Com a marcha dos dias, decidiu-se o jornalista por uma dúzia de folhetins semanais, logo editados na "Gazeta Magazine". A matéria ferveu. Com ela, instalavam-se as comemorações do centenário do estadista ituano. Tanto interesse suscitaram os rodapés que Cásper Líbero e outros dirigentes e confrades da imprensa passaram a instar junto ao autor para que se debruçasse o assunto e redigisse uma biografia de Prudente, à altura da sua expressão histórica, ainda inexistente.
Experiência inédita para V. Excia ... Mas, como jornalista é capaz de tudo, logo se soube que Silveira Peixoto submergira na pesquisa de fatos e feitos do grande ituano. À sua maneira, quer dizer, à maneira de um jornalista completo, exigente, infatigável, arrojado. Durante dez meses, espanou coleções de jornais de todo o país, desentranhou anais do Congresso Nacional e da Câmara Paulista, no segundo Reinado e na República, galgou bibliotecas na busca da "Política Geral do Brasil", de José Maria dos Santos, "Da Propaganda à Presidência", de Campos Sales, a "Cronologia Paulista", de 1. Jacinto Ribeiro, volumes de Luiz Silveira, Wenceslau Escobar, Evaristo de Morais, David Carneiro, outros muitos mais. Repassou os relatos escultóricos de Euclides da Cunha, para reter ante os
olhos a tragédia de Canudos. A essa emocionada retomada pelos" Sertões" ficou-se devendo, certamente, a elevação das páginas de V. Excia., quando se ocupa de um dos mais trágicos capítulos da vida de Prudente.
Mas, não só aos livros recorreu V. Excia., no preparo do seu volume
fundamental. Singularizava sua tarefa pesquisadora a desenvoltura, rara nos
historiadores, mas própria da personalidade do repórter. Desenvoltura que raia - que fazer? - pela aparente imprudência. Localizando contemporâneos de Prudente, encostou-os à parede e deles extraiu revelações e confidências jamais formuladas. João Sampaio, o genro, amigo e companheiro de escritório do estadista, tratou com V. Excia. dias e semanas inteiras e lhe deu endereços inestimáveis para novas informações. A família inteira de Bernardino de Campos franqueou-lhe os arquivos, desamarrando maços e maços de cartas rigorosamente inéditas. A família Moraes Barros, obviamente, abriu-se para um escritor que não buscava senão a verdade, e só esta convém a um homem honesto como Prudente José de Morais Barros. Parece-se com ele; é ele.
Reunida a documentação, com ela fechou-se V. Excia. no escritório, no
intuito primeiro de dar-lhe sentido e continuidade. Armar o livro. Ordenar os
fatos e episódios. Compreender o significado de gestos e decisões.
Ao termo de vinte noites febris, apenas vinte, mostrava-se obra redigida,
apta a uma primeira revisão.
Espanta que em tempo tão escasso tenha sido elaborado um estudo de soberba valia para o efetivo conhecimento da terrível sagaqueno fundo significa a história do Brasil. Deve V. Excia., na excitação da narrativa, ter-se sentido como atuado, ou, na expressão kardecista, mediunizado. Páginas comovedoras, pungentes, tocantes na objetividade, que aqui e ali chegam a parecer cruéis.
A jornada cívica e pessoal de Prudente ali se descreve, miudamente, em
pormenores que o todo do livro explica e justifica. Estranhara eu de início, confesso-o a V. Excia., o título escolhido para a obra: "A Tormenta que Prudente de Moraes Venceu!". A simples leitura das quatrocentas páginas assegura, no entanto, o acerto do rótulo: a vida de Prudente significou mesmo uma tormenta, e ele a venceu.
Já agora, não há quem possa dispensar o manuseio deste livro, em estudo sobre o Brasil, mormente se abordar o tempestuoso quadricênio da consolidação republicana. Os documentos originais nele estampados, frutos da obstinação e inteligência de V. Excia., ingressaram por suas mãos no grande quadro do roteiro histórico nacional.
Recordo agora, senhor Acadêmico, que V. Excia. participa e dirige entidades numerosas do meio cívico-cultural de São Paulo. Saliento, dentre elas, o Instituto Histórico e Geográfico. Neste foi V. Excia. recebido em sessão solene na noite de 6 de setembro de 1943, noite quente de São Paulo. Contavam os associados da nobre entidade como uma cerimônia rotineira, assemelhada às demais do gênero. Não fosse V. Excia. o recipiendário!... E
não se amargasse o Estado Novo!. ..
Tenho presentes os termos de seu pronunciamento, Senhor Acadêmico. Retraçou V. Excia. o itinerário de atividades culturais e políticas desenvolvidas ao longo da existência, para, fixando-se em Prudente, deixar claro que a reta, lúcida, heróica conduta geral deste deveria ser cotejada com a de tantos, em todos os tempos, que haviam agido ao revés - arbitrários, atrabiliários, pequeninos. Convoca V. Excia., então:
"- Meus irmãos, homens livres que não tolerais os despotismos, as tiranias!
Meus irmãos, homens livres que não sabeis viver sob o peso infamante de algemas e grilhões!
Meus irmãos, homens livres que amaldiçoais a todos os régulos, a todos os ditadores, a todos os asseclas de ditadores!
Meus irmãos, homens livres que amais estranhadamente o Direito, a Justiça, a Liberdade, a Democracia!"
Para que os convoca?
Para que eles, "que não se haviam maculado pelo suborno, que não se
deixaram eunuquizar, que não prostituíram suas consciências, que verdadeiramente guardam intacta a noção do que seja dignidade humana", tenham, como Prudente, "a força para empunhar as vergastas com que haveriam de expulsar os vendilhões do templo - os miseráveis vendilhões do povo!"
Ora, mesclados na assistência, havia, como ditavam os costumes, beleguins da polícia que de pronto convocaram o presidente José Torres de Oliveira para uma conversa urgente e reservada. Queriam prender o orador. Conduzir mais uma vez ao cárcere político o intelectual e jornalista José Benedicto Silveira Peixoto, V. Excia., Senhor Acadêmico! Não o conseguiram, pois o presidente do I. H. G. ao propósito se opôs, de pé, como cabe aos paulistas!
Não julgueis, meus senhores, tratar-se este de um gesto avulso, escoteiro, do paulista que hoje se empossa nesta Casa. Não. Nele, essa postura é corriqueira, é cotidiana, é de rotina. Retrata um flagrante de toda uma existência que é uma luta. Luta pelos direitos impostergáveis, pela dignidade de cada um e de todos. V. Excia., senhor Silveira Peixoto, encarna soberbo exemplar de uma raça cada vez mais rarefeita, a dos paulistas militantes, aqueles que, acima dos precários interesses personalistas, colocam infatigavelmente os da tradição, da conjuntura e do porvir de um povo que tem sabido resistir a quantos intentam aviltá-lo, menosprezar os seus valores, desatender a seus princípios. Inclui-se V. Excia. entre os democratas sempre de prontidão. Assim foi em 30, em 31, em 32, em 43, em 64 e assim há de ser pelos tempos porvindouros. Estes, nós todos saberemos edificar com o denodo com que temos conduzido e o espírito de sacrifício que o Brasil livre possa exigir de nós.
Por ser quem é e por ter feito o que fez, pela longa perspectiva de grandeza e trabalho que lhe resta, a Academia recebe-o calorosa, Senhor Silveira Peixoto.
Abramos alas, Senhores Acadêmicos, para o Bandeirante que chega!





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