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Acadêmico: Paulo Nathanael Pereira de Souza "Pertencer a esta Academia, desnecessário seria lembrar, representa a mais alta consideração e o mais completo reconhecimento de uma vida dedicada à produção intelectual, seja nas letras, nas artes, nas ciências, na filosofia, na religião, no cultivo, enfim, de qualquer dos gêneros superiores do espírito que se volte preferentemente para o acréscimo da cultura e a elevação moral do ser humano."
O reconhecimento pela contribuição intelectual Pertencer a esta Academia, desnecessário seria lembrar, representa a mais alta consideração e o mais completo reconhecimento de uma vida dedicada à produção intelectual, seja nas letras, nas artes, nas ciências, na filosofia, na religião, no cultivo, enfim, de qualquer dos gêneros superiores do espírito que se volte preferentemente para o acréscimo da cultura e a elevação moral do ser humano. Porque esta Casa não se confunde com uma escola, onde se aprende a refletir e a criar nos domínios do pensamento, nem tampouco se assimila a uma associação destinada a conhecer e estimular tentativas recorrentes de iniciantes nas várias atividades da inteligência, com o fim de estimulá-los e ampará-los. Mais do que isso, existem as academias para as cerimônias de consagração e da celebração dos talentos provados, das obras consagradas e das contribuições incomparáveis do espírito, sobretudo no que diz respeito à língua e ao pensamento. Foi com essa intenção que Richelieu, em França, oficializou, em 1634, o cenáculo dos doze, liderado por Conrart, posteriormente elevado a quarenta, pelos estatutos baixados pelo rei Luís XIII, que, como todos os seus sucessores, acabaria por ser o presidente de honra da instituição. E sempre com este feito: consolidar e promover a qualidade da língua francesa. Nasce daí o princípio da imortalidade, ou seja, a insubstituibilidade dos acadêmicos, homenageados com o título vitalício de membros da Academia, e se coloca o dever primeiro de cada qual, que vem a ser a defesa da língua, na sua forma escrita mais erudita e clássica, dado o fato de ser ela o espelho da nação e o escrínio por excelência da cultura nacional. Esta Academia Paulista de Letras, que se fundou há exatamente cem anos, em 27 de novembro de 1909, veio à luz sob a égide dos princípios fundamentais que regeram, três séculos antes, a Casa de Richelieu. E para que fim? Ouça-se o que proclamou o barão Brasílio Augusto Machado de Oliveira, orador oficial da memorável noite em que a Academia se implantou, tendo por cenário o salão nobre do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo: “A instituição nascente representa um trabalho em comum no cultivo das ciências e no amanho das letras”. Na senda aberta pelos fundadores, capitaneados pelo saudoso Joaquim José de Carvalho, o estatuto assinala, no seu artigo 1°, que “a Academia tem por fim precípuo a cultura do vernáculo e da literatura”. Sabiamente, se utilizou da expressão precípuo (e não exclusivo), o que possibilita a presença, no excelso colegiado, de operadores outros do talento criativo, como, aliás, assinala o artigo 4°, onde se diz que: “Somente podem ser membros da Academia brasileiros que tenham publicado obras literárias ou científicas de reconhecido valor, ou que sejam personalidades de grande expressão na vida cultural do Estado”. Aliás, a título de curiosidade, se bem que en passant, gostaria de assinalar duas peculiaridades no nascedouro desta Academia: primeiro, o fato de haver entre os acadêmicos uma grande fartura de médicos sete entre 40 membros , talvez pelo fato de o próprio fundador ter sido um ilustre profissional da Medicina; e, depois, pela presença de uma mulher, a poeta Prisciliana Duarte de Almeida, que se fez acompanhar, no colegiado, de seu primo e marido, também poeta, Silvi de Almeida. Trazer-me para esta Casa, no ano de seu centenário, acrescenta-me a justificada vaidade de me haver tornado nela um acadêmico. Até porque existir e funcionar regularmente por cem anos, num país em que a cultura não ocupa lugar de relevo na escala de prioridades, seja de governantes, seja da própria sociedade, representa, na verdade, um feito digno de aplausos e de muitas solenizações. Por isso, quero aproveitar esta oportunidade para registrar os meus melhores agradecimentos aos eminentes confrades e confreiras, que, no dia 12 de fevereiro de 2009, honraram o voto a mim prometido, e efetivamente sufragaram meu nome, tornando-me um de seus pares neste silogeu. Cabe,aqui, uma referência especial ao colega que me irá saudar, Dr. Paulo José da Costa, que há anos me vinha recomendando a inscrição entre os candidatos a uma vaga nesta Casa. Confiou em mim,estimulou-me a concorrer, defendeu minha candidatura com denodo e convicção e nesta noite dá-me a insigne honra de recepcionar-me neste átrio da imortalidade. A você, Paulo, amigo e xará, os mais ardorosos protestos de carinho e admiração. Minhas credenciais Não me considero propriamente um escritor, não obstante os vinte livros e os milhares de artigos, conferências, estudos e aulas que proferi e publiquei ao longo de minha carreira, toda ela feita, de preferência, na seara da educação. Sou, antes, um educador que, embora graduado em Ciências Econômicas, encontrou sua realização pessoal e profissional nas lides educativas, quer como professor, em sala de aula, quer como administrador escolar, na gestão de colégios, universidades, fundações, secretarias e conselhos de educação. Comecei a dar aulas aos dezessete anos de idade e, até hoje, não passo um dia sequer de minha vida sem escrever ou falar sobre educação. Além dela, a história e a literatura concentraram minhas pesquisas, meus estudos e minhas possíveis contribuições à cultura brasileira. Geograficamente, minha carreira se desenvolveu em São Carlos, Tupã, Itapetininga, São Paulo e Brasília. Dentre elas ressalto Tupã, onde encontrei, para minha alegria e realização, duas maravilhosas mulheres: uma, Irene, rainha da beleza em sua cidade, Araraquara, e do meu coração, desde que nos encontramos no Colégio Estadual, ambos professores concursados, ela, de Francês, língua que falava e escrevia fluentemente, eu, de História, que, jovem ainda, conhecia o suficiente para ter sido aprovado, com louvor, por uma banca uspiana, da qual participaram Astrogildo Rodrigues de MeIo e Manuel Nunes Dias; outra, a índia Vanuire, uma heroína kaingang, que pacificou sua gente no oeste paulista, permitindo que a colonização branca, no início do século XX, avançasse pelas selvas da "terra barbarorum", como constava, nesses idos, dos mapas do Estado, permitindo assim a formação da próspera rede urbana dos ricos municípios, que se implantaram na Alta Sorocabana, Alta Paulista, Alta Noroeste, no rumo das fronteiras com o Mato Grosso. Esta gentia possibilitou, com seus cânticos, entoados à beira das clareiras nos canteiros de construção da estrada de ferro Noroeste, o acordo feito entre os dirigentes do antigo Serviço de Proteção ao Índio, de inspiração rondoniana, e os caciques Goitchoro, Iacri e Vauin, senhores da guerra contra os brancos na região. Coube-me descobrir essa índia, dar-lhe o nome ao Colégio de Tupã, escrever-lhe a biografia e registrá-la no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, para que passasse a integrar a história moderna do Nosso Estado bandeirante. Destarte, São Carlos deu-me a preparação; Tupã, a maturação; Itapetininga, a primeira experiência de comando de redes e sistemas escolares; São Paulo, a consolidação da carreira, com a participação no Conselho Estadual e nas Secretarias de Educação do Estado e do Município; e Brasília, que coroou os meus esforços, ao integrar-me como membro e presidente do Conselho Federal de Educação, a grande experiência em nível nacional, que me foi concedida, no comando do principal sistema de ensino do País. Ao longo desses anos visitei dezenas de nações pelos cinco continentes, para saber o que faziam com as suas escolas, e me convenci, de uma vez por todas, que só a educação pode fundamentar os dois desenvolvimentos básicos a serem perseguidos na vida: o do cidadão e o da nação. E, com tristeza, também me apercebi de que a causa maior das dificuldades vividas pelo Brasil, no seu atual percurso em busca de democracia e progresso, é a falta da educação popular, eis que este País sempre soube educar bem as suas elites, mas nunca aprendeu a escolarizar, ainda que medianamente, o seu povo. Perdi Irene, a grande inspiradora de minha carreira, há um ano e meio, após longa e insidiosa enfermidade. Dedico-lhe esta cerimônia de posse da Academia Paulista de Letras, na qual teria tido ela imenso gosto de estar presente. A cadeira 12 Exige o protocolo que, no discurso de posse, se fale algo sobre os antecessores. No caso específico da cadeira doze, essa exigência converte-se numa agradável tarefa, dada a importância dos que a ocuparam a partir de 1909, fosse pelos títulos que ostentavam, fosse pelas obras que produziram. De Paulo Egídio de Oliveira Carvalho, seu patrono, pouco se sabe, a não ser que era homem de grande presença e participação nos meios sociais, políticos e culturais daquela São Paulo da passagem do século XIX para o XX. Quanto ao primeiro ocupante, Alberto de Melo Seabra, há registros de seu nascimento na cidade paulista de Tatuí em 5 de fevereiro de 1872. Formou-se em medicina, no Rio de Janeiro em 1895 tendo, durante o curso, frequentado as rodas de escritores e professores, que o ligaram intimamente ao gosto pela leitura dos filósofos e dos clássicos da literatura. Viveu como higienista, pensador espiritualista, jornalista e, sobretudo, como médico homeopata. Clinicou no Hospital do Juqueri na Santa Casa de Misericórdia. Colaborou nos jornais Estado de S. Paulo, e Correio Paulistano e publicou dezenas de livros, em que se concentrou, de preferência, na difusão dos tratamentos homeopáticos, divulgando no Brasil os ensinamentos de Hahnemann. No plano filosófico, popularizou entre nós as ideias espiritualistas, cujo auge Allan Kardec cultivou em França, com sua paixão pelas pesquisas ligadas à vida depois da morte. Como se vê, dotado de uma vocação heterodoxa no campo profissional e do pensamento, Alberto de Melo Seabra gozou do respeito dos seus contemporâneos, a ponto de vir a integrar o grupo dos quarenta fundadores desta Casa. Dentre suas obras mais importantes, há que destacar: Memória e personalidade, A verdade em medicina, Problemas sul-americanos, Higiene e tratamento homeopático das doenças domésticas, Problemas do além e do destino, Fenômenos psíquicos. Faleceu no dia 11 de agosto de 1934, aos sessenta e dois anos de idade, de uma crise de angina pectoris. Em discurso de homenagem a Seabra, em 1940, o médico Luís Monteiro de Barros assim se pronunciou: “Em vida, como depois de morto, o dr. Alberto Seabra nunca foi refutado ou vencido em suas polêmicas. Mais que qualquer outro homeopata brasileiro, ele soube difundir, de todas as formas possíveis, a verdade da homeopatia; por isso ele foi cognominado, e com muita propriedade: o Hahnemann brasileiro”. Posteriormente a Seabra, ocuparam a cadeira doze, sucessivamente, os acadêmicos: René de Castro Thiollier, Maria de Lourdes Teixeira e Benedicto Ferri de Barros. De René Thiollier se pode dizer, sem receio de errar, que foi a seu tempo o mais aristocrático dos acadêmicos, não apenas pelo porte físico e o talhe das roupas, mas sobretudo pelo modo fidalgo com que tratava as pessoas e resolvia todas as pendências, deixando a seu redor uma atmosfera de simpatia e de camaradagem. O respeito que, naturalmente, lhe dedicavam os membros: deste cenáculo honrarias e homenagens, das quais há que destacar as eleições para secretário geral e presidente, funções essas sucedidas pelos títulos, entre todos os mais qualificados, de secretário perpétuo e presidente de honra da Casa. Deve-se-lhe também a criação da Revista APL, que ainda hoje circula para gáudio de todos nós, com matérias de excelente nível artístico e científico. Desde 1922, quando integrou o grupo da Semana da Arte Moderna, até sua morte, ocorrida em 1968, jamais deixou de participar dos mais importantes movimentos culturais da Pauliceia, sendo, nos plenários da Academia, o porta-voz da vanguarda literária, que traduzia em artigos e livros, sempre atuais e cheios de originalidade. Sucedeu-o, em 1969, Maria de Lourdes Teixeira, romancista, poeta, cronista e ensaísta, mulher admirável na sua presença física e no encantamento do trato, e que ademais escrevia admiravelmente bem. Sabia expressar-se com perfeição e ao magistral manejo do idioma, associava sempre uma cultura invejável nos campos da ciência, das artes e da literatura. Seus romances, que de há muito pedem por reedição, retratam a vida urbana e têm São Paulo como cenário privilegiado de suas fabulações. Destacam-se, entre outros: Raiz amarga, A virgem noturna, Páteo das donzelas e Rua Augusta. Dela me lembro, hospitaleira e gentil, quando nos anos 50 a visitei no apartamento da Avenida Duque de Caxias, onde vivia seu amor crepuscular com o monstro sagrado do romanfleuve brasileiro, José Geraldo Vieira. Nela, predominava a prosa quase lírica, em que a mulher punha mais sentimento do que crítica social ou anomalias psicológicas no perfil dos personagens; e por ele, José Geraldo, participava-se das epopeias revolucionárias do século XX, quando países convulsionados vendiam ilusões ideológicas, como solução para os conflitos sociais herdados do passado e do heroísmo dos combatentes sem causa, que se ia desmilinguindo, à medida que a idade da razão se implantava onde, antes, prevalecia o impulso juvenil, com vistas à transformação radical da humanidade. Tanto Geraldo, como Maria de Lourdes, queria eu que fossem a Tupã proferir palestras, no Centro Cultural Mário de Andrade, que fundei e do qual fui, por anos seguidos, presidente. A meu convite, a Lygia Fagundes Telles, a nossa querida Lygia, já tinha ido, como também o Edgard Cavalheiro e o Fernando Góis, ambos amigos insubstituíveis e conferencistas de alto coturno, todos hospedados nos apartamentos do Hospital São Francisco, eis que os hotéis de Tupã, os melhores da região, mas os piores do mundo, não tinham condições de hospedá-Ios. Foi assim que internei a Lygia no pleno gozo de sua saúde! Por 20 anos, Maria de Lourdes, dentro da tradição inaugurada pela presença feminina de Prisciliana de Almeida na Academia, ocupou seu posto entre os imortais, trabalhando incansavelmente, fosse a favor do fortalecimento institucional deste cenáculo, fosse na produção literária em prosa e verso de sua obra, esse legado de incontáveis e imperecíveis riquezas com que nos herdou. O antecessor Devo encerrar estas palavras com uma breve referência a meu antecessor, o ensaísta e poeta Benedicto Ferri de Barros, que me honrou com sua amizade, honrou a Academia e a cadeira doze, com sua inteligência privilegiada e sua fenomenal criatividade. Emociona-me lembrar que, nas conversas que tínhamos sobre esta Casa, reiterava ele a disposição de ser meu cabo eleitoral, assim que fizesse minha inscrição para a primeira vaga que ocorresse. Longe estávamos, tanto ele quanto eu, de saber que a vaga se daria com sua morte inesperada, sem chance de tê-lo como meu chefe de campanha. Deu-me seu lugar, não o seu voto e, por gratidão, peço licença para, do fundo do coração, elevar uma prece, para que Deus o tenha o mais próximo possível de sua glória eterna. Sociólogo e economista dos mais competentes, especializou-se em questões financeiras e escreveu trabalhos inolvidáveis sobre as políticas do setor, levadas a cabo tanto no País quanto no mundo. Suas análises, feitas sempre a partir de ângulos inovadores e incomuns, ensejavam calorosas discussões entre os experts e propunham soluções heterodoxas, mas factíveis, sempre que se apresentavam impasses a serem superados nas reuniões executivas. Teve, por isso mesmo, um papel de relevo na história empresarial do País, enquanto atuou como consultor e conselheiro em organizações, como o Centro de Estudos Políticos e Sociais, da Associação Comercial de São Paulo, a Associação Brasileira dos Analistas do Mercado de Capitais, a Associação Nacional dos Agentes Autônomos de Investimentos e a Academia Internacional de Direito e Economia. Com aquela proverbial modéstia, de que se revestia, e a fala mansa e inalterável com que defrontava os seus opositores, nada nele denunciava o gigantesco enciclopedismo de sua cultura geral e a paciência infinita que punha no trato com os incompetentes com quem devia dialogar. Impacientava-se muito com a política populista, que ultimamente vinha tomando conta da América Latina, e se indignava com a incapacidade de os governos brasileiros promoverem as reformas de base, como a superação dos problemas criados pela falta de educação e saúde do nosso povo mais carente. Como ensaísta, escreveu, além do polêmico depoimento intitulado Que país é este?, a obra-prima sobre o Japão e seus enigmáticos cidadãos, denominada Japão: a harmonia dos contrários, onde analisa, através da ótica sociológica, o milagre econômico havido naquele país do sol nascente, ao fim da Guerra entre o eixo e os Aliados. É um verdadeiro tratado, escrito com conhecimento de causa, destinado a resolver o grande enigma de uma nação derrotada e ocupa da militarmente, que se desenvolve com rapidez e, no curto prazo, ocupa lugar de destaque no primeiro mundo. O texto envolve história, cultura, religião, economia, costumes, educação, guerra e paz e tudo o mais que possa contribuir para a solução desse intrigante paradoxo. Há, hoje, destacadamente duas obras fundamentais a cuidarem desse tema: a da americana Ruth Benedict (O crisântemo e a espada) e a de Benedicto Ferri de Barros (Japão: a harmonia dos contrários). Com o aparecimento desta última, a de Benedict passou para o segundo plano, de onde não saiu mais. Depois que Ferri editou seu verdadeiro vade-mecum sobre como entender os japoneses e com eles conviver, ninguém do Brasil pode dar-se ao luxo de ir ao Japão sem ler o que nele está escrito, sob pena de não extrair da viagem os ensinamentos básicos que nela se embutem. A ocidentalização dos nipônicos fez-se sem traumas, com grande êxito, e a razão está nos 5% de diferença entre o Ocidente e o Oriente de que fala o autor. Como esclarece ele no seu texto: “Esses 5% de diferença não se acham na tecnologia, mas na personalidade cultural e na estrutura social, que há quase dois milênios os ocidentais e os japoneses vêm desenvolvendo por caminhos e experiências diversas”. Para saber mais, há que ler o livro, como eu fiz quando fui ao Oriente, tendo dele obtido proveito integral no decorrer da viagem. Essa capacidade que Benedicto Ferri de Barros tinha para entender e expor com clareza os labirintos econômicos e políticos dos acontecimentos nacionais e internacionais deveu-se, antes e acima de tudo, à sua sólida formação humanística. Era um cientista social na área da economia, mas sua visão jamais se tecnocratizou, continuando ampla e genérica, como convém aos analistas verdadeiramente cultos e afeiçoados antes à essência da Paideia do que aos artificialismos da técnica. Por isso mesmo foi Ferri, pela vida afora, um autor a serviço do homem e não das suas circunstâncias mais na mais exata concepção do papel do intelectual, desenhada por Ortega y Gasset nos aportes filosóficos de sua obra. Como poeta, escreveu Ferri versos inspiradíssimos, que se reúnem de preferência na Rapsódia de Ouro Preto e outros poemas, nos quais reflete o pensamento de Robert Graves, que um dia disse: “procurei ser fiel aos muitos eus de minhas muitas idades”. Seu canto a Ouro Preto traduz uma irônica decepção pelo fato de lá não mais encontrar nem ouro, nem Marília, os dois bens que se atribuem à cidade-símbolo da mineiridade. "O ouro já não se encontra mais à flor da terra em Ouro Preto, eu sei. Em tempos idos, quando meninos e cabritos moravam nestes morros, as flores de ouro preto rolaram pelas serras deixando a sua ausência." E por essa falta de ouro, queixa-se o poeta a Marília, como se fora ela a culpada simbolicamente pelo desfazimento daquilo tudo em que se crê na vida: "Vagueei a noite inteira pela praça imensa suspensa das ladeiras, Marília, não achei por entre a multidão de peregrinos uma pepita um grão sobre o lajedo, uma faísca à luz inconvincente não vislumbrei". E o que dizer desse fatalismo de tragédia grega que ressuma deste poema sem título? "Essa neblina, esse punhal essa onda assassina que vai roendo o brilho corroendo as entranhas lancetando os jarretes derrubando as figuras sem premeditação, nem ódio - que não é morte, que não é destino, que não tem nome, face, lugar algum, onde se esconde, onde se acha, mas que se abate sobre as criaturas sem qualquer sentido." Note-se nestes versos de reduzida dimensão a capacidade criativa do poeta em pintar com palavras uma cena inteiramente plástica e visual: Tuas mãos assumem de repente a forma ondulatória das gaivotas que sem pensar imaginariamente planam sobre meu corpo inquieto". Mas, surpreendentes mesmo são os tons quentes de uma voluptuosidade inesperada que emanam de alguns poemas, que só se aceita serem de Ferri porque neles imprimiu seu nome. Não fosse isso, seria quase impossível, a quem com ele conviveu, admitir que sua fantasia fizesse revoos por esses territórios tão improváveis, para suas severidade e austeridade sem fim. Mas bom que tivesse acontecido e esse traço de sua inspiração pudesse ter abordado tão complexos temas, engalanando-os de uma beleza e de uma inocência que são pura artesania de um verdadeiro poeta. Eis aqui no denominado "Um par de louras", com o louvor a duas meninas prostitutas, um exemplo claro do que aqui se disse: "Elas domaram o mundo com suas coxas, com seus longos, caramelados cabelos correndo soltos e livres como riachos luminosos, e com seus seios, conquanto lassos pelo uso e pelo abuso -meros botões ainda ". Nesse estilo, que vai do erótico ao quase luxurioso e põe em genesíacos prazeres a raiz poética do amor, há dezenas de versos de rara e indescritível beleza, que levariam horas de leitura e de insopitável prazer. Dei-lhes a amostra, restando, aos que quiserem mais, a posse dessa Rapsódia com seus poemas por inteiro. Termino (nunca apreciaram tanto esta palavra, não?) com a provocação, entre lúdica e sapientíssima, que faz o autor de "Pablo Neruda e os gatos". Algo um pouco anedótico, bastante filosófico e totalmente poético, que vale a pena destacar, nestes jardins de emotividade plantados por B. de Barros como gostava ele de assinar seus livros: "Pablo Neruda sabia tudo sobre os gatos sem conhecê-los. Por conhecer se referia, creio, ao senso bíblico de permutar. Porém Neruda da cabeça ao rabo via os gatos completos e acabados nada a pôr ou tirar. Um gato é sempre um gato unívoco e exato quer se trate de um rato de um cão ou de um Pablo, ao passo que um poeta é uma mistura multívaga de amante e de cigano sempre à matroca em busca de barganha". Senhores e senhoras, o nosso poeta e amante, Benedicto Ferri de Barros, enquanto com saudade dele falamos por aqui, que negócios com Deus estará a fazer aciganadamente, nos mercados evanescentes de um céu sempre azul, aberto apenas aos que foram justos e geniais? voltar |
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