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JORNADA DE OTÁRIOS
Acadêmico: Bolívar Lamounier
"É óbvio que a conta não bate, mas, e daí? O conteúdo de tais afirmações é o que menos interessa. A mensagem é apenas um meio. O que ambas - a intelectual e a presidente quiseram dizer foi que a realidade não importa. O discurso pode ser uma mentira escandalosa ou pode se referir a um objeto inexistente, ou imaginário tanto faz."

Podia dar certo o golpe urdido durante dois anos, de 1630 a 1632, pela rainha-mãe Marie de Médicis para forçar o rei Luís 13 a rifar o Cardeal Richelieu e assim conservar o poder nas mãos da aristocracia católica? Poder, podia. A rainha e seus aliados só não contaram com a astúcia do Cardeal, que ganhou a confiança do rei e deu a volta por cima.
No Brasil, em 1840, os líderes liberais e conservadores que promoveram a antecipação da maioridade de Pedro II acreditaram poder manter o governo dele sob rédea curta, tirando bons proveitos. Estavam errados? Não necessariamente. Em tese, suas expectativas poderiam ter se concretizado. Mas enganaram-se. Aos 15 anos, o monarca começou demonstrou personalidade e independência, deixando os referidos líderes a ver navios.
Os dois episódios citados entraram para a história como “journées des dupes” jornadas de otários. Reluto em empregar este termo otário- por considera-lo um tanto ofensivo, e não quero ofender ninguém, quero apenas refletir sobre alguns aspectos de nossa história brasileira.
Podia ter dado certo o governo de Dilma Rousseff, uma senhora intelectual e politicamente despreparada, que só se elegeu graças ao “dedazo” de Lula, um populista irresponsável que se valeu dela apenas para preservar sua insaciável sede de poder? Não, não podia. Convenhamos que não. Para mim, foi outra “jornada de otários”, mas não quero generalizar: não quero pregar o rótulo de otário em todos os eleitores dela. Vou considerar como tal somente aqueles que votaram nela de uma forma presunçosa e ao mesmo tempo sincera, acreditando que ela faria um governo formidável. O que esses eleitores tinham em comum é um contato superficial com as realidades política e econômica; dispondo de informações ou pelo menos de acesso a informações para bem avaliarem as realidades política e econômica brasileiras, não se abalaram a tanto.
Podemos aqui acrescentar aqueles que votam no PT ou na esquerda em razão de um vago complexo de culpa social, ou por simples antipatia pelos candidatos adversários; e mais ainda aqueles que, mesmo vacinados e maiores de idade, estudados e viajados, cultivam o mito do messias, do grande redentor de nossa gente. Os acima citados, todos eles, sim, embarcaram numa jornada de otários.
Mas reluto em considerar otários eleitores cujo perfil não se encaixa no que me esforcei por delinear no parágrafo anterior. No sindicalismo esquerdizado, por exemplo, muitos esperavam preservar os postos e mordomias que já detinham, e quem sabe até conquistar mais algumas. Estavam certos, evidentemente. Seu objetivo era conservar o status VIP que ocupam na estrutura de poder brasileira, status sustentado pelo imposto sindical e por participações nos conselhos das estatais, dos fundos de pensão etc.
Algo semelhante talvez pudesse acontecer num governo não-petista, mas certeza disso os referidos líderes sindicais não poderiam ter; e menos ainda a certeza de continuar desfrutando do melhor de dois mundos, quero dizer, mamando nas tetas do Estado sem a correlativa obrigação de apoiar as medidas de ajuste econômico que um governo minimamente sério teria de implementar. Esses, portanto, de otários não tiveram (não têm) nada.
A única coisa que lhes pesa sobre os ombros é o fato mais que conhecido de que não representam as categorias de trabalhadores que dizem representar; nada têm a dizer sobre a recessão e o brutal aumento do desemprego provocados pela obtusa política econômica da Dra. Dilma, mas isso é um detalhe.
Por razões de certo modo opostas, tampouco me parece adequado denominar otários certos artistas e intelectuais que acorrem como poodles amestrados aos pedidos de socorro da Dra. Dilma. Falo e falo com pesar, é óbvio- de gente superlativamente talentosa como Chico Buarque e Caetano Veloso, isso para me limitar ao domínio da música popular. Os eleitores hiperfamosos que incluo nesta categoria vivem sem sobressaltos, sustentados por rendimentos mais que merecidos que recebem pelo brilhante trabalho realizado durante suas carreiras; poderiam até viver no exterior, se quisessem. Todos professam devoção a um ideal de justiça social alguns, no limite, a um ideal socialista-, e parecem convencidos de que, no contexto brasileiro, tais objetivos implicam apoiar Dilma e o PT.
Não acho justo dizer que os artistas e intelectuais do tipo mencionado se lixam para os milhões de brasileiros que suam a mais não poder para fechar as contas no fim do mês; ao contrário, penso que sofrem por eles. Sofrem à distância, mas sofrem. Dados esses fatos, otário não me parece ser o melhor termo para descrevê-los. Trata-se, antes, de um bovarismo: um sentimentalismo sincero, à flor da pele, tão sincero que os dispensa de uma reflexão mais consistente sobre as realidades sociais e econômicas do país.
Numa última categoria, aparentada à anterior, eu coloco a intelectualidade de esquerda, ou a maior parte dela. Gente não só estudada e viajada, se me permitem reutilizar esta expressão, como também entrincheirada em posições elevadas da hierarquia acadêmica. Entre esta categoria e a anterior, há vários pontos em comum, que não preciso repetir; não tenho por que duvidar, por exemplo, de sua aguda sensibilidade às mazelas sociais que nos cercam.
Mas otária ela não é, tampouco bovarista. O desconhecimento e a falta de objetividade que seus integrantes demonstram a respeito do país não são traços nefelibatas, como os que discernimos em alguns artistas. Minha impressão é que se trata de uma mensagem, naquele antigo sentido de que “o meio é a mensagem”. Mensagem, por sua vez, na qual se consubstancia uma interpretação de seu próprio status na sociedade, a de que o “verdadeiro” intelectual (leia-se: o intelectual de esquerda) é livre, “poderoso”, não tem compromisso algum com a realidade ou com a lógica, muito menos com o contribuinte que o sustenta. Pode dizer o que quiser, quando quiser, nos termos que quiser.
Casos ilustrativos do “poder” referido no parágrafo anterior abundam, mas por enquanto nenhum supera o episódio da professora Marilena Chauí declarando seu ódio á classe média “ignorante” e “fascista”. O fato ocorreu justamente quando o governo Dilma batia bumbo, jurando de pés juntos que os programas sociais petistas haviam proporcionado uma marcante mobilidade social ascendente a mais da metade da população brasileira. Apresentando-se como um demiurgo da “nova classe média”, a presidente teria portanto alçado milhões de brasileiros para a classe média, ou os transformado, como diria Marilena, em “ignorantes” e “fascistas”.
É óbvio que a conta não bate, mas, e daí? O conteúdo de tais afirmações é o que menos interessa. A mensagem é apenas um meio. O que ambas - a intelectual e a presidente quiseram dizer foi que a realidade não importa. O discurso pode ser uma mentira escandalosa ou pode se referir a um objeto inexistente, ou imaginário tanto faz. Na era petista, as palavras e conceitos tornaram-se completamente arbitrários. Servem para qualquer coisa, inclusive para nada.

Bolívar Lamounier, cientista político, é membro da Academia Paulista de Letras e autor do livro Tribunos, profetas e sacerdotes: intelectuais e ideologias no século 20 (Editora Companhia das Letras).




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