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SOBRE A BARULHEIRA E A VERDADE DOS FATOS
Acadêmico: Eugênio Bucci
As plataformas descartaram os fatos e a razão para ficar com a gritaria e a barulheira. O jornalismo segue a trilha oposta

Sobre a barulheira e a verdade dos fatos

A crise que se abateu sobre a imprensa veio como um armagedon que atingiu o coração do chamado “modelo de negócio” dos jornais e das revistas. As receitas de publicidade debandaram e foram se aboletar nas tais plataformas sociais (ou antissociais, como já disse Marcia Tiburi). As redações ficaram falando sozinhas. É verdade que algumas conseguiram aumentar o faturamento com a venda de assinaturas (o New York Times, por exemplo, tem hoje uma carteira de 11,6 milhões de assinantes, quase todos assinantes digitais; apenas 600 mil recebem o jornal impresso na porta de casa). A grande maioria dos diários, porém, ficou à míngua, assim como a grande maioria das revistas. Tempos de penúria.

A crise não trouxe nada de bom. Nada, a não ser a necessidade de pensar um pouco. Os melhores profissionais da imprensa perceberam, finalmente, que é preciso refletir. Sobreviventes, aprenderam que precisam elaborar novas ideias sobre sua razão de ser e sobre o que faz de seu ofício um bem social indispensável para a democracia. Um debate de alto nível está em andamento, e esse debate só nos fará bem.

Antes que alguém se lembre do dito popular, “de pensar, morreu um burro”, é bom lembrar que muitos mais morreram por não pensar, e não só os burros. Quanto a isso, podemos afirmar que a crise do jornalismo – que também se traduz em obsolescência do padrão tecnológico – é sobretudo uma crise de pensamento, quer dizer, uma crise de falta de pensamento. Eis por que é bom que a pauta reflexiva se instale.

Para que serve a imprensa, afinal? É hora de pensar. Por que o cidadão não deveria simplesmente substituir os jornais pelos WhatsApps da vida? Quem trabalha no ramo e tem alguma consciência sabe a resposta: a imprensa é o único método social capaz de ajudar o público a examinar, com base nos fatos, o exercício do poder. Não há, em qualquer modelo de democracia conhecido, outra instituição que entregue esse serviço para a sociedade. O famigerado X não faz isso. O Facebook não faz isso. Um e outro geram ruído, mas não apuram os fatos e não fornecem relatos confiáveis para abastecer o debate político mais consequente. X e Facebook não são imprensa. São a anti-imprensa.

A imprensa nos entrega ainda outro benefício. Com seu método social (insisto no adjetivo “social”, pois se trata de um método que só adquire corpo nas relações entre os atores sociais), ela expande na prática a liberdade de expressão e o direito à informação. Com isso, dá mais vigor à política democrática.

Portanto, se trocassem as redações profissionais por plataformas, os cidadãos renunciariam a tudo aquilo que faz deles cidadãos e se reduziriam a meros espectadores do entretenimento generalizado. Estariam trocando uma assembleia por um programa de auditório. Em outras palavras, estariam deixando de lado o diálogo amparado em balizas racionais e abraçando um reality show delirante, estariam abandonando o debate entre argumentos para embarcar no fanatismo. O barulho das plataformas, em lugar de contribuir para identificar os fatos, só faz soterrá-los e condená-los ao esquecimento.

Isso significa que o alarido das plataformas não serve de modelo para a imprensa. Seria um equívoco acreditar que o simples embate de enunciados contrários, só porque são contrários, poderia nos ajudar a ver os fatos como eles realmente são.

Talvez, há 250 anos, essa fantasia tenha tido legitimidade. No século 18, o iluminista Honoré Gabriel Riqueti, o conde de Mirabeau, acreditava que o calor do bate-boca nos conduziria à epifania: “Deixemos que se batam (as doutrinas contrárias) e veremos de que lado estará a vitória. Por acaso a verdade alguma vez foi derrotada quando atacada abertamente e quando teve a liberdade para defender-se?”. Essa visão, que foi justa naquele tempo, seria desastrosa se transplantada mecanicamente para os jornais dos nossos dias.

No Século das Luzes, os folhetos devezenquandários da França revolucionária não tinham como procedimento ouvir o outro lado, corrigir os erros ou apurar os fatos. Só o que faziam era propaganda e proselitismo. Foi somente no século 19 que a imprensa se profissionalizou e se dedicou ao que seria seu maior valor na democracia: a busca pela verdade factual e a crítica pública e racional ao poder. Desde então, ao menos nas boas redações, o critério factual, ao lado dos requisitos da razão, comparece à edição diária das notícias.

À luz dessa história, os jornais incorreriam em grave anacronismo se, em nome de assegurar o princípio do contraditório, publicassem em profusão artigos dos negacionistas do aquecimento global. O contraditório é, sim, uma exigência da lógica, mas ele não se estabelece entre alguém que insiste na mentira notória e alguém que procura dizer a verdade.

As plataformas descartaram os fatos e a razão para ficar com a gritaria e a barulheira. O jornalismo segue a trilha oposta. A verdade não é a média aritmética entre duas distorções. Que as redações sigam com esse bom debate – e que não deem guarida ao discurso comprovadamente mentiroso e impostor.

Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 29 05 2025



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