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Acadêmico: Tércio Sampaio Ferraz Júnior A questão do sigilo se torna mais complexa, não se reduzindo à simples e absoluta proteção individual de dados
Inviolabilidade do sigilo de dados e criptografia ponta a ponta O sigilo de dados foi uma hipótese inovadora, trazida pela Constituição Federal de 1988. Quando se fala em comunicação por carta, telegrama ou telefone estamos lidando com fenômenos físicos, portadores de uma significação: a escritura, a pontuação do código Morse, a voz. Já a comunicação de dados apresenta uma peculiaridade. Dados são “expressos” por uma “escritura” binária, independente de toda e qualquer significação. Às séries quase infinitas de 0 e 1, mediante o que ocorrem as combinações, o ser humano só tem acesso pelos programas. Mas os programas também são séries de combinatórias numéricas, razão pela qual eles não passam de listas de instruções, como uma receita que deve ser seguida toda vez que haja dados a serem tratados. Isso traz uma consequência: na comunicação de dados, o fluxo de informações faz do sujeito da comunicação um agente que se comunica não por meio de, mas em meio a, ou seja, “meio” como “ambiente”. Em outras palavras, a comunicação de dados não é objeto independente daqueles que a ela têm acesso. Ela é em relação comunicativa. Daí o seu sentido peculiar não em termos de mera interação entre indivíduos (indivíduos nucleares, como ocorre numa correspondência, num telegrama), mas em termos de um sistema que, como bem social, existe apenas na dimensão do acesso: ter acesso, possibilitar acesso, limitar acesso, restringir acesso. Nesse sentido, porém, a questão do sigilo se torna mais complexa, não se reduzindo à simples e absoluta proteção individual de dados “pertencentes” a alguém, pois exige a proteção de dados enquanto circuito comunicacional. Ou seja, como nessa esfera, o espaço de ação para o sujeito, o ciberespaço, somente se constrói na medida em cada espaço de ação de cada sujeito é voltado para a comunicação com os outros, sem o que o próprio ambiente perde sentido, na proteção ao sigilo de dados, o que está em questão é a própria condição tecnológica de exercer direitos, sendo a confiança no sistema informático o valor constitucional a assegurar-se. E aí entra a chamada criptografia de ponta-a-ponta, caso em que o conteúdo encriptado é inacessível ao próprio provedor do aplicativo. A criptografia faz sentido precisamente para o direito à autodeterminação informacional, não como um direito de defesa privatista do indivíduo que se põe à parte da sociedade, mas como autonomia possível em espaços vitais socialmente conectados, nos quais o sigilo no exercício da liberdade em comum é garantido. Por isso mesmo, aliás, a importância da criptografia como garantia da integridade da pessoa é um tema de relevância constitucional. Nessa linha, chama a atenção recentes ressignificações do direito à privacidade e à intimidade, merecendo menção o caso do Tribunal Constitucional alemão (Online-Durchsuchung), que, justamente para regular a possibilidade de acesso do Estado a plataformas protegidas pelo sigilo ponta a ponta para efeito de investigação criminal, decidiu que os dados pessoais não podem ser acessados de forma indiscriminada nem excluem limites ao acesso. A decisão da corte alemã, com base no direito à privacidade e ao livre desenvolvimento da personalidade, entendeu o sigilo da comunicação de dados, para além de um direito de simples autonomia individual, como um direito fundamental à confidencialidade e integridade, dos próprios sistemas de tecnologia da informação. Nessa esteira, a Segunda Turma do STF, no julgamento do HC 168052, relator, Ministro Gilmar Mendes, citou o caso do Tribunal Constitucional alemão. Em questão estava, afinal, o acesso direto a aparelhos telefônicos (celulares), a exigência do estabelecimento de procedimentos delimitados que garantissem a observância dos direitos fundamentais dos indivíduos, a proteção à intimidade e à vida privada contida no art. 5º, X, da CF/88, como também o direito fundamental à não autoincriminação (art. 5º, LVII, da CF/88). Não menos expressivo, nessa direção, o voto do relator, o Ministro Luiz Edson Fachin, na ADPF 403, no sentido de “afastar qualquer interpretação que autorize ordem judicial que exija acesso excepcional a conteúdo de mensagem criptografada ponta-a-ponta ou que, por qualquer outro meio, enfraqueça a proteção criptográfica de aplicações da internet”. E na ADI 5.527, relatora a Ministra Rosa Weber, o voto que, igualmente, vem a confirmar a proteção dos dados trocados por usuários pelas redes sociais dentro da garantia à privacidade, tratando a criptografia como um instrumento de segurança aos usuários. No entanto, embora o tema do sigilo criptográfico aponte para o reconhecimento de um direito constitucional, isso não diminui nem isenta empresas de respeitarem a legislação infraconstitucional. Pois, a despeito da impossibilidade técnica de fornecimento do conteúdo de mensagens, não se exclui o fornecimento de diversos metadados a respeito dos usuários, bem como, a partir de ordens judiciais, dados a respeito das próprias mensagens e ligações, atendendo inclusive a ordens de interceptação telemática com o fornecimento da data e hora em que as mensagens são enviadas e recebidas ou em que chamadas de áudio e vídeo são feitas e atendidas, o IP de onde partiu a comunicação, o tipo de mensagem transmitida e o número de telefone dos interlocutores do alvo investigado. O que leva, afinal, o direito constitucional ao sigilo mediante a criptografia a uma ponderação entre direito fundamental à liberdade de e àinformação (direito individual à livre comunicação) e o direito fundamental à segurança pública (inviolabilidade do sistema), mas permitindo recolocar a questão de modo peculiarmente eficaz, ao evitar o tratamento da proteção ao sigilo mediante uma abstrata oposição entre interesse público e interesse privado. Publicado no JOTA, em 28 11 2024 voltar |
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