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Acadêmico: Bolívar Lamounier Os identitaristas embarcaram no que a consagrada fórmula francesa designa como ‘une journée des dupes’, ou seja, uma jornada de otários
Esse Brasil lindo e trigueiro 2 Retomo hoje o título de meu artigo de 26/8/2023 para voltar a falar sobre Ary Barroso. Em sua maravilhosa Aquarela do Brasil, de 1938, ele fez questão de frisar que o Brasil, além de lindo, era trigueiro, ou seja, pardo, moreno. Nem só branco, nem só preto. Ao juntar os dois adjetivos, lindo e trigueiro, ele quis dizer que somos um país lindo porque somos também um país trigueiro. E disse também, implicitamente, que só um rematado idiota vê a miscigenação como um mal. Uma rápida olhada pelo mundo afora basta para nos convencermos de que países divididos por etnias irreconciliáveis, religiões hostis entre si e mesmo divisões linguísticas podem dar ensejo a graves conflitos. Um país trigueiro reduz tais conflitos ao mínimo possível. Daí minha dificuldade de compreender que alguém possa pôr em dúvida os benefícios da miscigenação. Mas, pasmem, há quem afirme que a miscigenação é um mal. São os chamados “identitários”. Segundo essa escola de pensamento, ou, para sermos exatos, segundo essa seita, boas são as sociedades nas quais cada grupo confere à sua identidade uma aura de quase santidade, tratando de se diferenciar e se distanciar de outros grupos. Cada um no seu quadrado. Claro, a ideia de identidade não deve ser banalizada. No limite, cada indivíduo tem a sua. Mas os “identitários” entendem que divisões étnicas não se devem mesclar. Abominam toda miscigenação entre elas. “Cada um no seu quadrado” significa conferir maior valor ao que nos separa do que ao que nos une. Por quê? Qual é o fundamento dessa tontice? Por que rejeitar a identidade nacional, vale dizer, a identidade de todo o País, que a duras penas conseguimos construir, não obstante a pobreza e as desigualdades que afligem mais da metade da população, a escassez de oportunidades e a ruindade de nosso sistema de ensino? Bem ou mal, com todas essas mazelas, constituímos uma identidade abrangente, como povo e como nação. Longe de mim afirmar que a superação de nossas desigualdades étnicas está ao alcance da vista. Os não brancos ainda aparecem em desvantagem em todos os indicadores coletados pelo IBGE. São com frequência discriminados, menos escolarizados, auferem remuneração inferior (sobretudo as mulheres) por trabalho igual e têm maior chance de serem encarcerados ou assassinados. Não creio que sejamos tão racistas como, por exemplo, os Estados Unidos, mas o racismo existe, aninhado no mesmo casulo que abriga a pobreza. O que afirmo sem pestanejar é que, ainda admitindo que leis, cotas, celebrações da “consciência negra” etc. possam ter alguma utilidade, o que vai de fato acabar com o racismo é a miscigenação. Daí a importância da divulgação dos resultados do Censo de 2022 feita dias atrás pelo IBGE. O Censo mostrou que, pela primeira vez desde 1991, os pardos aparecem como o grupo mais numeroso, perfazendo 45,3 da população total, maior que o grupo branco, que ficou com 43,5, que o dos negros (10,2), que o dos indígenas (0,8) e que o dos amarelos (0,4). Na eleição de 2022, Lula fez um forte apelo ao voto identitarista, apelo ampliado na cerimônia de posse, quando fez uma meticulosa encenação sobre tal apoio, prometendo mundos e fundos a todos os grupos que rejeitam o que nos une e louvam o que nos separa. Esperto, Lula sabia que tal sandice seria eterna enquanto durasse, e ela durou pouco, uma vez que o apoio do Centrão lhe seria mais rentável. Os identitaristas embarcaram no que a consagrada fórmula francesa designa como une journée des dupes, ou seja, uma jornada de otários. Um leitor excêntrico poderá objetar que, sem essa esdrúxula bandeira, os identitaristas nada teriam a oferecer. Eis aí um argumento sem pé nem cabeça. Eles têm, sim, uma extensa agenda a oferecer, parte da qual enunciei acima. Cumpre-lhes combater atos concretos de discriminação, desigualdades de remuneração por trabalho igual, a qualidade das escolas a que têm acesso, a má qualidade dos serviços públicos (do saneamento, por exemplo) que recebem como contrapartida aos impostos que pagam. Por que não se dedicam a uma avaliação séria de nossa organização educacional? Por que não buscam uma justificação (mesmo sabendo que não a irão encontrar) para a gratuidade do ensino superior nas universidades públicas para os filhos de famílias ricas, aquelas que não dispensam uma casa na praia ou uma viagem anual à Europa? Apresso-me a acrescentar que tal situação parece estar piorando em vários países. Hoje, nos Estados Unidos, algumas universidades públicas cobram anuidades mais altas que as universidades aristocráticas do leste (Princeton, Yale e Harvard), a chamada Ivy League. O resultado disso, obviamente, é a exclusão de muitos candidatos aptos, entre os quais, não preciso dizer, avultam os negros. No Brasil, por que não mantemos a gratuidade total para os estudantes comprovadamente desprovidos de meios e exigimos dos abastados o pagamento de anuidades ou alguma contribuição ao aprimoramento dos docentes de primeiro e segundo graus? Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 30 12 2023 voltar |
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