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A PAZ, O CONGRESSO E O STF
Acadêmico: Michel Temer
É com preocupação que vemos o que se divulga equivocadamente: um conflito entre aqueles organismos. Causa péssima repercussão. E não é verdadeiro

A paz, o Congresso e o STF

Alardeia-se conflito entre o Senado Federal e o Supremo Tribunal Federal (STF). Péssimo para o País, no plano interno e no internacional. Não pode haver desarmonia entre o Congresso Nacional e o Judiciário. Não é permitido. A Constituição determina a harmonia entre os Poderes. Desarmonia, portanto, é inconstitucional. Mais ainda: é negação da vontade do povo expressada no texto constitucional. Explico melhor para justificar a afirmação. E, ao fazê-lo, direi trivialidades. Mas é incrível como, nos dias atuais, é importante ressaltar obviedades. Vamos a elas.

A Constituição não é criação de parlamentares constituintes. Ela é a expressão escrita da vontade popular. Quando se pretendeu reconstituir o Estado brasileiro, o que se deu em 5 de outubro de 1988, não era possível reunir cerca de 180 milhões de pessoas para dizerem como desejavam o novo Estado. O povo (ou seja, os eleitores, cidadãos brasileiros) disseram: “Vamos escolher representantes, deputados e senadores para, em nosso nome, reconstituírem o Estado brasileiro”. Estes chegaram às Casas Legislativas a fim de obedecerem a procuração, o mandato, que lhes foi dado para, em Casa única, a Assembleia Nacional Constituinte, cumprirem o mandato de representação popular. E, ao dizerem sobre a vontade do mandante (povo), receberam um recado no preâmbulo da Constituição.

Este, o preâmbulo (de preambulare, antes do texto escrito), a que se dá pouca importância, contém determinação política aos que redigiram a Constituição, tanto que diz: “Nós, representantes do povo brasileiro (reconhece que é autoridade ‘constituída’), reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias (...)”. Portanto, a paz foi a primeira determinação do povo reproduzida na Constituição. Dou exemplo: o artigo estabelecedor de que todos são iguais, não podendo haver preconceito de raça, cor, credo religioso, tem um objetivo: unam-se todos.

Significa que não pode haver discussão de ideias, de conceitos, de programas? Não. E isso decorre do artigo 1.º, criador do “Estado Democrático de Direito”. Democracia envolve debate de ideias, contrariedade, controvérsias. Nunca, porém, agressões verbais e físicas, seja a pessoas ou a prédios públicos, como ocorre atualmente. No plano internacional, logo no artigo 4.º, o povo disse que as relações internacionais devem pautar-se pela defesa da paz (inciso VI) e solução pacífica das controvérsias (inciso VII). Mais: declara que os artefatos nucleares só podem ser usados para fins pacíficos (Constituição federal, art. 21, XXIII, a). Nada de beligerância, portanto, nas relações internacionais.

A ênfase no fenômeno “paz” é que leva à ideia da harmonia entre os Poderes, quando se entrega a cada qual competências determinadas. Cada um é senhor delas. Legislativo legisla, Executivo executa e Judiciário julga. Este último, ao julgar, aplicará a literalidade do texto constitucional quando esta é suficientemente clara ou fará interpretação sistêmica (exame de todo o sistema constitucional) para decidir. Exemplifico: a fidelidade partidária e o aborto anencefálico não estão na letra da Constituição, mas o sistema positivo permitiu-lhe essas decisões.

Esta, julgar, é a sua função inquestionável. Não pode ser afastada ou criticada. Pode, até, declarar a omissão do Legislativo por meio da ação direta de inconstitucionalidade por omissão ou do mandado de injunção. Declara, simplesmente, a omissão. Não pode supri-la.

Ao lado de julgar está a função do Legislativo. A este cabe a última palavra como representante político do povo. Sendo assim, se houver uma decisão do Judiciário (literal ou sistêmica) com a qual não concorde, há de expedir nova ordem normativa, por emenda constitucional ou lei, dependendo da matéria. Assim que promulgado o novo texto, perde eficácia jurídica a decisão judicial que só vigorará enquanto não sobrevém nova ordem normativa.

É assim que devem conviver o STF e o Congresso Nacional. Cada um no desempenho de suas competências.

Daí porque vemos com preocupação o que se divulga equivocadamente, ou seja, um conflito entre aqueles organismos. Causa péssima repercussão. E não é verdadeiro. Mas é fruto da litigância que se estabeleceu no País, do “uns contra os outros” que tomou conta da cultura nacional, em absoluta dissonância com a Constituição. Esta a razão de havermos feito a introdução referente à “paz” determinada pelo titular primeiro, inicial do poder, o povo, às autoridades constituídas, que, por isso, são secundárias e devem prestar rigorosa obediência à vontade primária – que se acha, reitero, na Constituição federal.

Hoje, líderes políticos responsáveis e qualificados como os presidentes Rodrigo Pacheco, Arthur Lira e Luís Roberto Barroso saberão encaminhar essas questões sem desviar-se do texto magno e divulgando, sim, a inexistência de conflitos, mas o exercício de competências.

Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 24 11 2023



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