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Acadêmico: Ignácio de Loyola Brandão Existia o frio? Muitos duvidavam; outros queriam provas…
Ninguém sabia de onde viera o frio. Para uns ele já se havia instalado, desde muitíssimo tempo, no país e engordara, sem que as autoridades percebessem. Achavam outros que elas não viam razão para deter o frio de que alguns negros se queixavam, vez ou outra, em páginas de jornais ou em depoimentos aos estudiosos que pesquisavam os efeitos do friíssimo bafo. Existia o frio? Muitos duvidavam; outros queriam provas… Por isso, quando Zé Antunes apareceu na cidade, afirmando que no país soprava um frio que só os negros sentiam, e que, tinha certeza, tal frialdade, com seu gélido sopro, já fizera desaparecer um incalculável número deles, quase todos os que souberam de tal descoberta riram muito com a notícia…” Trecho de um ensaio? Citação retirada da algum escritor negro atual? De Djamila Ribeiro ou Itamar Vieira Junior? De Conceição Evaristo, contundente? De Sueli Carneiro ou Jarid Arraes? De Ana Maria Gonçalves ou Alzira Rufino? De Cristiana Sobral ou Ana Paula Maia, expoentes da literatura negra no Brasil. Ou da excelente Ruth Guimarães? Nada disso. O que escrevi veio do romance A Descoberta do Frio, de Oswaldo de Camargo. Foi publicado em 1978, ou seja há 45 anos. Agora retorna pela Companhia das Letras. Mais vivo que nunca. Um romance moderno, conciso. E fiquem atentos à frase “um frio que já fizera desaparecer um incalculável número deles”. Deles, os negros. Na época, Clóvis Moura, negro, piauiense, sociólogo e historiador, com quem trabalhei no jornal Última Hora, escreveu que “esse frio não vem apenas da atmosfera – outros não o sentem – e sim de uma situação existencial e social. É um frio centenário”. Referência ao preconceito racial, que esmaga a população negra no Brasil. Camargo nasceu em 1936, tem a mesma idade que eu. Estudou música, foi revisor deste jornal, redator do Jornal da Tarde e diretor de cultura da Associação Cultural do Negro. Encontramo-nos uma vez no Jornal da Tarde, fui levado pelo Marco Antonio Rocha, então editorialista do Estadão. Fazia tempo que eu abria um livro e só largava ao terminar. Não somente porque são apenas 127 páginas densas, como impossíveis de serem deixadas de lado. Distopia atual, à nossa volta. O frio que só mata negros. E ninguém acredita. Perplexos e descrentes todos. Como ainda hoje. Há neste romance um quê de A Peste, de Camus. Livro desconcertante, definiu Moura. Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 16 de julho de 2023. voltar |
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