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ELETRICIDADE: O ÚLTIMO VERÃO FÓSSIL?
Acadêmico: Jorge Caldeira
Não há muito de fantasia na afirmação de que, no próximo verão, haja pelo menos alguns dias nos quais o Brasil venha a ser 100 abastecido por energia renovável.

Eletricidade: o último verão fóssil?

A pergunta traz uma mistura de tempos: o verão deste ano já passou, o próximo ainda não veio. Para muita gente, essa estrutura que combina passado com futuro, quando trata de mudanças relacionadas à luta contra o aquecimento global, se confunde com pouco realismo e muita utopia – com coisa para sonhadores.

Então é o caso de começar argumentando com dados. Neste último verão, nada menos que 95,1 de toda a energia elétrica produzida no Brasil veio de fontes renováveis. Hidrelétricas, parques eólicos, painéis solares e biomassa, para sermos específicos. Sobraram 4,9 para usinas nucleares, petróleo, carvão mineral e gás.

Mais dados do passado: apenas quatro anos atrás, no ano de 2019, a repartição era: 87 para as renováveis e 13 para os combustíveis fósseis. E 15 anos atrás, em 2008, não havia energia eólica, nem solar, nem de biomassa no Brasil.

Agora, um dado geral. Quando se olha a capacidade instalada de produção de energia elétrica, as fatias são de 80,5 de energias renováveis e 19,5 de plantas movidas a combustíveis fósseis.

Somando esses dados, já dá para entender: o acontecido neste verão passado foi um domínio cada vez mais avassalador. As renováveis conquistaram mercado acima de sua fatia na capacidade instalada, alijando a concorrência.

Mudando do passado para o presente. Ao longo dos quatro primeiros meses deste ano, foram acrescentados 3,3 GW ao parque produtivo de eletricidade no Brasil. Destes, 93 são de eólica, solar e biomassa. A tendência se acelera.

Falando do que vem pela frente, com quase nada de utopia: existem unidades produtivas em obras. Nada excepcional acontecendo, até o fim deste ano haverá mais 10,1 GW de capacidade instalada no Brasil. Um crescimento de 5, possivelmente maior que o aumento do consumo. A fatia das renováveis nestas novas plantas deve ser a mesma do primeiro quadrimestre. Com isso, até o fim de 2023 eólica, solar e biomassa devem ter algo próximo a 35 da capacidade produtiva instalada no País. Relembrando: era zero há apenas 15 anos.

Claro, podem acontecer acidentes. O mais comum nas últimas décadas têm sido as estiagens, que afetam sobretudo a produção das hidrelétricas. As indicações são de que El Niño fará das suas e isso pode se repetir. Mas, ainda assim, 2023 vem a ser o ano em que os reservatórios estão mais cheios (80 da capacidade) nesta época do ano – o melhor resultado desde 2000, quando as medidas começaram a ser feitas. Mais um ponto para as renováveis.

Com todos esses dados em mente, entremos na pergunta do título. Sendo realista, não dá para imaginar que o Brasil vai fechar as usinas nucleares, desativar as minas de carvão mineral, devolver o gás aos poços de petróleo e fechar as térmicas que queimam óleo diesel.

Mas, sendo igualmente realista, não há muito de fantasia na afirmação de que, no próximo verão, haja pelo menos alguns dias nos quais o Brasil venha a ser 100 abastecido por eletricidade renovável.

Com tal proporção, agora se pode repensar o valor da pergunta. A revolução produtiva não foi ainda capaz de mexer minimamente com as ideias correntes, com a impressão geral de que esta coisa de ambientalismo é uma invenção lá de fora, ideia imposta por terceiros e que não tem nada que ver com a realidade da economia brasileira.

Tais fumaças têm seu valor. Servem para produzir argumentos que refutam propostas realistas, feitas com base no novo pensamento, ainda mais quando os autores estão fora do Brasil. Especialmente quando apontam um grande futuro econômico, caso aconteça uma aceleração da tendência do uso dos recursos naturais para fundar uma economia de carbono neutro – nada muito diferente do espraiamento daquilo que já acontece no terreno da eletricidade para a totalidade da economia.

Exemplo: em maio, o Banco Mundial publicou um relatório sobre as possibilidades do País com a adoção deste caminho. Basicamente, repete o que dizem esses estudos no mundo todo, já há alguns anos. Quantificando: com um investimento anual de apenas 0,8 do Produto Interno Bruto (PIB), de retorno quase imediato, o Brasil se transformaria numa plataforma mundial de atração de capitais e geração de empregos em poucos anos.

Então, caro leitor, permita-me, enfim, um pouco de fantasia. A pergunta deste artigo não é sobre um futuro verão, no qual as usinas movidas a combustível fóssil tenham seus dias de serem apenas um retrato na parede, como a Itabirito do poeta.

É mais, sendo de novo realista, sobre o hábito de pensar o futuro nos termos do passado. Esse me parece um estranho esporte nacional. Para ser sincero, sendo amante de estudar outros tempos, saudosismo não me incomoda. Mas, para quem se acostumou a lidar com o conhecimento do Brasil, a dominância da versão de não enxergar uma era de mudança, numa era de grandes mudanças, é algo que uma nação talvez não se deva permitir – especialmente quando é a maior beneficiária delas, em todo o planeta. Fiat lux?

Publicado no jornal O Estado de S. Paulo/Espaço Aberto
Em 09 07 2023



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