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UMA PEDRA NO CAMINHO
Acadêmico: Ignácio de Loyola Brandão
A poesia tinha entrado em casa. Carlos Drummond de Andrade baixou em Cangalha.

Rose, colaboradora doméstica em nossa casa no Cangalha, Minas, casada com Alci, o administrador de uma linda fazenda vizinha, trouxe Carlos Drummond de Andrade até nós, dias atrás. Todas as manhãs ela chega cedo e prepara o café, põe a mesa, faz pão de queijo. Habituamo-nos a estar de pé quando ela abre a porta e gostamos de conversar na cozinha. Ela chega, com a quitanda, como se diz aqui, ou seja os pães e roscas e biscoitos e com o leite tirado pouco antes pelo João que tem três vacas. Das primeiras coisas que faz é preparar a massa do pão de queijo, assado na hora. Ela nos traz também as novidades que correm de manhã. Todos, mas todos, têm celular.

Dia desses, nada de Rose chegar. Algum problema, nem deu para avisar. Era cedo, decidimos não ligar, sabe-se lá, mais tarde mandaríamos mensagem. Começamos a preparar a mesa e de repente ela entrou afobada, com um sorriso.

– Desculpem, foi a pedra.

– A pedra?

– Sim, havia uma pedra no caminho.

– Uma pedra no caminho?

– Isso, uma pedra no caminho.

– Uma pedra no caminho.

Nos entreolhamos. A poesia tinha entrado em casa. Pronto! Carlos Drummond de Andrade baixou em Cangalha naquele instante, ele que nasceu em Itabira, a 647 quilômetros daqui. Não há quem não conheça o texto mais curioso e enigmático da poesia brasileira: “No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra”.

Então perguntamos a Rose:

– Mas que pedra foi essa?

– Desde a construção de nossa casa, sempre teve a pedra. Meio mal colocada, mas nunca atrapalhou. Enfeita nosso jardim. Mas ontem, meu marido chegando à noite, cansado, estacionou o carro de tal maneira que, agora de manhã, não havia como sair. Dessas coisas loucas da vida. Assim, passamos uma hora nós dois puxando e empurrando a pedra. Até conseguirmos mudá-la. Quem ia pensar que um dia eu teria uma pedra daquele tamanho no meu caminho?

Humberto Werneck, cronista e escritor mineiro que está isolado em alguma parte do Brasil escrevendo a biografia do poeta, adoraria ter vivido esse episódio de sua terra. Drummond baixou aqui em casa.



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