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A OBRA DE BETTY MILAN INSPIRADA EM JACQUES LACAN
Acadêmico: Djamila Ribeiro
Filme baseado em livro da psicanalista mostra percurso da busca pela paz com o feminino

A coluna desta semana é uma viagem de 50 anos na vida de uma admirável pensadora e começa com a sessão de cinema aberta ao público, na Academia Paulista de Letras, do longa "Adieu, Lacan". Foi uma noite rica de debates e de contemplação, tanto do filme como do imenso trabalho de Betty Milan, psicanalista e escritora.

Dirigido por Richard Ledes, o filme é uma adaptação da peça "Adeus, Doutor" e do romance "O Papagaio e o Doutor" (Editora Record), ambos escritos por Milan e inspirados nos anos em que ela esteve em análise com o psicanalista Jacques Lacan, de quem foi tradutora e professora assistente na Universidade de Paris.

As obras sobre esse encontro alcançaram expressão internacional desde o início das publicações e marcaram tanto sua carreira como o legado do psicanalista, responsável por escritos que fundaram uma escola de pensamento.

Inspirada pela escrita criativa de Richard McKee, a obra foi traduzida para diversos idiomas e ganhou ainda mais projeção quando, anos depois, Milan escreveu a peça de teatro, que foi e segue sendo interpretada em diversos teatros na França, no Brasil e em outros países.

Certa vez, Richard Ledes dirigiu a leitura da peça na New York School of Arts e terminou pedindo a Milan que considerasse a adaptação ao cinema. Tanto pediu que acabou dirigindo o longa que foi exibido no largo do Arouche e que traz os diálogos eternizados na obra da escritora.

Sobre a trama de Siriema, protagonista do filme, reproduzo a sinopse dada de presente por Milan às pessoas presentes naquela noite: "Siriema vive o drama ocidental descendente de imigrantes do Oriente Médio. A maternidade parece impossível, porque ela não se identifica com as mulheres da sua família, suas ancestrais, mas também pelo desejo inconsciente que ela descobre graças à análise".

A obra retrata o percurso do encontro de Siriema com sua feminilidade. Ela foi uma menina muito ligada ao pai, impedida por ele de namorar meninos. Já adulta e com o pai falecido, ela foi ao encontro do psicanalista francês após dois abortos espontâneos. Segundo Milan: "ela [Siriema] não pode engravidar porque ela é objeto do desejo do pai, que não a autoriza a conceber. Ao descobrir isso, ela deixa de ser vítima do próprio inconsciente para se tornar sujeito do desejo".

Siriema viaja a Paris e não domina o idioma, fato que também é um mistério na análise pelo psiquiatra, tema que acaba sendo debatido ao final de forma brilhante (não, não vou contar, precisa assistir). Sua reconexão com as mulheres da família, seu confronto com a vergonha de ser mulher estão presentes na trama, que é um percurso da busca pela paz com o feminino.

Milan analisa: "A heroína de 'Adieu Lacan' é uma vítima de um preconceito em relação às mulheres que a impede de assumir as vicissitudes do seu sexo e ela só se libera graças à escuta pertinente do doutor. Sou particularmente grata a ele —e ao Richard Ledes pela adaptação cinematográfica do meu texto".

Fiquei muito tocada ao assistir esse filme, com cenas interessantes. Refletindo a partir de Simone de Beauvoir, as inadequações de Siriema com a imposição do "ser mulher", por uma estrutura posta antes mesmo que ela nascesse, traz os conflitos que são comuns na vida de meninas que não se veem nesse ideal de feminilidade.

O reconhecimento forçado pelo próprio corpo com o fato de ser uma mulher, tal qual a menstruação, o crescimento dos seios, traz para muitas a revolta em ser inserida em um grupo social visto e tratado como inferior na sociedade patriarcal, implicando em muitos casos na busca pela liberdade.

Ao buscar-se livre a partir da análise, Betty Milan construiu uma trajetória literária eternizada nas obras que exploram um universo psicanalítico de Jacques Lacan, seu analista na vida, nos romances e nos filmes. Quero parabenizá-la pelo filme baseado em seu livro e também dizer que estou ansiosa pelos seus próximos lançamentos.


Em tempo, já que o assunto é o trabalho de uma confreira da Academia Paulista de Letras, venho expressar neste espaço minha admiração por Maurício de Sousa, confrade gentil e cartunista que marcou e segue marcando gerações de pequenas leitoras e leitores. Desejo sucesso ao filme que retratará sua biografia e manifesto, sempre que posso e puder, o respeito pelo seu trabalho.




Publicado no jornal Folha de S. Paulo, 20 de abril de 2023.



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