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Acadêmico: Maestro João Carlos Martins Hoje em dia, como não tivemos mais um Bach, um Beethoven ou um Mozart nos séculos 20 e 21, a interpretação transformou-se na única forma de distinguir a individualidade do intérprete.
De quando em quando temos uma notícia que nos impressiona pelo avanço da tecnologia e da ciência, como fotos de Plutão e suas luas, feitas pela espaçonave New Horizons, ou dos robôs exploradores Opportunity e Curiosity, que registraram inúmeras imagens de pedras em Marte. Atualmente, a inteligência artificial, com seus algoritmos que fazem parte do nosso cotidiano, têm lacunas inexplicáveis. No meu caso, refiro-me à música, principalmente no que diz respeito à arte interpretativa (música instrumental e individual). Quando o grande jornalista Gilberto Dimenstein (1956-2020) e o ator Alexandre Nero me convenceram a ter meu próprio Instagram (@maestrojoãocarlosmartins), com o argumento de que seria mais uma peça no tabuleiro de democratização da música clássica, principalmente no Brasil, aceitei a ideia. Todos os sábados iniciei uma pequena postagem tocando ou regendo em algum lugar do Brasil ou do mundo, sempre com imagens ou trilhas sonoras ao vivo. Qual a minha surpresa, em ambos os casos, quando tive alguns bloqueios. Imaginem eu regendo com a minha expressão facial a minha Bachiana, tocando Brahms, e o algoritmo legendando que se trata da Filarmônica de Berlim. Claro que é uma honra ser comparado a essa grande orquestra, mas é fake. Imaginem ainda eu tocando Chopin, Schubert ou Liszt e ter a trilha totalmente bloqueada, ou regendo a "Heroica", de Beethoven, e ser bloqueado —apesar de as imagens serem reais. Talvez a solução seria a obrigatoriedade de o artista sempre fazer constar em sua postagem "áudio original" e, caso fosse fake, evidentemente que seria identificado e rejeitado pela classe artística, principalmente aquela que considera a cultura a alma de uma nação —além desse ato também ser um crime. Comecei por uma pedra em Marte para chegar à música e sua arte interpretativa. Claro que o algoritmo é capaz de reconhecer o compositor, mas raramente o intérprete, pois as delicadas nuances perceptíveis aos seres humanos não são perceptíveis para o algoritmo. Hoje em dia, como não tivemos mais um Bach, um Beethoven ou um Mozart nos séculos 20 e 21, a interpretação transformou-se na única forma de distinguir a individualidade do intérprete. Hoje se fala muito em fake news, mas espero que "fake playing news" não seja assunto da ignorância artificial, que não respeita a dignidade de um músico que fica horas, dias, semanas, anos para mostrar a que veio no mundo da música e para demonstrar como a individualidade do intérprete pode conviver com a personalidade do compositor. Por outro lado, músicas de domínio público, como é o caso da música clássica, especificamente, muitas vezes têm o registro da gravação de alguma orquestra que reivindica os direitos autorais. Me pergunto: esta é uma forma de democratizar a música clássica ou afastar o público digital, infelizmente ainda pequeno, deste maravilhoso universo que nos foi legado pelos grandes compositores do século 16 até meados do 20? Publicado no jornal Folha de S. Paulo/Tendências e Debates, 02 de abril de 2023. voltar |
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