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AS DUAS FACES DO BRASIL
Acadêmico: Bolívar Lamounier
Serei sucinto. Por um lado, somos rigidamente desiguais, hierárquicos, estratificados. Diria mesmo que somos uma sociedade de castas, mas não é bem isso, porque a camada dominante que mantém a hierarquia não pode recorrer simplesmente ao chicote, como os antigos senhores da lavoura canavieira; por outro lado, nossas castas não são como as da Índia, cada uma com lugar e função fixos na estrutura social, miseráveis mas com alguns direitos assegurados pela respectivas tradições.

Desde o francês Jacques Lambert, numerosos escritores escreveram sobre os “dois brasis”. Cada um viu dois, e nunca eram os mesmos. Então, se contarmos todos, provavelmente chegaremos a uns 300 x 2 = 600 brasis.

Para pior as coisas, hoje ocorreu-me descrever a minha dualidade de brasis. A sexcentésima primeira. Não é uma simples derivação das 600 anteriores, é de evolução recente, e atrevo-me a afirmar que é mais relevante para a compreensão do Brasil nesse nosso vigésimo primeiro século.

Serei sucinto. Por um lado, somos rigidamente desiguais, hierárquicos, estratificados. Diria mesmo que somos uma sociedade de castas, mas não é bem isso, porque a camada dominante que mantém a hierarquia não pode recorrer simplesmente ao chicote, como os antigos senhores da lavoura canavieira; por outro lado, nossas castas não são como as da Índia, cada uma com lugar e função fixos na estrutura social, miseráveis mas com alguns direitos assegurados pela respectivas tradições. Tomadas em conjunto, parece-me apropriado dizer que somos uma sociedade de classes pós-moderna.

Onde antigamente havia o senhoriato, aos quais incumbia uma função bem simples, a de segurar com firmeza as rédeas dos escravos, hoje existem várias camadas, com atribuições e ofícios diferentes, iguais, porém, na função de manter os de baixo sob controle, e de forçá-los a prover os bens e serviços a que eles (os de cima) têm direito, pois esse, afinal é o sentido último dessa complexa sociedade que construímos ao longo dos séculos. As funções são as mesmas, mas existem, como antecipei, vários níveis. Uns são mais senhores que os outros. No ápice da estrutura há os bilionários, aqueles que possuem recursos pecuniários de considerável monta, uma casa no campo e outra na praia, um iate e quem sabe uma discreto palacete na Europa. Abaixo, sem tanta riqueza, mas com o mesmo orgulho de sua posição e pleno conhecimento do que deles se espera: são comerciantes, e até mesmo profissionais liberais que tiveram a fortuna de estudar numa das grandes universidade do Primeiro Mundo e de lá retornar já encaixados na diretoria de algum banco.

Um dos grandes mistérios de nosso país é como um senhoriato numericamente tão pequenino não precisa suar para dar conta de suas à primeira vista tão insociáveis responsabilidades. É certo que uma parte dele tem sob sua guarda a máquina do Estado – vale dizer, administração, justiça, polícias... - , e eles mesmos detêm, a título de propriedade, quase metade da renda e da riqueza nacionais.

Do ponto de vista numérico, os de baixo - quero dizer, as castas em sentido estrito -, devem equivaler a umas 15 ou 20 vezes os de cima. O que lhes ameniza a vida é não terem que arcar com tantas e complexas atribuições. A maior parte deles não sabe ler, mas a intimidade com o analfabeto não é essencial a suas condições de vida. Nunca ouviram a palavra status, mas, por enquanto, isso não lhes fez falta. Tampouco precisam testar se têm ou não medo de voar, pois satisfazem-se plenamente com a chance de apreciar cá de baixo o voo daquelas belas máquinas. Neles, o sapato só aperta em três lugares. Precisam de comida, roupa e morada. Esta última complica bastante, não quando “o orvalho vem caindo”, mas quando tempestades furiosas caem sobre a terra, como aconteceu outro dia no litoral de São Paulo, deixando um saldo substancial de mortos, feridos e desaparecidos.

Curioso é a Divina Providência os ter livrado do que poderia ser uma gravíssima preocupação, e não só, ter invertido o sentido dela, transformando-a num grande alívio. Refiro-me à passagem do tempo, ou seja, ao futuro. Ele não fazer a menor ideia do que o pode estar espreitando, e a seus filhos e netos, não afeta em nada a alegria que sente ao encontrar um bom naco de comida numa lata de lixo. Essa preocupação já deve estar azucrinando as castas altas, e com certeza irá assustá-las nos próximos anos, se elas não fizerem algo agora, algo grande e relevante. Se não adquirirem um senso mais agudo de lucidez e responsabilidade, o orvalho cairá sobre nós como chuva tóxica, desfazendo (ah, sim, pelo menos isso!) as diferenças que eu e os 600 que me precederam temos tentado medir e descrever.




Publicado no Facebook – 03 de março de 2023.



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