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Acadêmico: José Goldemberg É essencial que o governo reassuma o papel proativo no planejamento energético nacional que teve no passado.
Ao que tudo indica, está se tornando moda na Câmara dos Deputados a introdução de “jabutis” na aprovação de projetos de lei (PLs). O que tem ocorrido é que, na etapa final de votação de um PL – longamente discutido nas várias comissões da Câmara –, o relator introduz modificações importantes não discutidas anteriormente e que são votadas imediatamente, sem a análise necessária. Muitas vezes, essas modificações têm pouco que ver com o projeto de lei original, caracterizando um verdadeiro “desvio de finalidade”. Um dos exemplos mais conhecidos desse procedimento ocorreu na aprovação da medida provisória (MP) que permitiu a privatização da Eletrobras. Foi incluída na MP a instalação de oito usinas térmicas que deverão gerar 2,5 milhões de quilowatts na Região Norte, 2,5 milhões no Centro-Oeste e 1 milhão no Nordeste – regiões onde notoriamente não existe gás –, além de 2 milhões no Sudeste. O governo deverá instalar ainda gasodutos para suprir as necessidades dessas usinas (32 milhões de m3 por dia). Custo total estimado: R$ 368 bilhões. Outro e mais recente destes “jabutis” acaba de ser adicionado ao Projeto de Lei n.º 2.703/22, votado pela Câmara dos Deputados em 6 de dezembro. O PL original estendia os prazos de inscrição que beneficiariam a micro e a mini geração distribuída, sobretudo usinas solares, isentando-as até 2045 de pagar pelo uso das linhas de transmissão e distribuição da energia elétrica excedente injetada no sistema. Na sessão em que o projeto de lei foi votado, o relator estendeu esse benefício às pequenas centrais hidrelétricas de até 30 mil quilowatts. Além disso, determinou que, dos 2,5 milhões de quilowatts de usinas destinados ao Centro-Oeste na lei de “desestatização” da Eletrobras, 1,5 milhão de quilowatts seria gerado por pequenas centrais hidrelétricas de até 50 mil quilowatts. Na prática, esse “jabuti” corrige o “jabuti” anterior. O primeiro dos “jabutis” descritos acima resultou da pressão dos setores interessados em usar gás natural. O segundo, dos grupos que produzem energia solar com subsídios. Mas, por outro lado, recolocou em termos corretos a necessidade urgente de valorizar o papel da energia hidrelétrica do País, levando em conta os aspectos ambientais. O que ocorreu na Câmara dos Deputados, nos dois casos, demonstra claramente a ausência do Ministério de Minas e Energia do processo decisório numa questão técnica em que sua participação é essencial. O sistema energético nacional – sobretudo na área de eletricidade – é integrado, isto é, existe uma rede nacional de linhas de transmissão na qual é lançada a eletricidade gerada em centenas de usinas e distribuída aos consumidores de todo o País. Nem os Estados Unidos têm uma rede integrada como o Brasil, o que garante a segurança energética em todo o País. Se Itaipu deixar de gerar, a eletricidade de outras usinas será redirecionada de forma a evitar um “apagão”. Tal sistema exige planejamento, mesmo que as inúmeras usinas existentes sejam privadas, e a expansão do sistema de geração não pode ser feita a mercê de interesses de lobbies. O Brasil é um dos poucos países do mundo com um imenso potencial hidrelétrico do qual apenas metade está sendo aproveitada. A expansão do sistema implicaria a construção de algumas grandes usinas na Amazônia e de um grande número de centrais hidrelétricas menores nas demais regiões do País. Essa expansão tem sido seriamente prejudicada por oposição de alguns grupos mal informados que acreditam, erroneamente, que usinas hidrelétricas dão origem a impactos ambientais e sociais insolúveis. A experiência da construção de cerca de 50 mil usinas hidrelétricas de grande porte no mundo todo, desde o século 19, é de que os impactos podem ser reais na região onde as usinas são construídas (situadas em geral em zonas rurais de baixa densidade populacional). Por outro lado, a eletricidade gerada beneficia populações cerca de 100 vezes maiores que vivem nas cidades a centenas de quilômetros de distância. As novas energias renováveis (solar e eólica) podem ser excelentes por serem renováveis e não poluentes, mas são intermitentes: não geram eletricidade à noite ou quando os ventos não sopram. Um sistema com alta participação dessas renováveis só funciona bem em conjunto com reservatórios de energia. Baterias são caras e só podem fornecer energia por algumas horas. As usinas hidrelétricas, com amplos reservatórios de água, desempenham esse papel com perfeição, com a capacidade de gerar eletricidade por longos períodos usando a água de reservatórios. Usinas térmicas (queimando combustível fóssil) e energia nuclear também podem fazê-lo. Essas questões não podem ser decididas sem forte embasamento técnico. Só aprofundados estudos permitem a tomada de decisões, e custos sociais e ambientais devem ser balanceados com os benefícios para a sociedade. Isso não se pode decidir no plenário da Câmara dos Deputados no curso de reunião que dura algumas horas. É essencial que o governo reassuma o papel proativo no planejamento energético nacional que teve no passado. Sem isso, continuaremos a tomar decisões ao sabor de lobbies que não levam em conta os interesses nacionais de longo prazo. Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 10 de fevereiro de 2023. voltar |
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