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Acadêmico: Bolívar Lamounier Todos temos um jeito de ver o mundo, de conhecer a sociedade e de formar nossas preferências sobre os assuntos por determinado prisma, não é verdade?
Há quem acredite que a democracia – ou qualquer outro sistema político se configure da noite para o dia. Uma tolice comum, decorrente de uma reles falta de reflexão. Toda política é essencialmente histórica, fixando-se em diferentes pavimentos e transformando-os ao longo do tempo. Tais coletividades vão construindo suas bases materiais e comportamentais – Estados, hierarquias de autoridade, regras de relacionamento com outras coletividades e assim por diante, processos que se desenvolve ao longo de décadas ou séculos. No mundo moderno, os termos chaves que designam tal evolução dizem respeito ao Estado e ao regime democráticos representativos. E daí, o leitor poderá perguntar, por que precisamos dessa evolução evolutiva para compreender a vida política sob a qual vivemos (ou padecemos)? Tentarei explicar. Ao tempo da Independência, o Brasil transitou direto da tirania colonial portuguesa para um Estado Constitucional Representativo. Tanto isso é verdade que apenas quatro anos após a outorga da Constituição de 1824 por D. Pedro I, o Judiciário e a Assembleia Nacional já estavam sendo instalados. Havíamos chegado à democracia? Em termos realistas, é claro que não. Havíamos implantado um embrião dela. Na minúscula sociedade da época, havia, de um lado, uma meia dúzia de poderosos, ricos e senhores de escravos e, do outro, os pobres, a maioria escravos e uns tantos ocupados em ofícios. Estes eram todos analfabetos, salvo algum extraviado que se tivesse alfabetizado por acaso. Fácil deduzir que foi só a partir da Regência (1831-1840) que as eleições começaram a ter algum significado. Nessa época, os “letrados”, quero dizer, os que falavam ou escreviam para seu escasso público, se referiam ao regime constitucional como uma coisa de doido. Como se iria edificar uma democracia a partir daquele material imprestável, se mesmo nos países mais avançados a democracia ainda era em grande parte farsesca? Mesmo no transcurso do século 19, a ideia de um eleitorado “representado” pelos políticos permanecia duvidosa. Chegado a este ponto, pelo licença para um salto telescópico. Hoje o Brasil tem mais de 150 milhões de eleitores, cerca de 72 da população total. A rígida estratificação social daqueles tempos já em grande parte se esmaeceu. Cinquenta anos atrás, era raro vermos um ofíce-boy entrar num elevador razoavelmente bem arrumado, calçando sapatos e trajando gravata. Hoje os vemos de tênis e camiseta e ninguém se queixa disso, pela simples razão de que a sociedade é outra. Mas há um dado curioso. Quando o assunto é política, a linguagem difere muito pouco daquela que prevalecia, já não digo no século XIX, mas até mesmo nas primeiras décadas republicanas (1889-1930). Milhares ou milhões tratam os “pobres” com escárnio e, vejam só, mesmo entre os cidadãos da classe média baixa é comum ouvirmos alguém vituperarmos o regime democrático. “Democracia como, se a maioria dos eleitorados não entende as alternativas que lhes são apresentadas pelos partidos? Se não passam de capiaus, ignorantes e preguiçosos? Como considerar iguais o Zé Povinho e o Fulano Sr de Tal? Sem uma ditadura lascada, o Brasil não irá a lugar nenhum”. O curioso desse argumento é que ele rigorosamente simétrico daquele vigente muitas décadas atrás. Naquele passado longínquo, o impedimento à democracia era a pobreza e o analfabetismo, agravados pelo fato de sermos poucos, dispersos em pequenas comunidades nas quais o senhoriato rural facilmente controlava “seus” eleitores. Agora, a maioria continua semianalfabeta, mas parece que pioramos, pois temos gente demais, uma multidão que mal conseguimos manter à base de nossa economia de baixa produtividade e muitos (agora milhões) continuam incapazes de entender o que lhes dizem o rádio e a televisão. Já não somos obrigados a nos ajoelhar perante qualquer Sr Fulano de Tal, mas o refrão “Você sabe com quem está falando” é martelado diariamente como uma síntese perfeita do que milhões de humilhados sentem. E então, que fazemos? Voltamos àquele tempo em que só uma elite riquíssima e letradíssima tinha o direito de votar? Descartamos de vez a democracia? Restabelecemos a tirania colonial e a escravidão? Ora, senhores, modus in rebus! Reponhamos as coisas nos seus devidos lugares. Comecemos pelo óbvio. O requisito sine qua non de uma democracia ainda que incipiente não é o eleitorado com um nível médio de alta sabedoria. É a incerteza, vale dizer, a impossibilidade de um lorde qualquer (famílias aristocráticas, empregadores, a corriola que controla os partidos) influenciar cabal e regularmente a votação que sai das urnas, numa série de eleições limpas e livres. Quero ser o último a menoscabar os programas de auxílio-emergência mediante os quais um partido conquista a simpatia e controla milhões de desvalidos, recrutando-os para seus exércitos eleitorais. Tampouco subestimo o coronelismo eletrônico, muito menos o “lugar da fala” de um presidente empenhado em se eleger. Afirmo, porém, que o busílis é a capacidade do eleitor médio de assimilar e contextualizar informações relevantes para as escolhas que vai fazer quando se vir frente à urna. O que venho dizer não é consolo para ninguém. Sabemos todos que a capacidade de contextualizar informações declina pari passu com o nível de escolaridade dos eleitores, com seu (des)interesse em acompanhar questões políticas e assim por diante. Eis o óbvio: nenhum corpo eleitoral, nem aqui nem na Suécia, é homogêneo. As diferenças devidas à escolaridade são descomunais. Mas há também milhares de jovens que facilmente optarão por jogar uma pelada em vez de pensar em seu voto. Sem esquecer que pessoas idosas ou doentes não são obrigadas a comparecer, com toda justiça. Mas tem mais. Assimilar informações, vá lá, pode não ser tão difícil. Contextualizar é outro busílis. Requer um nível muito mais alto de articulação conceitual, ou seja, de reconhecer relações necessárias entre proposições, entre saber que tal ou qual candidato defende uma proposta que pode afetar negativamente interesses econômicos ou morais caros ao nosso hipotético eleitor. Aqui estamos falando do que o cientista político Phillipe Converse enunciou numa obra clássica: “A natureza dos sistemas de crença em públicos de massa”. A palavra-chave aqui é sistemas de crenças. Dizer que um fenômeno é um sistema significa dizer que as partes que o compõe são interdependentes, ou seja, que se atrelam, ou ainda, que tendem a variar umas em função das outras. O essencial é a interdependência, mas atenção, o grau de interdependência pode ser num tipo de sistema do que noutro. A interdependência entre as partes de um avião é infinitamente mais alta (ainda bem!) que a das opiniões que formam o sistema de crenças de um eleitor. Um alto grau de interdependência entre as opiniões de uma parcela do eleitorado (geralmente os mais escolarizados) é um indicador seguro da capacidade deles de assimilar e contextualizar informações. Ou seja: há uma relação de determinação: entre os que possuem uma alta capacidade de contextualização, conhecendo duas ou três de suas opiniões nós podemos praticamente adivinhar o resto do que ele pensa. Todos temos um jeito de ver o mundo, de conhecer a sociedade e de formar nossas preferências sobre os assuntos por determinado prisma, não é verdade? Os fanáticos por futebol facilmente se lembram de tal ou qual jogo e até guardam na memória o nome do juiz que “garfou” seu time. Mas não misturemos as coisas. O indivíduo fanático por futebol geralmente tem um sistema de crenças fortemente estruturado em relação a essa área, mas pode ser um ignorante de pai e mãe a respeito da política e da democracia. É por isso que construir um time vencedor pode acontecer em duas ou três décadas. Construir a democracia demora muito mais que isso, e requer afinco, vontade e desejo de viver em liberdade. Publicado no último dia 21 de janeiro de 2023, no Facebook. voltar |
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