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Acadêmico: Bolívar Lamounier Em Brasília ele não acontece todos os dias. É intermitente e cheio de mistérios. Entra em estado de suspensão como o erário mostra sua face dadivosa
Equilíbrio pelo terror é uma situação comum na história dos povos, em todos os níveis, na política e em cada escaninho da sociedade. Claro, ele é mais facilmente perceptível no topo da pirâmide mundial de poder, naquela altitude onde lorpas e pascácios se divertem com a hipótese de destruírem o planeta. Imaginam tal situação, caem na gargalhada e, em seguida, sérios, diante das câmeras, aterrorizam os mortais comuns com a mensagem de que cedo ou tarde, de fato, transformarão a Terra num monte de pedrinhas. No momento atual, é esse o espetáculo em cartaz em Moscou, disponível nas melhores casas do ramo. Não tendo como distinguir o que é realidade e o que é teatro, nos apavoramos, óbvio, pois sabemos que o sr. Vladimir Putin não bate bem da cabeça. A devastação que já impingiu à Ucrânia nos força a crer que está falando sério. Mas, como antecipei, a busca do equilíbrio pelo terror acontece até nos menores nichos da vida animal. Garotos igualmente exímios no manejo do estilingue, em geral, preferem agredir seus amigos ineptos, pois têm ciência de que rivais exímios lhes darão o troco. Um touro bravio quase sempre opta por esperar sua vez a impedir outro também bravio que já se aproximou de uma garbosa novilha. Brasília é também pródiga nessas práticas relacionadas ao equilíbrio pelo terror. Anos atrás, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, até cunhou uma nomenclatura própria. Quando armava sua atiradeira, ameaçava disparar uma “pauta-bomba”. Mas em Brasília a situação a que me refiro não acontece todos os dias. É intermitente e cheia de mistérios. O equilíbrio pelo terror entra em estado de suspensão como o erário mostra sua face dadivosa. No segundo mandato de Lula, por exemplo, tudo sugeria que o ideal da paz perpétua fora finalmente atingido. Duplas de protagonistas desfilavam sorridentes pelos corredores, o mais alto geralmente com a mão no ombro do companheiro mais baixo. Tais ocasiões tornam-se ainda mais comoventes quando a maio ria é constituída só por pequenos Davis, nenhum deles disposto a interpelar o Golias de plantão, muitos metros mais alto que o mais alto deles. A coisa se complica é quando um erário esquálido faz ver à multidão que a época das vacas gordas acabou. Pior ainda quando, em vez de um, temos dois Golias igualmente furibundos. O debate entre Lula e Bolsonaro com que fomos brindados no domingo passado (16/10) foi assaz instrutivo. Xingamentos não houve tantos, dado ser limitado o tempo do programa. Mas foram suficientes para nos deixar com a impressão de que, nos próximos quatro anos, o equilíbrio, se houver, não será como a alegre confraternização do tempo das cornucópias cheias. Será pelo terror, ritual ou real. Os dois contendores só se comportaram como rinocerontes mansos em obediência às regras do programa. Bolsonaro, mais concentrado, distinguiu-se mais uma vez em sua arte de se mostrar furibundo, e teve o conforto adicional de já se saber dono da maior bancada na Câmara. Lula, milongueiro, sempre “liso” (como se diz em futebol), adentrou o recinto confiante nas excelências da ironia e do escárnio que cultivou durante décadas. O problema, naturalmente, é que o enfrentamento, não mais ritual, tem data certa para acabar: o próximo dia 30. Só um Golias subirá a rampa do Planalto ostentando no peito a faixa presidencial. Saberá que a paz será breve, mas de início isso não o intimidará, pois nem o mais audacioso dos Davis tentará atingi-lo com sua funda. O outro Golias, lambendo suas feridas, tampouco será tolo de o desafiar. Nós, cá da planície, é que teremos com o que nos preocupar. Se o erário brasiliense já está à míngua, o nosso dificilmente será suficiente para garantir a mais reles civilidade. Continuaremos a sentir sucessivos aumentos na condutibilidade atmosférica do rancor e do ressentimento, e a presenciar pancadarias homéricas em jogos de futebol, co mo aconteceu naquele mesmo domingo em que nos foi dado presenciar um arremedo de debate. Foi-se o tempo em que alguns de nossos melhores escritores escarafunchavam a última flor do Lácio em busca de supostas raízes de nossa também suposta cordialidade. Atualmente, o que podemos afirmar é que o Brasil parece estar perdendo um dos nossos melhores ativos. Termos este território imenso e esta abundância de recursos naturais é muito bom, mas, com o convívio social esgarçando-se a cada 15 minutos, convém mantermos as barbas de molho. Normalizar o País, pacificá-lo, pôr de lado a carranca que já há alguns anos trazemos afivelada ao rosto são o objetivo número um. A prioridade absoluta. A paz, como certa vez escreveu Tancredo Neves, é uma esquiva conquista da razão política. É um valor em si mesmo, inegociável. Dá-se, entretanto, que este ambiente estúpido que as novas gerações estão vivendo pela primeira vez reflete o fato de nos havermos tornado incapazes de promover o crescimento da economia, com governos incapazes de fechar o orçamento anual e milhões de famílias condenadas a viver da caridade pública. Publicado no jornal O Estado de São Paulo, 22 de outubro de 2022. voltar |
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