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AS URNAS FIZERAM SUA PARTE, SÓ PRECISAMOS AGORA DE MILAGRES
Acadêmico: Bolívar Lamounier
Infelizmente, o que ficou demonstrado recentemente foi só a resiliência de nossa democracia, não sua funcionalidade

As urnas fizeram sua parte, só precisamos agora de milagres

Bolívar Lamounier, O Estado de São Paulo
08 de outubro de 2022

É preciso ser muito obtuso para crer que o Brasil pode ser governado fora do regime democrático e que a economia pode crescer sem reformas enérgicas e grandes investimentos no setor privado.

A resiliência da democracia foi claramente demonstrada em dois episódios recentes: o manifesto lido no dia 11 de agosto na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, e a própria eleição de domingo passado, disputada num clima de alegria e descontração. Aqueles que até 15 ou 20 dias atrás faziam ameaças não tão veladas de golpe podem, agora, meter a viola no saco.

Infelizmente, o que ficou demonstrado foi só a resiliência de nossa democracia, não sua funcionalidade. Ficou demonstrado que, entre nós, os postos eletivos hão de ser preenchidos mediante eleições limpas e livres, segundo uma periodicidade prefixada. E que o processo eleitoral é a única via legítima para o acesso a tais cargos: the only game in town, como dizia Juan Linz, um dos maiores estudiosos dos regimes democráticos.

A insuficiente funcionalidade de nosso sistema já se evidencia desde agora, antes mesmo do segundo turno. Evidencia-se no alto grau de fragmentação da estrutura de partidos na Câmara, nosso velho calcanhar de Aquiles. Só muito raramente um partido consegue eleger 20 dos deputados federais. Este ano, o PP bateu na trave: conquistou 99 deputados, mas para atingir a marca dos 20 precisaria chegar a 102. E nunca é demais frisar que não temos propriamente partidos, mas siglas. Com um arremedo de programa e coletando certo número de assinaturas, qualquer pequeno aglomerado de cidadãos pode ir ao Tribunal Superior Eleitoral e registrar uma sigla, mas daí a transformar tal aglomerado num partido sério vai uma grande distância.

Um bom exemplo, na eleição deste ano, foi a candidatura da senadora Simone Tebet, pelo MDB. Méritos Simone tem de sobra. Poderia ter angariado ao menos 10 ou 15 da votação nacional. Mas ficou bastante aquém disso, e a razão é simples. Não tinha um partido trabalhando a favor dela, mas um aglomerado trabalhando contra ela, ou, no mínimo, indiferente ao fato de ela ser na ocasião a portadora da bandeira chamada MDB.

A disfuncionalidade partidária pode, também, ser avaliada pelo ângulo de alguns destinos individuais. Num país onde existam partidos, os que se apresentam como candidatos o fazem dentro de certo balizamento, que não precisa ser rígido, mas que tenha força política e moral para conferir sentido ao movimento das diversas siglas. Nem metade dos eleitores precisaria levar no bolso a famosa “cola” ou consultar na última hora as listas colocadas a disposição pela Justiça Eleitoral. Onde não há partidos, o quadro que nos é dado presenciar lembra um processo de fissão nuclear, com prótons e elétrons correndo adoidados para todos os lados.

Os que mais perdem com essa reação em cadeia são bons candidatos que, em tese, poderiam se eleger, mas não alcançam tal objetivo, porque não têm o benefício da orientação coletiva que só partidos de verdade podem prover. Na eleição deste ano, vários foram vitimados pela solidão política, ou seja, por não terem correligionários relevantes a quem ouvir, ou por terem perdido o hábito de ouvir correligionários.

João Doria, por exemplo, poderia ter sido eleito e prestado um importante serviço ao PSDB caso tivesse optado pela reeleição ao governo de São Paulo, mas só ouviu a si mesmo, insistiu na candidatura à Presidência da República e foi alijado do pleito. Ainda mais claro foi o caso de Ciro Gomes. Dono de um admirável currículo como governador do Ceará, teria chegado ao Senado com um pé nas costas, mas acreditou, pela quarta vez, poder operar uma proeza que decididamente não estava a seu alcance. Derrotado vitorioso só houve um, o senador José Serra, que perdeu muito mais por seus méritos que por seus defeitos. Perdeu por ter-se mantido coerente com sua trajetória de bom uso dos recursos públicos, fincando o pé contra a maioria naquela famigerada noite em que todos os outros meteram a mão em R$ 41 bilhões com objetivo claramente eleitoreiro, cinicamente disfarçado como ajuda de emergência aos famintos.

Sobre programas econômicos e sociais, quase todos os candidatos passaram pela cena sem dizer palavra. Otimista incorrigível, espero ouvir algo nesta reta final para o segundo turno. Sabemos todos que, sem investimentos, a economia não cresce e o desemprego não diminui. Promover o crescimento só com recursos públicos é obviamente impossível, pela singela razão de que tais recursos não existem. Recursos privados nacionais também não existem. A indústria nacional, que já representou 27 do Produto Interno Bruto (PIB), agora representa 11.

Para atrair investimentos estrangeiros, a polarização populista dos últimos anos tem de acabar. Há quem acredita nisso, e rezo para que tenham razão. Aí, resta-nos crer que Lula e Bolsonaro mudarão rápido de cabeça e que os capitalistas estrangeiros, de cujo dinheirinho dependemos, convertam-se da noite para o dia em devotos de Madre Teresa de Calcutá.

*SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS




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