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À ESPERA DE DOM SEBASTIÃO
Acadêmico: Bolívar Lamounier
Que ele volte, se assim o quiserem as urnas, mas volte mais sensato e responsável, sem o ranço populista que cultivou na juventude

Tendo revolucionado a navegação de longo alcance, Portugal construiu um formidável império, singrando os mares, como escreveu Camões, “ainda além da Taprobana” – ou seja, ainda além do atual Ceilão –, mas depois, em sua prolongada decadência, o país pôs-se a aguardar o retorno de seu jovem rei Dom Sebastião, recusando-se a crer que ele teria morrido em 1578, na batalha de Alcácer-Quibir.

Essa é a origem do termo “sebastianismo”: a sofrida espera de um regresso que jamais ocorrerá.

Comparado com Dom Sebastião, Lula tem ao menos duas inegáveis vantagens. Uma, a de estar vivo: quanto a isso não há dúvida. E não perdeu – ao contrário, aprimorou – sua proverbial esperteza. Há até quem diga que o Lula de 2022 supera por larga margem o de 20 ou 30 anos atrás, porque agora consegue perceber, por exemplo, as oportunidades que grandes mudanças na ordem mundial poderão abrir para nosso país, tornando plausível a retomada do crescimento econômico em bases sustentáveis.

Dá-se, infelizmente, que as pedras que Lula encontrará em seu caminho não são de pequena monta. Mencionarei quatro delas.

Primeiro, o Lula que quase certamente voltará ao Planalto terá de assumir um papel pacificador. Terá de nos livrar do populismo bipolarizado, o estúpido confronto entre petismo e bolsonarismo, que dividiu nossa sociedade de alto a baixo. Com dinheiro sobrando, ele faria isso com um pé nas costas. Com um orçamento anêmico, a esperteza perde grande parte de sua eficácia. A esse detalhe é preciso acrescentar outro: em nosso sistema de governo, o principal instrumento de que o presidente dispõe para desarmar os espíritos e estimular a convergência é a própria eleição. É aquele momento mágico em que, dirigindo-se à grande constituency nacional, ou seja, ao conjunto do eleitorado nacional, o vitorioso é reconhecido e é geralmente aceito como um símbolo de unidade. (Digo “geralment e” porque as coisas nem sempre se passam assim. Dias atrás, ao abrir a sessão anual da Organização das Nações Unidas, Jair Bolsonaro discorreu sobre uma nação desunida, o Brasil; desunião que ele mesmo promoveu, com relevante colaboração do PT.) Decorrido aquele momento mágico, o chefe de Estado não dispõe de meios institucionais para lograr a proeza da pacificação. Precisa ficar de olho no calendário, fazendo das tripas coração para manter intacto seu prestígio ao menos durante o primeiro semestre.

A partir de cem dias, um pouco mais ou um pouco menos, a economia entra em cena. Entra para reforçar ou para solapar o carisma engendrado pela eleição. Desse ponto de vista, a situação brasileira é preocupante. Mencionei acima as formidáveis oportunidades que talvez estejam se abrindo para o Brasil no médio prazo. Ocorre que, no curto prazo, somos um país que mal consegue fechar o Orçamento anual. Crescendo a passos de cágado, a arrecadação diminui, e a realidade econômica não tem o condão de, por si só, tornar racionais os milhares de titulares de cargos públicos e seus respectivos assessores e funcionários de gabinete, que preferem continuar gastando. Nos últimos meses, o que vimos foi o Executivo e o Legislativo praticamente institucionalizarem a transferência de renda para os segmentos mais vulneráveis da sociedade. Muito justo, ainda mais em tempos de pandemia, mas os megainvestidores internacionais pensarão duas vezes antes de trazer para cá seu escasso dinheirinho se não lhes oferecermos sólidas garantias.

Há solução? Precisa haver, não é? Que tal um corte drástico nos desperdícios brasilienses e uma contundente convocação ao setor privado, não no plano da retórica, mas das reformas? Lula fará isso? Tendo a crer que não, mas disponho-me a acreditar que sua estada em Alcácer-Quibir tenha sido instrutiva.

Fiz, anteriormente, uma breve referência às grandes oportunidades que começam a se delinear na economia mundial. Oportunidades são sempre benfazejas, mas nem sempre são aproveitadas. O melhor exemplo que a história econômica registra talvez seja o da Argentina. Com o surgimento da tecnologia da refrigeração de carne em navios, ela rapidamente entrou para o seleto círculo dos países mais ricos do mundo, mas de lá despencou com a mesma velocidade, por obra e graça de suas trapalhadas políticas. Hoje, pelo que me consta, uma importante parcela de sua população está abaixo da linha da pobreza. Nós não estamos tão mal, mas há indicações de que 30 das famílias estejam passando fome. E nem falo de nosso patético sistema de ensino, que clama por providências urgentes. Tais providências não estão à vista, e, ainda que estivessem, se a economia não cresce, se não há emprego, fica tudo como dantes no quartel de Abrantes.

Não desenhei as pedras acima com espírito de Cassandra. Rascunhei-as para lembrar que o nosso eterno momento panglossiano precisa acabar em outubro. Que volte Dom Sebastião, se assim o quiserem as urnas, mas volte mais sensato e responsável, sem o ranço populista que cultivou durante sua juventude.




Publicado no jornal O Estado de São Paulo, 24 de setembro de 2022.



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