O “FURACÃO DJAMILA” CHEGA NA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

O “Furacão Djamila” chega na Academia Paulista de Letras

Livros deverão ser escritos, documentários hão de ser feitos, filmes retratarão nos mínimos detalhes a noite de 01/09, na Academia Paulista de Letras, em São Paulo. Quem disso quiser duvidar, boa sorte. Mas a posse de Djamila Ribeiro como imortal da Cadeira nº 28, sucedendo a grande escritora Lygia Fagundes Telles, foi daquelas noites que ficam para a história. São testemunhas desse momento as centenas de pessoas que lotaram o auditório da Academia do Largo do Arouche e preencheram-no de cores e vida para festejar essa grande mulher e se envolver ao som dos atabaques, das palavras ancestrais, dos merecidos reconhecimentos.

Na chegada das 19 horas da quinta-feira, um horário duro para o povo trabalhador, o auditório enchia como jamais havia enchido. A mesa de posse se fez com o Presidente da Academia, o escritor e ex-presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo José Renato Nalini, o escritor e professor de Filosofia Gabriel Chalita e demais autoridades da Academia. Representando a Academia Brasileira de Letras estava na mesa o jurista Celso Lafer. E pessoas foram chegando até lotar as 300 cadeiras do lindo auditório que nunca foi tão de São Paulo quanto naquela noite.
Quando seu nome foi anunciado, Djamila chegou acompanhada da acadêmica Maria Adelaide do Amaral, que a segurava pelo braço. Os queixos caíram e aplausos efusivos tomaram conta doNa plateia, estavam pessoas dos mais variados campos da sociedade, uma celebração democrática. Entre as pessoas, Conceição Evaristo foi saudada repetidas vezes e aplaudida de pé, em um momento que arrepiou até o último fio de cabelo das pessoas presentes. A escritora conquistou o coração e admiração das pessoas e foi festejada como se tivesse ela também sendo laureada.spirado em Whitney Houston, quando da apresentação no Billboard Awards em 1991.

A roupa foi especialmente desenhada por Talita Verona, estilista irmã em sua comunidade religiosa. A capa da CartaCapital na última semana com a chamada “a filósofa transita entre a pesquisa, o ativismo e o glamour pop” ganhou ares ainda mais icônicos com a chegada de Djamila como uma diva dos anos 90, pronta para ser justamente laureada em prol de tudo que faz pela pesquisa, pelos livros e pelo ativismo no país.

Quem leu até aqui pode achar que estou exagerando. Ora, não pretendo negar meu amor e minha admiração pessoal por Djamila, muito pelo contrário. Mas ressalto que nem de longe fui o único a sair inebriado daquela cerimônia fantástica. No dia seguinte, pude ler o texto especial para o Estadão de Ignácio de Loyola Brandão, notável escritor titular da cadeira nº 37 na Academia Paulista de Letras. No texto “A grandeza de Djamila”, Brandão foi certeiro quando nominou a noite de primeiro de setembro como “feliz, apoteótica, histórica”. Disse ele que vendo-a imponente, Djamila se curvava em respeito diante de alguns. O escritor, por sua vez, não teve dúvidas em curvar-se diante dela, representando um momento em que a Academia se curva diante da realidade.

Para quem é de Candomblé, pedir a benção é um ensinamento primeiro em respeito aos mais velhos e mais velhas, como também aos Orixás que vivem nas pessoas da religião. Pede-se a benção curvando-se com um beijo na mão e com isso está selado um encontro de axé. Djamila, como uma ebomi – uma irmã mais velha – guiou todas as pessoas ali presentes e, pela educação de terreiro, pedindo a benção das autoridades religiosas, impactou o ambiente com o axé de Oxóssi, o Orixá caçador.
A festa foi toda preparada por seu terreiro, o Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá, sob as bençãos de Pai Rodney de Oxóssi e produção de Pai Fábio de Logun Edé. A artista Alessandra Castelhano expôs suas mais novas obras, incluindo a série “Orixá olha por mim”, em que traz pinturas com destaque para os olhos de cada Orixá. Trata-se de peças únicas que são vendidas no segundo seguinte em que são lançadas, a certeza de que é uma série para a posteridade. O buffet ficou a cargo da Thata Festas, presença recorrente nas festas do Ilê. A barraca de Acarajé ficou por conta da filha de Iansã e exímia cozinheira Alessandra Araújo. Os doces ficaram por conta de Bruno de Oxaguiã e seu parceiro Matheus Rosa. A sonorização foi de Allan de Oxóssi e cada pessoa que chegava recebia um fio de contas preparado por Pai Nando de Ogum. Foi um xirê, como se chama a festa dos orixás, da comunidade em torno de Oxóssi, dono da cabeça de Djamila e de Pai Rodney.
Na última semana, escrevi sobre Pai Rodney e seu poder de realizar. Disse que o mês de agosto do babalorixá havia sido incrível, uma vez que o sacerdote lançou um livro, estreou uma campanha histórica com Djamila para uma marca de whisky – a primeira campanha publicitária do país que retratou pai e filha de santo -, como também por três domingos seguidos esteve na esquina mais movimentada da Avenida Paulista para fazer o seu Sabejé, os preparativos da festa do Orixá Omulu.

Mas o seu mês de setembro não começou menos pioneiro, pois a ele coube fazer a apresentação de Djamila no evento de posse, e, ao fazer isso, tornou-se uma das poucas – arrisco dizer a única – pessoa de fora das cadeiras de imortais a fazer uso da palavra em uma cerimônia de imortalidade. Foi uma senhora quebra de protocolo, com direito aos sons dos atabaques ressoarem por todo o ambiente com o toque de Oxóssi, o conhecido Aguerê.

O discurso de apresentação do sacerdote ressaltou Oxóssi como o Caçador da Esperança, aquele que é vanguarda para criar o que as pessoas imaginavam impensável, mas que, com sua única flecha, rasga a casca do racismo e cria um outro mundo possível. Depois daquela noite, a posse de uma mulher negra aos sons dos atabaques sob as bençãos de seu sacerdote e sua família de santo aconteceu, inspirando sabe-se lá quantas pessoas ao redor do país.

A certeza de os olhos assistiam a algo inédito na história do país – e novamente arrisco aqui para dizer que também na história das Academias de Letras das Américas e na Europa – estava presente nas pessoas que se entregavam à energia do momento como se fossem crianças. Leandro Karnal, escritor, professor de História da Unicamp e comunicador conhecido, foi responsável por fazer a fala de recepção de Djamila Ribeiro, que estava em vias de se tornar a caçula da Academia. Argumentou a multiplicidade dessa grande mulher que pode ser dividida entre várias, ao mesmo tempo que é uma. “Ela está em todos os lugares”, afirmou Karnal que a classificou-a como “furacão Djamila”.

Furacão é uma grande tempestade de ventania que leva o que encontra pelo caminho. É um fenômeno da natureza dominado pela orixá Iansã, que está em todos os caminhos da pensadora. Aquela que é a dona dos ventos e caminha altiva em defesa das mulheres. Como uma filha de Oxóssi com Iansã, Djamila Ribeiro foi homenageada por Leandro Karnal à altura. Muitas pessoas poderiam pensar que a comparação não faz sentido, pois furacão deixa um rastro de destruição por onde passa. Mas, no caso, estamos a partir da lógica de uma feminista negra que precisou da força dele para fazer frente aos diques do racismo que impedem que mulheres como ela estejam nos espaços que são seus por direito. Ao destrui-los, o furacão Djamila segue fazendo passagem para um povo brasileiro que está em movimento.

Quando chegou sua vez de ir ao púlpito, o Aguerê anunciou a chegada da filha de Oxóssi e as palmas tornaram a mão de todas as pessoas mais vermelhas do que já estavam. Era incontrolável a vontade de aplaudir e viver aquele momento com intensidade. Djamila, então, começa a falar e o silêncio se faz presente para ouvi-la. Conta de sua infância, das suas representações femininas na família: sua avó Antônia, sua mãe Dona Erani e, porque não, sua filha Thulane, que assistia da plateia orgulhosa da mãe. Uma relação de mãe e filha orgulhosas uma da outra.

Djamila homenageou Ruth Guimarães, primeira mulher negra imortal na Academia Paulista, como também a todas as pessoas que a antecederam na Cadeira 28, em especial Lygia Fagundes Telles, notável escritora.
Poderia dizer mais, mas fico com as palavras de Ignácio de Loyola Brandão: “convivi com Ruth Guimarães na Paulista, conviverei agora com Djamila, que entrou na vaga de Lygia Fagundes Telles. Pensávamos, nós acadêmicos, que seria dificílimo substituir Lygia. Não foi. Djamila assumiu a vaga e já em seu discurso vimos que a escolha foi perfeita pela qualidade literária, pela maneira de encarar e pensar a vida, o Brasil, racismo, em um discurso radioso e humorado que fugiu às regras. Depoimento humano de estremecer”.

“O tempo é Senhor e a serenidade é conquista. Hoje tenho serenidade e perdi o medo da plenitude. Obrigada”, encerrou Djamila e a multidão se levantou emocionada em aplausos. Atabaques ressoaram e uma confusão de alegria se fez no local. Nalini e Chalita resolveram quebrar os protocolos de vez e, em vez de um acadêmico colocar o colar da imortalidade em seu pescoço, uma comitiva composta por Conceição Evaristo, Leci Brandão, sua filha Thulane, Pai Rodney e Orlando Silva subiu ao palco para coroá-la como a mais nova e mais amada imortal da Academia Paulista de Letras, sob comoção geral.

Essa noite inesquecível é o recomeço da Academia de 113 anos de idade, que, ao nomear Djamila, uma intelectual pública, como sua mais nova imortal, aproxima-se da população e escreve a página mais linda de sua história.

Brenno Tardelli Editor de Justiça e Diversidade no site de CartaCapital. Mestrando em Direito pela USP-Ribeirão Preto. Advogado, fundou o site Justificando, onde foi diretor de redação por quatro anos.

Publicado na Carta Capital/Opinião
Em 04 de setembro de 2022






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