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Acadêmico: Bolívar Lamounier A necessidade de uma reforma constitucional ulula a nossos ouvidos de manhã à noite, mas sabemos todos que há pequenos senões
Conto com a compreensão do leitor para a catadupa de repetições que vou despejar no artigo de hoje; com esta covid-19 que se arrasta, mas não acaba, este frio dos infernos e as hipóteses eleitorais que somos forçados a considerar para outubro, não vejo como um ser humano possa ter uma ideia original. Sobre a eleição, ganhe Lula ou Bolsonaro, de uma coisa podemos ter certeza: não haverá reforma política. Dando de barato que o eleito, uma vez empossado no dia 1.º de janeiro de 2023 para um mandato de quatro anos, dará tratos à bola sobre como se reeleger em 2026, podemos marcar no calendário que antes de 2027 nenhuma reforma será discutida seriamente. Vejam vocês que coisa extraordinária. Não há sobre a face da Terra país mais aferrado a aberrações (como o Colégio Eleitoral) que os Estados Unidos. Mas nesse ponto nós os deixamos a comer poeira. Reeleição para um mandato de quatro anos, vá lá, a gente faz o possível para engolir, mas nós chegamos ao cúmulo de admitir que o inquilino, tendo descansado durante quatro anos, tente retornar ao Planalto para fazer mais quatro anos de estragos. Entre as 80 ideias de reforma que discutimos desde o Congresso Constituinte, essa é a mais branda, a mais razoável, a que não ofende ninguém, mas nem dela queremos saber. E o pior: em toda a América Latina, parece que todos os inquilinos só pensam nisto, o terceiro mandato, seja na base da rasteirada ou por qualquer outro meio. Claro, Lula e Jair Bolsonaro sempre podem nos causar alguma surpresa, e qualquer um tem o direito de acreditar no que quiser. Seja um, seja o outro, se quiserem acreditar, acreditem no que quiserem. Creiam de pés juntos que teremos uma reforma institucional de fazer inveja a Hamilton, Jefferson e Jay, os três “federalistas” que prepararam a ratificação da Constituição. Creiam que Jair, com sua serenidade e seu realismo, convencerá os investidores externos a trazerem trilhões de dólares para dar um jeito em nossa infraestrutura e retomar o crescimento econômico. Lula, se não igualar Jair em tirocínio, ao menos descobrirá uma forma confortável de subir na carroceria do caminhão quando lhe der vontade de fazer discursos por este nosso Brasil afora. Trabalhando num clima de notável independência e harmonia, os Três Poderes operarão o milagre de delinear a estrutura de partidos que todos desejamos. Reduzimos os atuais trinta e tantos para dois? Ou fazemos o contrário, aumentando os atuais trinta e poucos até o sistema se estabilizar ali por volta de sessenta e poucas siglas? Por enquanto, eles não sabem, nem nós, mas conservamos carinhosamente em nossa mente o antigo alvitre do Partido dos Trabalhadores: “Vamos debater com a sociedade”! A necessidade de uma reforma constitucional ulula aos nossos ouvidos de manhã à noite, mas sabemos todos que há dois pequenos senões. Primeiro, num estalo de Vieira, os constituintes de 1987-1988 insculpiram no texto vigente as chamadas “cláusulas pétreas”, que só podem ser alteradas pelo “poder constituinte originário”, ou seja, por uma nova Constituinte. Como este senhor (o “originário”) não está disponível a qualquer hora, não temos como eliminar o famigerado “trânsito em julgado”, pelo qual o indivíduo só é obrigado a iniciar o cumprimento de sua sentença (leia-se: recolhido ao xadrez) após ser condenado em quatro instâncias. Examinando tal estipulação com cuidado, o leitor se convencerá de que uma coisa é uma coisa e outr a coisa é outra coisa. Dito assim, parece um dispositivo inocente, mas o fato é que ele divide a Justiça brasileira em duas: a dos pobres e a dos ricos. Um pobre que roube uma barra de chocolate e vá em cana poderá mofar lá durante anos, e queira Deus que não vá parar no presídio de Pedrinhas. Mas um ladrão de alto padrão, cuja conta bancária lhe permite contratar um advogado dispendioso e bem relacionado na praça, sabe que a quarta instância tão cedo não dará o ar de sua graça. Afeiçoado como eu a filmes policiais, o leitor com certeza guarda na cabeça aquele velho refrão: “Esqueça o cadáver, procure quem o matou”. Esse, realmente, é o busílis. Quem é o responsável por este estado de coisas a que o Brasil chegou? Quem permitiu a volta do populismo, essa nossa antiga especialidade latino-americana? Quem insiste em ignorar que mais da metade de nossa população é analfabeta e que um passeio pela periferia de nossas grandes cidades não é uma proposição que se faça a almas frágeis? Quem não se comove vendo gente amontoada debaixo dos viadutos? Ora, meus amigos, como detetives, nós estamos nos revelando um desprezível fracasso. Nunca, em nenhum filme, o criminoso deu tanta bandeira. O criminoso somos nós. Não digo todos nós: os 50 de brasileiros que sobrevivem da mão para a boca não têm como fazer mais do que já fazem. Mas e nós, que temos alguns recursos, se não em moeda sonante, ao menos em tempo livre, para ajudar, por que não ajudamos? Por que não trocamos ideias, discutimos soluções e pomos mãos à obra? Publicado no jornal O Estado de São Paulo, 21 de maio de 2022. voltar |
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