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A MORTE O QUE É?
Acadêmico: Ignácio de Loyola Brandão
Uma coisa me obceca: no instante final, sabemos que estamos morrendo? Como fica nossa mente?

Para quem prega programação para tudo, a vida desmente. Tudo determinado, muda-se em um instante. Um mês atrás tive um encontro com Marco, primo-irmão, mais irmão que primo, ele parecia ter vencido um câncer. Ao sair, combinamos nos revermos logo. Dez dias atrás estávamos com tudo pronto para irmos a Minas, queríamos o silêncio e o verde. Íamos descer para o carro, veio a notícia, Marco tinha morrido.

Em vez de irmos para Minas, fomos para Araraquara. Estava desnorteado. Os primos Zezé e Marco tornaram-se irmãos de coração e mente. Breves insights. Em 1966, eu tinha 30 anos e Marco 14. A Ferroviária disputava a primeira divisão, após ter caído da Especial. Na sexta, em São Paulo, eu terminava meu expediente na Última Hora e seguia para a Estação da Luz, entrava em meu leito do vagão-dormitório (coisa boa que acabou) da Companhia Paulista e seguia: 5 da manhã, em Araraquara, meu tio José me esperava com o Marco. Seguíamos, agora no vagão-restaurante, para Rio Preto, onde naquele sábado haveria jogo da AFE contra o América. Certa vez, no vestiário, intervalo de jogo, Marco e eu vimos umas laranjas, avançamos, o roupeiro advertiu: “Melhor não!”. Mistério? Soube depois. Outra vez em Franca, vimos Tião Macalé colocando um martelo na sunga e entrando em campo. Felizmente, não usou. Em Batatais levamos uma surra de sombrinha da torcida feminina, senhoras de meia-idade. Em Taquaritinga, os carros de Araraquara tinham pneus furados. Não se brincava, era guerra.

Curtos episódios pitorescos de uma vida cheia deles, nas relações entre o Marco e eu. Ele era marido de Valéria, pai de Isadora, Júlia e Carol, esta a chef do Las Chicas, após ter feito carreira com Carla Pernambuco. Caravana para a formatura da Carol no Senac, em Águas de São Pedro, mostrava a união dos Brandão. Quando tomei posse na Brasileira de Letras, lá estavam o Marco e Zezé à frente do clã em peso, os de Araraquara e os de Bauru. Meu último encontro com Marco se deu um mês atrás na casa de Carol. Conversamos por horas, tomando um litro de Campari. Ele morria de rir de uma excursão em navio de cruzeiro, fracassada por causa da pandemia e da revolta de passageiros que saqueavam comida e estocavam nos camarotes. Comédia pura não fosse tragédia. Os Brandão traduziam e traduzem tudo em riso. Última aventura hilariante em vida. Marco se foi. Perdi um irmão. Araraquara lotou o velório, até o prefeito Edinho estava. A amizade levou aquela multidão em sábado de céu azul. Sei, a morte é certeza. Uma coisa me obceca: no instante final sabemos que estamos morrendo? Como fica nossa mente? Apaziguada ou ansiosa? Enigma que me obceca.




Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 01 de maio de 2022.



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