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UMA ELEIÇÃO A BORDO DO TITANIC
Acadêmico: Bolívar Lamounier
Os chefes da tripulação são incapazes de perceber os riscos a que nosso País está sujeito no médio prazo

A analogia com o Titanic é correta, porque nossa embarcação, beirando os 150 milhões de eleitores, é de fato enorme e porque nada faz crer que os nossos sensores políticos sejam eficientes na função de detectar possíveis icebergs à nossa frente.
A verdade é que nosso Titanic já partiu meio avariado quando largou em Portsmouth para a viagem aos Estados Unidos. Os reparos a que foi submetido no estaleiro da sra. Dilma Rousseff não lhe foram nada saudáveis. Seus sensores são um emaranhado institucional estapafúrdio, que funciona mais pela graça de Deus que por uma intrínseca racionalidade política.
As três décadas decorridas desde a promulgação da Constituição de 1988 não deixam dúvida quanto a nos termos metido numa lamentável entressafra de lideranças, causa e consequência da atual inexistência de partidos políticos. Escrevo “inexistência de partidos” porque as agremiações que vêm se registrando no Tribunal Superior Eleitoral distam muito de merecer tal denominação. Os chefes da tripulação, quero dizer, os candidatos que se irão engalfinhar em outubro, carecem da mais simples visão de conjunto, sendo, portanto, incapazes de perceber os riscos a que nosso País está sujeito no médio prazo. Por último, mas não menos importante, fomos atingidos pela pandemia, fenômeno um bilhão de vezes pior que um reles ataque de gafanhotos.
Mas, como diria o doutor Ulysses Guimarães, analisar é preciso. Comecemos, pois, por uma rápida espiada na chamada Terceira Via. Já dá para perceber que daí pode sair qualquer coisa, inclusive nada. Por mais que me esforce, a não ser por Roberto Freire, presidente do Cidadania, não vejo qual seria o líder capaz de agregar o grupo que se abrigou sob esse guarda-chuva e levá-lo, trabalhando em conjunto, a acender nem que fosse uma bruxuleante luzinha entre nossos desencantados eleitores.
Por seus méritos pessoais e pela dimensão do eleitorado paulista, o nome do governador João Doria não pode ser descartado. Fato é, entretanto, que ele, ocupado de manhã à noite com o combate à covid, não parece capaz de sustentar a popularidade que parecia bafejá-lo no início do mandato. Considerando a distância, a julgar pelas pesquisas, que hoje o separa de Lula e Bolsonaro, ele se depara com uma autêntica escolha de Sofia. Terá de escolher entre a reeleição para o governo de São Paulo e a candidatura à Presidência; nesta segunda hipótese, deve estar ciente da possibilidade de um nocaute precoce. Pior ainda, tal opção pode entregar o governo de São Paulo de mão beijada ao PT. Nessa hipótese, o iceberg nem ficará esperando pelo Titanic: virá ao encontro dele.
Sérgio Moro ainda ostenta índices modestos nas pesquisas de intenção de voto, até porque carece de uma base robusta nos maiores colégios eleitorais, São Paulo e Minas Gerais, mas descartá-lo pode ser um equívoco, uma vez que ele pode se apresentar como um outsider, atributo que soe ganhar importância em tempos de desencanto. Acrescente-se que ele vem reunindo uma equipe digna de respeito.
E assim chegamos ao trio percebido como realmente competitivo. Ciro Gomes é, com certeza, o que vai se deparar com mais dificuldades, de um lado por também carecer de base nos principais colégios eleitorais, de outro por ser percebido como um caráter demasiado impetuoso e, em economia, como remanescente de um intervencionismo cediço.
Claro está, pois, que as duas bigas dianteiras serão dirigidas por Jair Bolsonaro e Luís Inácio Lula da Silva. Até onde a vista alcança, Jair Bolsonaro embicou numa trajetória descendente. Os porquês desta afirmação vão desde muitos prováveis crimes de responsabilidade cometidos ao solapar o combate à pandemia até seu caráter agressivo e sua manifesta intenção de manter no País uma polarização política que atinge as raias do absurdo. O fato novo a frisar é que sua biga é puxada por cavalos ariscos. Mesmo no Centrão, sinais de desconforto em relação à sua candidatura surgem dia sim e outro também. Sem esquecer que o principal financiador de sua candidatura em 2018 já pulou para a canoa de Sérgio Moro.
Noves fora, o leitor haverá de convir comigo que, visto a partir de hoje, o cenário lógico é a vitória de Lula, provavelmente no primeiro turno. Lula por oito anos, porque, chegando outra vez ao Planalto, ele não fará por menos. Ele adora aquilo lá. Certo é que muitos cidadãos se perguntarão: qual Lula? Sim, porque Lula não é um, são pelo menos dois. O problema é qual dos dois papéis ele vai afivelar ao rosto, o de Dr. Jekil ou o de Mr. Hide. Num caso, terá de assumir a postura do argentino Menem, tentando levar o PT para o neoliberalismo. No outro, fincará pé no que me parece ser de fato seu eu profundo, o intervencionismo populista, muito mais do agrado de suas hostes arraigadamente intervencionistas. Num caso ou noutro, continuaremos a crer no salvador da pátria, ou cairemos na real de que se trata de fato de um desastre anunciado? Só espíritos muito embotados não percebem que a ponta do iceberg está à vista.



Publicado no jornal O Estado de S.Paulo, 15 de janeiro de 2022.




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