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Acadêmico: Ignácio de Loyola Brandão Centenas se alimentaram daqueles filmes que vinham da pré-história do cinema
Certo dia, início de 1953, tomei o trem das 6 h 10 em Araraquara (ou seria 6h 05? Os horários eram estranhos, mas respeitadíssimos) rumo a São Paulo. Uma viagem inquieta. Eu não passava de um garoto, crítico de cinema há poucos meses, e tinha horário marcado com a Cinemateca Brasileira, onde conversaria com Paulo Emílio Salles Gomes, Rudá de Andrade e Caio Scheiby. Como me atenderiam? O encontro tinha sido marcado por Carlos Vieira que, na época, era o grande batalhador pela implantação de cineclubes Brasil afora. Com seu sotaque português, Vieira era a vanguarda e sustentáculo no cineclubismo brasileiro. Felipe Macedo, em postagem na internet, assim o definiu: “Nos anos em que todos se sentiam cinéfilos, Vieira era como que o centro irradiador do intercâmbio que ligava diversos cineclubes extremamente importantes na vida de diversas cidades do interior paulista”. Eu o conheci em Marília, cujo cineclube foi criado e mantido por décadas por um alfaiate sonhador, Roberto Cimino. Vieira me encaminhou para a Cinemateca e redigiu os estatutos do Clube de Cinema de Araraquara, fundado naquele tempo por Araken Toledo Pires, Lucílio Leite, Laerte Elzio de Barros, Alair Cruz, Wallace Leal, Rivas Autullo, Gustavo Trota e eu, o mais jovem de todos. Da Estação da Luz, fui a pé (não sabia pegar táxi e nem tinha dinheiro para isso) até a Rua Sete de Abril, 230, sede dos Diários Associados, que abrigava a Cinemateca. Começou ali um dos períodos encantadores da minha vida, o de cinéfilo. Na Cinemateca, a tríade que a governava me recebeu como se fosse um cineasta, adorou a fundação de um cineclube, me deu dicas do que fazer, como fazer, e me indicou o filme que deveria marcar a fundação, O Gabinete do Doutor Caligari. Este filme de Roberto Wiene, clássico do expressionismo alemão, fez cem anos em 2020. Rudá me emprestou três folhetos em francês e em inglês dizendo: “Tire daqui a apresentação do filme e me traga de volta”. Em seguida, colocaram em minhas mãos uma lata pesada contendo o rolo do filme em 35 mm, uma preciosidade à qual me agarrei e não soltei até voltar a Araraquara. Durante muito tempo fiz aquela viagem a São Paulo para buscar e devolver filmes preciosos da história do cinema. Eu inspirava confiança ou aqueles três eram doidos de pedra? Assim era a Cinemateca, um lugar encantado e fundamental para quem amava cinema. Fui e voltei várias vezes para buscar outros filmes. O trio Salles Gomes, Andrade e Scheiby lidava com jovens como eu, ou cineastas como Lima Barreto, diretor do clássico O Cangaceiro, Fernando de Barros, Walter Hugo Khoury – em início de carreira –, Adolfo Celi, Abílio Pereira de Almeida, mas também recebia celebridades como Eric von Stroheim, Joan Fontaine, Rhonda Fleming, Edward G. Robinson e Errol Flynn, que chegou bêbado, bêbado, ficou e levou uma bofetada de uma jovem no Festival Internacional de Cinema do Brasil. Felipe Rau/Estadão Felipe Rau/Estadão Imagem Ignácio de Loyola Brandão COLUNISTA Ignácio de Loyola Brandão Conteúdo Exclusivo para Assinante Cultura Cinema A Cinemateca que amamos Centenas se alimentaram daqueles filmes que vinham da pré-história do cinema Ignácio de Loyola Brandão, O Estado de S.Paulo 13 de agosto de 2021 | 03h00 Para Dante Ancona, Nilce Tranjan e Fátima Pacheco Jordão Certo dia, início de 1953, tomei o trem das 6 h 10 em Araraquara (ou seria 6h 05? Os horários eram estranhos, mas respeitadíssimos) rumo a São Paulo. Uma viagem inquieta. Eu não passava de um garoto, crítico de cinema há poucos meses, e tinha horário marcado com a Cinemateca Brasileira, onde conversaria com Paulo Emílio Salles Gomes, Rudá de Andrade e Caio Scheiby. Como me atenderiam? O encontro tinha sido marcado por Carlos Vieira que, na época, era o grande batalhador pela implantação de cineclubes Brasil afora. Com seu sotaque português, Vieira era a vanguarda e sustentáculo no cineclubismo brasileiro. Felipe Macedo, em postagem na internet, assim o definiu: “Nos anos em que todos se sentiam cinéfilos, Vieira era como que o centro irradiador do intercâmbio que ligava diversos cineclubes extremamente importantes na vida de diversas cidades do interior paulista”. Cinemateca Centenas se alimentaram daqueles filmes que vinham da pré-história do cinema Foto: Felipe Rau/Estadão Eu o conheci em Marília, cujo cineclube foi criado e mantido por décadas por um alfaiate sonhador, Roberto Cimino. Vieira me encaminhou para a Cinemateca e redigiu os estatutos do Clube de Cinema de Araraquara, fundado naquele tempo por Araken Toledo Pires, Lucílio Leite, Laerte Elzio de Barros, Alair Cruz, Wallace Leal, Rivas Autullo, Gustavo Trota e eu, o mais jovem de todos. Da Estação da Luz, fui a pé (não sabia pegar táxi e nem tinha dinheiro para isso) até a Rua Sete de Abril, 230, sede dos Diários Associados, que abrigava a Cinemateca. Começou ali um dos períodos encantadores da minha vida, o de cinéfilo. Na Cinemateca, a tríade que a governava me recebeu como se fosse um cineasta, adorou a fundação de um cineclube, me deu dicas do que fazer, como fazer, e me indicou o filme que deveria marcar a fundação, O Gabinete do Doutor Caligari. Este filme de Roberto Wiene, clássico do expressionismo alemão, fez cem anos em 2020. Rudá me emprestou três folhetos em francês e em inglês dizendo: “Tire daqui a apresentação do filme e me traga de volta”. Em seguida, colocaram em minhas mãos uma lata pesada contendo o rolo do filme em 35 mm, uma preciosidade à qual me agarrei e não soltei até voltar a Araraquara. Durante muito tempo fiz aquela viagem a São Paulo para buscar e devolver filmes preciosos da história do cinema. Eu inspirava confiança ou aqueles três eram doidos de pedra? Assim era a Cinemateca, um lugar encantado e fundamental para quem amava cinema. Fui e voltei várias vezes para buscar outros filmes. O trio Salles Gomes, Andrade e Scheiby lidava com jovens como eu, ou cineastas como Lima Barreto, diretor do clássico O Cangaceiro, Fernando de Barros, Walter Hugo Khoury – em início de carreira –, Adolfo Celi, Abílio Pereira de Almeida, mas também recebia celebridades como Eric von Stroheim, Joan Fontaine, Rhonda Fleming, Edward G. Robinson e Errol Flynn, que chegou bêbado, bêbado, ficou e levou uma bofetada de uma jovem no Festival Internacional de Cinema do Brasil. Por décadas, a Cinemateca foi farol e bússola em matéria de cinema. Tudo que era importante estava ali. Parte ainda está, felizmente. Um arquivo dos mais respeitáveis. Um clássico russo? Um diretor indiano? Um filme do início do cinema brasileiro? Ali se moldaram cabeças, ideias, filosofias, ideologias (epa! Que perigo...). Algumas gerações ali se formaram em cinema. Tinham até “uniforme”. Bastava olhar para nós, de calça e de camisa jeans, sapato mocassim, sem meias (eram anos conservadores, anos 1950-60), se sabia, era aficionado da Cinemateca. Não havia sessão especial sem estar lotada. Cinemateca, cines Bijou, Coral, Jussara, Scala, tudo se encadeava e nos alimentava. E a figura do exibidor Dante Ancona Lopez, a quem reverencio. Ninguém esquece a estreia de A Doce Vida, no seu cine Coral, em 1959 ou 1960, provocando um impacto nas cabeças jamais repetido. Centenas e centenas – talvez milhares – se alimentaram daqueles filmes que vinham da pré-história do cinema até a atualidade. Via-se O Nascimento de Uma Nação ou O Encouraçado Potemkin em um dia e, no dia seguinte, Blow-Up, Oito e Meio, Easy Rider ou Laranja Mecânica com suas bolinhas sobre os seios nus das mulheres. Uma Cinemateca é memória, história, ensinamento, é fundamental para a cultura de uma nação. No entanto, a nossa foi abandonada, propositalmente devastada e finalmente incendiada. Assim, cultura, conhecimento, ensino, tudo vem sendo demolido, com a cumplicidade – notem – de alguns artistas, uns de grande público, outros de público nenhum, que nos fazem lembrar o filme Mefisto, baseado no livro de Klaus Mann e que conta a ascensão de Gustaf Gründgens, supremo ator da Alemanha hitlerista. Publicado no jornal O Estado de S.Paulo, 13 de agosto de 2021. voltar |
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