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LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES
Acadêmico: Bolívar Lamounier
Grande intelectual, um pilar de nossa vida universitária, cidadão exemplar

Conheci Leôncio Martins Rodrigues no primeiro trimestre de 1970, logo que me mudei para São Paulo. Lembro-me perfeitamente da situação. Foi num fim de tarde, num encontro promovido por Fernando Henrique Cardoso, que, naquela época, residia numa casa próxima ao Palácio dos Bandeirantes. Leôncio e eu ficamos trocando ideias sobre nossos respectivos interesses, num canto do jardim interno.

Gentil, simpático, falante, discorreu longamente sobre as pesquisas que andava a fazer sobre a formação da classe operária industrial e as mudanças que começavam a se operar no meio do antigo sindicalismo pelego da era getulista. Nesse campo, ele deu um vigoroso impulso à tradição da USP, que remontava aos trabalhos dos professores Aziz Simão e Juarez Rubens Brandão Lopes.

Não tive o privilégio de ser aluno dele. Tendo feito os estudos de graduação em Minas Gerais e a pós-graduação nos Estados Unidos, nutria a aspiração de lecionar numa universidade federal. Mas um fato insólito se interpôs entre meu regresso dos Estados Unidos e essa aspiração. Em abril de 1969, o governo decretou a aposentaria compulsória de certo número de docentes de várias universidades e entidades de pesquisa. Por alguma razão que Deus um dia me explicará, fui incluído entre os “aposentados”, embora não tivesse emprego algum, nem público nem privado. Lastreada no AI-5, essa medida não era suscetível de apreciação judicial. Daí decorreu que apenas pude lecionar por alguns anos na PUC-SP, passando depois a atividades de consultoria. Mas, decididamente, há males que vêm para bem. Na pós-graduação da PUC vim a conhecer minha mais que querida amiga Maria Teresa Sadek, que viria a ser a segunda esposa do Leôncio. Dessa forma, meus laços de amizade com ele se estreitaram muito.

O esdrúxulo decreto a que me referi antes foi a causa de eu estar na casa do Fernando Henrique naquela tarde. Fernando Henrique movimentava-se para criar um instituto (que viria a ser o Cebrap, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), graças ao qual diversos pesquisadores puderam permanecer no Brasil, em vez de serem punidos também com o exílio intelectual.

Por seu prestígio como professor e graças a seus trabalhos sobre o sindicalismo, Leôncio rapidamente se tornaria conhecido em todo o Brasil. Havia tempos que Leôncio abandonara o esquerdismo de sua adolescência para se dedicar com crescente afinco a pesquisas sérias, sobre temas relevantes. Um aspecto a destacar é que nos trabalhos dele o embasamento empírico se associava a uma fundamentação teórica que nada tinha que ver com as especulações nefelibatas que grassavam na USP, mercê da influência predominantemente francesa em nossa principal universidade.

Nessa época, à medida que essa concepção pragmática ganhava corpo nos Estados Unidos, na França a maioria dos cientistas sociais ainda ciganeava na vaporosa fragilidade de vários

esquerdismos. Na trajetória do Leôncio, os estudos sobre o sindicalismo culminaram numa obra de peso, O Destino do Sindicalismo (Edusp, 1999), que já estaria publicada em outros países se não estivéssemos condenados a fazer nossas carreiras nesse pobre grotão intelectual.

Finda aquela primeira fase, centrada no sindicalismo, Leôncio voltou suas atenções para duas outras direções igualmente relevantes. Por um lado, resolveu conhecer a fundo a classe política brasileira. Conhecê-la não para elogiá-la ou sepultá-la, mas para mostrar importantes mudanças que nela se operavam, com o declínio dos bacharéis desvinculados de interesses grupais ou públicos relevantes e a ascensão de sindicalistas e outros profissionais mais organicamente situados na sociedade. É certo que esse novo veio trouxe em seu bojo o famigerado corporativismo, ou seja, grupos preocupados tão somente em incrustar seus estreitos interesses no casco da nau do Estado patrimonialista. Mas Leôncio, como antecipei, não se propôs a xingar ou elogiar tais grupos: quis “apenas” mostrar que esse é o material de que dispomos para construir nossa democracia. É pegar ou largar.

O outro lado da bifurcação, e a este Leôncio se dedicou com extraordinária paixão, foi o conhecimento dos regimes totalitários. Salvo melhor juízo, não creio que outro cientista político brasileiro se tenha aprofundado nessa área tanto quanto ele. Estudou vorazmente o stalinismo e o Estado soviético, assim como o hitlerismo e o nazi-fascismo. Se até hoje nossas universidades tratam esses magnos temas do século 20 em tom de aquarela, cumpre-nos dizê-lo sem meias- palavras: ninguém como Leôncio combateu o totalitarismo europeu e o ranço dele que ainda permeia nossa cultura. E reparem: Leôncio formou-se nessa área como um autêntico autodidata, caçando bons livros a laço, numa época muito anterior à internet e ao Google.

Eis por que, caros leitores, Leôncio Martins Rodrigues ficará em nossa memória como um amigo inesquecível, um grande intelectual, um pilar de nossa vida universitária e um cidadão exemplar.

Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 08 de maio de 2021.



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