|
||||
| ||||
Acadêmico: Júlio Medaglia "Se formos analisar a evolução social do Brasil e dos Estados Unidos, vamos encontrar inumeras semelhanças históricas e até cronologicamente paralelas. Na área da chamada "música erudita", porém, nosso país possui um século e meio a mais de intensa atividade criativa no setor que a grande nação do norte."
Se formos analisar a evolução social do Brasil e dos Estados Unidos, vamos encontrar inumeras semelhanças históricas e até cronologicamente paralelas. Na área da chamada "música erudita", porém, nosso país possui um século e meio a mais de intensa atividade criativa no setor que a grande nação do norte. Os manuscritos que por milagre chegaram a nossos dias - da região de Mogi das Cruzes em São Paulo, de Recife e Salvador - datam da primeira metade do século XVIII, época em que Bach e Händel estavam em plena atividade. E, para surpresa nossa, as obras e trabalhos teóricos de autoria desses compositores tupiniquins, tinham características da melhor escrita barroca, estilo da época em toda a Europa. Em Minas, na segunda metade do século XVIII, impulsionado pela riqueza do chamado gold rush aconteceu um surto de criação musival da melhor qualidade que atingiu enormes proporções. Trabalhando com o Dr. Curt Lange, musicólogo alemão que descobriu esse acervo ocultado por quase dois séculos, tive oportunidade de ver um rol de músicos de uma confraria de homens de cor da região de Diamantina com mais de 2.000 músicos profissionais registradsos - eram compositores, instrumentistas, cantores, maestros, copistas, construtores de instrumentos etc. O excepcional nesse fenômeno, assim como os anteriores, é que esses profissionais da música não eram portugueses nem tinham qualquer parentesco com colonizadores. Eram negros, escravos, ex-escravos e mulatos nascidos aqui mesmo. Todos de excelente formação cultural não apenas em música. Alg uns eram latinistas que manipulavam textos sacros com grande soberania. Embora a maioria de suas atividades profissionais fosse de caráter religioso, já que era a igreja que encomendava obras para suas solenidades, eles praticavam também outros gêneros musicais compostos na Europa à época. Encontramos certa vez uma parte de segundo violino de um quarteto de cordas de Haydn copiado por um membro de uma confraria igualmednte de negros e mulatos de nome Gomes, repleta de pingos de vela. A ponta direita inferior da partitura estava arredondada e quase transparente, tantas vezes aquele quarteto teria sido executado. E o curioso é que, ao lado do nome do copista, havia a data da cópia: 1795. Ou seja. 14 anos antes de Hadyn morrer em Viena, seus quartetos eram executados aqui no sertão sulamericano. Mas essa "negritude" dos autores da música erudita brasileira anterior ao século XX não ficava só nesse período. No início do século XIX havia também um "Haydn nacional", o filho de ex-escravos padre José Maurício Nunes Garcia, cujas obras em nada deixavam a dever ao que de melhor se compunha na clássica Viena da época. Em meados do século XIX surgia Carlos Gomes, filho do mulato Manoel José Gomes que, nascendo no interior de São Paulo, foi perturbar o curso da ópera italiana apresentada no templo máximo do gênero no mundo, o Alla Scala de Milão. Na década de 1870 /80, ele chegou a competir de igual para igual com Verdi, o maior compositor italiano de todos os tempos. Mais adiante vimos o mulato Franciso Braga, oriundo de uma escola de crianças abandonadas da Zona Norte do Rio e ex-clarinetista de uma bandinha do interior fazer furor no Conservatório de Paris como brilhante aluno de Massenet e depois como membro da comunidade wagneriana de Dresden, cidade onde viveu, já que era ferrenho adepto da estética musical do grande operista alemão. O curioso nessa história toda é o fato de grandes nomes da mais sofisticada música brasileira de padrões europeus serem afro-descendentes e não ter sido proibido a eles e a seus pares o cultivo e a prática dos antigos hábitos culturais e religiosos de suas origens. Tanto é que, apesar do "embranquecimento" e "europeização" posterior de boa parte da população brasileira, o enorme e excitante arcenal rítmico de origem africana permaneceu vivo no país até os dias de hoje, inclusive na música popular. Não só permaneceu como se multiplicou em dezenas de ritmos de sul a norte com suas pr& oacute;prias características e nomes: samba, frevo, maracatu, baião, boi-bumbá, carimbó, moda de viola, fandango, capoeira, maxixe, axé, vanerão, forró, bossa nova, xaxado, xote, coco, lundu e outros. Algo bem diferente do que ocorreu nos Estados Unidos onde o negro era obrigado a plantar algodão e esquecer suas origens. Como se sabe, de seus resmungos e lamentos surgiu o blues, base do surgimento do jazz, símbolo musical daquele país no século XX. Alias, o próprio Duke Ellington, um dos "papas" do moderno jazz, chegou a declarar: não tenho nada a ver com a África. Eu faço a música do negro americano. No início do século XX, porém, ocorreu algo curioso em nosso país, uma verdadeira inversão de valores e práticas culturais. Surgiu uma nova geração de compositores eruditos do mais alto nível, todos euro-descendantes: Villa-Lobos, Guarnieri, Santoro, Mignone, Guerra Peixe e outros. Todos brancos, mas, a música que faziam era 100 baseada em vigorosa e provocadora infra-estrutura rítmica de origem africana. Ou seja. Antes, negros escreviam "música branca" e, no século XX, brancos passaram a escrever "música negra". Mas essa negritude em nossa cultura não acontecia apenas na área musical. Os arquitetos, escultores e pintores do barroco mineiro e baiano eram igualmente negros e mulatos brasileiros, incluindo-se aí Aleijadinho, considerado por Blaise Cendrars - um grande intelectual francês que viveu no Brasil - um dos maiores escultores da história. Não tinham olhos azuis também os nossos mais expressivos intelectuais, poetas e escritores como Machado de Assis, Castro Alves, Lima Barreto, José do Patrocínio, Luis Gama, Cruz e Souza, Teodoro Sampaio, André Rebouças e outros. E até mesmo o príncipe dos arquitetos brasileiros, Ramos de Azevedo, co nstrutor do Teatro Municipal de São Paulo e de inúmeros edifícios clássicos da cidade, tinha uma mãe mulata. Como se vê, escravos negros, analfabetos, "incultos' que falavam dialetos primitivos e incompreencíveis vindos dos cafundós da África, traziam lá no fundo da alma - sem que seus mercadores soubessem - valores sensíveis que, com o tempo, vieram a fazer parte e contribuir com nossa mais sofisticada e alta cultura. voltar |
||||
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562. |