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"OS DIÁRIOS DE CELSO FURTADO" - SOBRE CELSO FURTADO E SEUS CEM ANOS,
Acadêmico: Ignácio de Loyola Brandão
A cultura brasileira agradece a você Rosa Freire d’Aguiar pelos diários de Celso Furtado.

É a você, prezada Rosa Freire d’Aguiar que me dirijo neste momento em que se comemora o centenário do nascimento de Celso Furtado, com quem você conviveu durante 26 anos. Primeiro, quero dizer que devo a você um abraço de agradecimento. Em outubro do ano passado, ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras, soube pelo acadêmico Antônio Torres que você estava na plateia. Procurei-a com os olhos, mas lembrei-me que somente te conhecia por fotos. Depois nos perdemos. Um dia, te darei o abraço pessoalmente.
Como falar de Celso sem passar por você que o acompanhou até o último minuto de vida em 2004? Não sou economista nem cientista social ou político, fui eleito para a cadeira de seu marido por ser ficcionista. Portanto é nesta condição que converso contigo. Você navega nas mesmas águas que eu. Primeiro como a jornalista que eu lia na Revista da Semana, que nem sei como chegava a Araraquara, onde nasci. Mas li seus textos no Jornal da Republica e na Isto É que vi nascer aqui em São Paulo. E também na Manchete que nos chegava aos sábados. Segundo, nas traduções que fez de grandes autores, desde o polêmico Celine, autor de De Castelo em Castelo e Viagem Ao Fim da Noite, que fizeram minha cabeça e me levaram à linguagem e estrutura do meu romance Zero - sem esquecer nomes como Ernesto Sabato, Stendhal, Balzac. Não posso esquecer Simenon, Maigret é belo personagem.
O que vem me encantando em você é a determinação com que encarou uma tarefa fundamental para a cultura, a preservação da memória de um homem como Celso. Permita-me a intimidade de nomeá-lo apenas pelo nome. Leia isto como uma carta, na designação antiga, ou como um e-mail na linguagem digital. Apenas não usarei as abreviações exóticas, que dizem servem para facilitar leitura. Vivemos uma época da facilitação em tudo.
Lembrei-me de uma frase dele, Celso, no discurso de posse: “O fundador desta Cadeira número 11 foi um antepassado meu, Lúcio Furtado de Mendonça, de quem possivelmente herdei os pendores memorialísticos, o gosto malsucedido pela ficção literária e uma irreprimível sensibilidade social. ” Pendores memorialísticos. É o que você vem fazendo ao escavar toda a obra dele, seus guardados, papeis, anotações, cartas, originais publicados ou não. Você não está sendo memorialista também? Nada mais excitante que as descobertas que são feitas ao fuçar baús, gavetas e pastas perdidas ou algum papel esquecido entre as páginas de um livro.
Ao olhar a vasta obra de Celso Furtado não se poderia colocá-la inteira sob o título Memórias da Economia Brasileira, indicada como obra seminal para quem quer conhecer, estudar o assunto, conhecer a evolução do Brasil?
Neste país, quando alguém de nomeada morre, fica esquecido e corre o perigo de assim permanecer, transformado em sujeito oculto. Jamais esqueço o trabalho árduo de Julieta de Godoy Ladeira, viúva de Osman Lins que até morrer batalhou para manter viva a obra do marido, esquecendo a sua própria. Neste Brasil em lugar de manter a memória, nós a destruímos em museus que se incendeiam, em bibliotecas tomadas por traças e cupins, volumes se desmanchando, documentos se desfazendo. Eventualmente surgem restauradores, E quanto se perde da pessoa neste tempo procurando refazer?
Existe também o processo de apagamento semelhante aquele instaurado no sistema comunista russo, quando pessoas eram expurgadas das fotos e dos documentos. Você mesmo, Rosa, comentou duas situações que simbolizam este destruir memória, quando citou a mudança do nome do Centro Acadêmico da Universidade de Santa Catarina, que homenageava Celso Furtado, e certo dia amanheceu como Centro Acadêmico Roberto Campos, que foi, na verdade, inimigo, ou digamos opositor de Celso. E ainda termoelétricas que tinham recebido os nomes de Leonel Brizola, Luis Carlos Prestes, Celso Furtado e outros mais que passaram a ter o nome das regiões onde se encontram. As coisas começam lentamente. Não teve um sujeito que partiu ao meio a placa da Rua Marielle?
Você entenderá que não vou falar do Celso Furtado economista. Tudo tem sido dito. Desde a definição de Evandro Nobrega: “Furtado está entre os grandes economistas do mundo que estudaram, no pós-guerra, e de forma pioneira, os problemas do desenvolvimento econômico relacionando-os com problemas históricos como Gunnar Myrdal, Raul Prebisch, Ragnar Nurse, Hans Singer e outros, até Maria da Conceição Tavares dizer: “Ele foi um dos fundadores do pensamento econômico contemporâneo, um grande servidor público, pessoa de integridade à toda prova e, mais que tudo, um lutador contínuo, que pode ser chamado de corredor de longo fôlego.” E finaliza: “Furtado é muito mais do que um economista, é um pensador brasileiro. ” Mas o que muito me tocou, ecoou fundo, no prefácio que Conceição Tavares escreveu para o curto livro da edUerj, 2002, com uma entrevista de Aspásia Camargo e Maria Andrea Loyola é a citação do mestre, como ela diz. “Nunca estivemos tão longe do que sonhamos. ” Penso muito nisso.
Sim, sei que Celso parece ter esgotado o assunto em Obra Autobiográfica, mas quem sabe você pudesse mostrar o retrato do homem na sua intimidade na criação, nos métodos, nos atos, nos caprichos, manias, pequenas alegrias, no cotidiano, nas angústias - e teve muitas, porque quem viveu tanto tempo em exilio, devia ter que se superar a cada momento. Como era esse homem? E as suas frustrações? Como encarava tantos projetos rejeitados, perdidos, colocados de lado? O que o irritava? Amava? Recentemente você desvendou um dia na vida dele: “Estudava e escrevia, escrevia, escrevia, e lia, lia. ”
Não é cobrança. É insinuação, sugestão, talvez um pedido, de quem gosta de biografias, porque elas nos ensinam. É estimulante conhecer a vida dos grandes homens.
Aos 14 anos, Celso Furtado mergulhava em História, sua matéria favorita. Você revelou recentemente em um canal de internet, quando do lançamento dos Diários de seu marido, por você organizados: aos 18 anos ele registrou que sua ambição era escrever uma história da civilização. Fiquei pasmo. Porque esse projeto se transformou depois em uma história da civilização brasileira, que resultou no final na Formação Econômica do Brasil. Naquele momento pensei: como se formam as grandes mentes? Como elas se desenvolvem? Em que condições? Parece que independentes do meio em que crescem. Aquele menino nasceu em Pombal, na Paraíba, um dos quatro municípios mais antigos do estado. Se hoje o IDHM da cidade está em 0,634 o que é considerado de médio desenvolvimento, imaginemos o que devia ser em 1920 quando Furtado nasceu.
Junto com a História residia a paixão pela literatura, ele leu tudo que era possível. Daí você, Rosa, revelar que os Diários dele possuem alta qualidade literária e preocupação com estilo. Não se trata de um mero caderno de anotações, registros. Ele dialoga com ele mesmo o tempo inteiro. O próprio Celso encarregou-se de mostrar sua raiz, a descoberta de seus caminhos: “O Nordeste brasileiro, onde nasci e vivi até aos vinte anos, constitui o mais antigo núcleo de povoamento do Brasil. Após uma fase de prosperidade nos séculos XVI e XVII, a região conhece um longo declínio, o que explica que as estruturas sociais aí sejam mais rígidas que em qualquer outra área do país. A descoberta do ouro e dos diamantes nas Minas Gerais lhe retirou a preeminência econômica, e a transferência da capital da Bahia para o Rio de Janeiro significou a perda da preeminência política. Na minha infância, no sertão, a política absorvia parte importante da vida dos chefes de grandes famílias: consistia essencialmente em rivalidades e conflitos, com apelo corrente à violência, entre famílias e grupos de famílias locais. As incursões de cangaceiros eram frequentes. Histórias de violências povoaram a minha infância. Referiam-se mais a atos de arbitrariedade, prepotência e crueldade que a gestos de heroísmo à western.
Nesse mundo marcado pela incerteza e pela brutalidade, a forma mais corrente de afirmação consistia em escapar para o sobrenatural. Os grandes milagreiros existiam como legenda, mas também como presença. Não longe de onde morávamos, reinava o Padre Cícero. Quando eu tinha oito anos, surgiu um chefe político no estado, que convulsionou profundamente a vida de toda a comunidade: João Pessoa que, no espírito da população, fundia as imagens do chefe e do milagreiro. Eu ouvia crédulo, das domésticas de minha casa, as histórias desse homem que se disfarçava "numa pessoa qualquer" para praticar o bem nos bairros mais humildes. O assassínio brutal desse homem (exatamente no dia em que eu completava os meus dez anos) provocou uma tal angústia coletiva que ainda hoje não posso me recordar sem me emocionar. ”
Realidade e ficção. Imagino que Furtado poderia, a partir disto tornar-se um ficcionista de categoria, à altura de um Gabriel Garcia Marquez que criou seu Macondo a partir do imaginário de suas raízes colombianas. Digno de Onetti ou de um Ariano Suassuna e seu mundo particular. No entanto ele se desligou do realismo fantástico para se tornar, segundo Maria da Conceição Tavares, “um dos fundadores do pensamento econômico contemporâneo, um grande servidor público, uma pessoa de integridade à toda prova e, mais que tudo um lutador continuo, que pode ser chamado de corredor de longo curso. ”
Celso continua: “Esses dados quiçá possam explicar a formação em meu espírito de certas ideias-força que considero como invariantes, das quais dificilmente poderia libertar-me sem correr o risco de desestruturar minha própria personalidade. A primeira é a de que a arbitrariedade e a violência tendem a dominar no mundo dos homens. A segunda é a de que a luta contra esse estado de coisas exige algo mais que simples esquemas racionais. A terceira é a de que essa luta é como um rio que passa: traz sempre águas novas, ninguém a ganha propriamente e nenhuma derrota é definitiva. (...) Das influências intelectuais que sobre mim se exerceram desde o ginásio, identifico três. Em primeiro lugar, a positivista, com a primazia da razão, a ideia de que todo conhecimento em sua forma superior se apresenta como conhecimento científico. Meu ateísmo, que cristalizara desde os 13 anos, encontrou aí uma fonte de justificação e um motivo de orgulho. A segunda linha de influência vem de Marx, como subproduto de meu interesse pela História. Foi lendo a História do socialismo e das lutas sociais, de Max Beer, que me dei conta pela primeira vez de que a busca de um sentido para a história era uma atividade intelectual perfeitamente válida. A terceira linha de influência é a da sociologia norte-americana, em particular da teoria antropológica da cultura, com a qual tomei contato pela primeira vez, aos 17 anos, lendo Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. (...).
O desejo de vincular a atividade intelectual criadora à história será o ponto de partida de meu interesse pelas ciências sociais. Fixou-se no meu espírito a ideia de que o homem pode atuar racionalmente sobre a História. Cheguei ao estudo da economia por dois caminhos distintos: a história e a organização. Os dois enfoques levavam a uma visão global, a macroeconômica. Dessa forma, a economia não chegaria a ser para mim mais que um instrumental. Nunca pude compreender a existência de um problema estritamente econômico. (...) “
O que Celso diz aqui está nas imagens de Vidas Secas, livro de Graciliano Ramos, filme de Nelson Pereira dos Santos. Ou nos filmes de Glauber Rocha. Ou no recente Bacurau. Uma coisa leva a outra, a outra, a outra, até retornar ao ponto de partida.

Portanto, veja se aceita um jogo, minha prezada Rosa. Trabalhar aqui com a fantasia, com a literatura que ele namorou, mas nunca “exerceu”, mas que transparece nos Diários Intermitentes, obra póstuma.
Imaginemos o mais improvável. Mega-ficção, absurdo dos absurdos. O absurdo não existe como empecilho e sim como força motivadora para a arte. Ninguém demonstrou isso mais do que Kafka. Rosa Freire d’Aguiar, você está acostumada com a literatura. Sabe de seus meandros, labirintos, metáforas, fabulários, o surreal, o disparate, o distópico, a farsa, o visionário, a fantasia que corre por suas veias. Para quê? Para mostrar o real. O que eram as fábulas de Esopo e La Fontaine? Nelas podemos tudo. Se Kafka se mantivesse no plano do real não teria escrito uma obra prima que mudou o rumo da literatura um século atrás, A Metamorfose. Ele fez seu personagem acordar transformado em um repulsivo inseto ou em um inseto monstruoso ou em uma barata, dependendo das traduções ao longo do tempo. Absurdo? Porém real. Também Kafka poderia ter invertido; naquela manhã um inseto repulsivo acordou transformado em presidente de um país. Mais real ainda.
Está ainda na mente de todos o horror chamado Vídeo da Reunião de 22 de abril. Aquela Sexta-feira que não foi 13, mas que a superou em horror político, lodaçal. Suponhamos, por mais inverossímil que seja, que Celso Furtado fosse ministro e estivesse presente à reunião. O que ele faria? Como se sentiria? Como reagiria? Teria um ataque cardíaco ali mesmo? Ou como nordestino de boa cepa, forte e sofrido, seria tomado por um surto e destruiria tudo? Se estas palavras chegarem ao futuro, espero que os leitores ou ouvintes corram aos livros de história para saber o que houve. Agora a memória está registrada em imagens. As cenas são patéticas, cômicas, dramáticas.
Suponhamos que ele dissesse naquele pandemônio algo o que disse na sua posse. Celso anteviu o que hoje é realidade, a Covid 19, até então longínqua utopia: “Que as civilizações são mortais é uma advertência que nos fez Paul Valéry desde albores do século que se despede. Mas, que a humanidade como um todo também seja mortal é algo que coube à nossa geração descobrir. Assegurar a sobrevivência da espécie será, no futuro, um objetivo maior da cooperação internacional. Temos, portanto, de reconhecer que a paz e a cooperação entre os povos tornaram-se uma condição de sobrevivência. “ Não está o mundo inteiro se ocupando com a sobrevivência da espécie, exceção feita ao governo brasileiro? Como o presidente atual responderia? O que diria além de um palavrão? O inexistente, ainda que existente, ministro da saúde gritaria: “Cloroquina.”
O ministro da educação daria um aparte:
“Esse tal Paulo Valério deve ser um vagabundo.” Paulo, ele diria, não Paul. Brinco com assuntos sérios? Sou irreverente? Diga-me Rosa? Como tratar esses atos que vão na contramão de tudo, mas tudo o que pensou Celso Furtado?
Nesse mesmo discurso ele teve outro belo momento: “Estou convencido de que é cada vez mais modesto o papel que cabe a nós, intelectuais, nessa “tecnópolis ” em que os homens ingressaram de forma irreversível. O homem moderno fez um pacto faustiano com a razão técnica e seu destino parece cada vez mais determinado por forças que escapam a seu controle. O custo ecológico de nosso compulsivo avanço tecnológico se manifesta de forma alarmante. A engenharia genética está criando tanta incerteza sobre o futuro do gênero humano quanto aquela que a acumulação de artefatos termonucleares já havia engendrado. “
Ao ouvir a expressão, o custo ecológico de nosso compulsivo avanço tecnológico se manifesta de maneira alarmante, o Ministro do Meio Ambiente daria um pulo, aos berros: “E o agronegócio? Morrerá de fome? Antes faremos a boiada passar. ” A ironia, a sátira, o sarcasmo é o que nos resta como armas neste momento, querida (agora mais intimidade) Rosa Freire d’Aguiar. E pergunto: o que Celso acharia disso, além de uma tristeza?
O que nosso economista diria ao ouvir aquela patuleia, como define Elio Gaspari, afirmar que neste país não existe desigualdade, nem indígenas, tudo é povo brasileiro, os brancos, os negros, os mulatos, os amarelos, os loiros, os morenos, tudo é um povo só, o povo brasileiro. Povo brasileiro? Para eles, todos são iguais. Nem sabem dos invisíveis. Em 1959, Celso escreveu: “Observando as vicissitudes e disparidades do desenvolvimento na América espanhola as razões pelas quais uns países se desenvolviam e outros não é que melhor percebi a natureza dos desequilíbrios regionais que hoje caracterizam esse subcontinente brasileiro. Imaginara-o, até então, um sistema único, onde a conveniência de cada uma das partes fosse a conveniência do todo, e a do todo o interesse de cada uma dessas mesmas partes. Pois, meus senhores, à medida que fui percebendo as causas profundas que explicam o sentido das crescentes desigualdades regionais, passei a preocupar-me seriamente com o próprio destino da nacionalidade brasileira, com o nosso próprio destino de povo.”(A Operação Nordeste, Rio de janeiro, ISEB, 1959)
Pensem na cara do presidente e daqueles ministros todos ouvindo isso. Nada entenderiam, porque o máximo que leram foi a cartilha Caminho Suave, ou Brasileirinho, de Ofélia Narbal Fontes. E não entenderam, acharam profundo. Muito natural que ao final daquela sessão alucinada, Celso diria: “Eu me pergunto, quem manda nesse pais? Porque se conserva essas taxas de juros de fantasia, que sangram esse país? Que deixa margens tão pequenas para o crescimento? É difícil dirigir um país como esse. E, apesar de tudo, um país tão alegre, do Carnaval e do Futebol”. Esta foi uma das primeiras afirmativas dele no documentário O Longo Amanhecer, realizado por José Mariani, cinco meses antes de sua morte. Ali ele mostra a voz enfraquecida, mas a mente lúcida clara. A pergunta permanece: quem manda neste país, hoje?
Rosa, que beleza estes Diários Intermitentes, Rosa. Leitura para tempos de confinamento. Prazer. Aprender, usufruir. Acho que você pode adiar por um tempo a biografia que pedi. Aqui acompanhamos a viagem deste homem ao longo da vida. Viagem ao fundo da alma em muitos instantes. Quantos de nós ao lermos Celso, teremos a impressão de que estamos lendo os nossos próprios diários? Será que ainda se escrevem diários? Aos 18 anos, Celso escreveu: “O homem que vive só é sempre um erótico, um sensual. Eu vivia isolado. Tinha um mundo só para mim. É logico que eu procurasse povoá-lo com a minha fantasia. E era cercado por essa fantasia que eu vivia. Os fatos, os mais tolos de minha vida, eu transpunha para meu mundo de fantasia e com eles voava para a cidade de Platão... Há tédio na cidade de Platão, há tristeza no mundo que criei. Eu hoje choro essa tristeza sublime.”
Aos dezessete anos ele assistiu ao filme Rêve d’Amour, baseado na música de Franz Liszt. Viu as duas sessões, ficou sublimado. “Amo, neste momento, a música mais do que nunca.”
Ah! As promessas que fazemos na juventude e jamais cumprimos, por sorte ou azar. Em janeiro de 1938, em João Pessoa, Celso escreveu: “Não desejo que este diário pareça abusivo e enfadonho, pelo contrário, nele quero encontrar um amigo seguro um abrigo certo. Prometo a mim próprio protegê-lo até a última página de qualquer profanação. Sendo necessário queimá-lo-ei, mas não permitirei que alguém roube o valor imutável que reside em sua essência ser amigo e unicamente meu.”
E o que dizer do fatalismo, do nihilismo que marcaria minha geração em meados dos anos 1950. Já em Recife, em 1938, Celso escreveu: “Cada vez eu me convenço mais da tolice de viver. Eu estou aqui. Não tenho preocupações. Nenhuma paixão me tortura o espírito. E eu sinto a inutilidade da vida. Nós só nos identificamos com o mundo por intermédio da dor. A felicidade que os homens idealizaram é apenas o ócio. Tudo diz que sou feliz neste momento. O ócio fere-me a alma.”
Um ano depois, em 1939: “A vida é muito curta para se ler cartas compridas.” Impaciência?
E o humor. Maio de 1940, já no Rio de janeiro: “Um monarca oriental mandou a Antíoco uma embaixada para pedir-lhe entre outras coisas um sofista. O monarca da Síria contestou que os gregos não costumavam fazer comércio de filósofos.”
Abril de 1944: “É terrível a minha indisciplina mental.”
Maio de 1944: “Hoje estive mais de uma vez me observando que eu reajo em face de muita coisa na vida antes como romancista (pois eu me considero para mim mesmo, como tal) que como homem. Surpreendo-me analisando quando seria natural que estivesse apenas vivendo. Pode ser um bom ou um mau sintoma...”
Ontem e hoje tudo igual. Dezembro de 1945: “ ...A vida no Rio continua complicadíssima.: uma moradia é tão difícil de encontrar que alguns têm se conformado em aceitá-la no cemitério. Há uma angustiante falta d’água. Os transportes continuam deficientes: esperei 45 minutos, hoje, numa fila de ônibus.”
Ou hoje igual a ontem. Janeiro de 1946: “...O presente governo de magistrados, seja o federal, seja o estadual, tem sido o mais ridículo desgoverno, do ponto de vista técnico, de que tenho memória. Que lição de politicagem e de ignorância administrativa estão nos dano esses juristas.” Sempre atualidade.
Tudo se repete, repete, igual sempre. Julho de 1946: “Nenhum ponto básico da organização nacional é ferido: continua-se com a esdrúxula separação de poderes, não se aborda a reforma agrária, não se fere a ordem econômica, entra-se pela lei civil na questão do divórcio, atribui-se orçamento ao ministro da Fazenda ... Eu sei que há homens cultos na Assembleia. Mas estão desinteressados ou divorciados da realidade brasileira. Discute-se e brigasse em torno de mesquinhos interesses de paróquias eleitorais...É de desanimar. “
Ou seja, Rosa, ontem como hoje. Os textos vão num crescendo de maturidade e aprendizado espantosos. A viagem a bordo do General Meigs é uma longa crônica, uma noveleta cheia de lirismo. Celso se sabia escritor, ele queria ser escritor, fica evidente. Já na Itália, a poesia surge subitamente em março de 1945: “A primeira vez que pisei numa poça d’água e ela se fragmentou aos meus pés. Fiquei estupefato e baixei-me para encher as mãos de gelo; quando vi a neve, arregalei bem os olhos para certificar-me, tirei o chapéu para senti-la melhor, mas foi como se encontrasse algo que já conhecia.”
Súbito, uma emoção. Em fevereiro de 1947, Celso Furtado está em Paris para um estágio do seu trabalho no Departamento do Serviço Público do Rio de Janeiro. Hospeda-se no Hotel Excelsior, na Rue Cujas, 20 Quartier Latin, a poucos metros da Sorbonne. Sessenta anos depois eu estive hospedado no Hotel Trois Colléges, na Rua Cujas, 20, ou seja, vizinho ao Excelsior que ainda existe. Fiquei emocionado ao saber que Gabriel Garcia Marquez tinha morado em meu hotel em um período da vida de dureza. Havia uma placa de bronze na porta do hotel. Pensar que ao lado tinha vivido Celso Furtado, que merece placa igual. Se a gente tivesse um ministro da Cultura... Nesse período de estudos, Celso anotou que “os livros alemães e americanos são pouco divulgados; obras verdadeiramente fundamentais não são traduzidas e ficam inteiramente ignoradas no meio estudantil. Quase todo trabalho de pesquisa é feito dentro do método histórico e fundado numa imensa erudição. Falta o ar novo da pesquisa sociológica. Nas ciências sociais navega-se mais pelas águas do passado que pelas do presente.”
Nós brasileiros nos divertimos ao saber que ele certo dia comprou um rádio Phillips de quatro válvulas. As novas gerações não entenderão este quatro válvulas. Sabem para quê? Para ouvir a Hora do Brasil que, com todas as dificuldades, ouvia-se por lá. Nós por aqui odiando, ele por lá se encantado. Ligação com a raiz.
Rose, cara amiga. São amostras, highlights, como se diz hoje, de um livro intenso. Fascinante, gostoso de ler, tem humor pelo meio, lições de vida, de comportamento, filosofia, sociologia, economia, vida, reflexões sobre política, desenvolvimento. Momentos de perplexidade, breves anotações poéticas. Os bastidores de momentos políticos significativos com JK, Tancredo Neves, Sarney e tantos outros. Furtado não olhou para a história, ele foi parte dela. E anotações que são breves crônicas saborosas. Como a da estada em San José da Costa Rica com as manobras de abordagem de mulheres de maus costumes. Ou a do vagabundo que numa noite deserta caminhava seguido por pequena matilha de cães que latiam alegremente. O final é pungente.
Aqui está toda uma vida, personagens ilustres do mundo inteiro, da política, das artes, dos governos, bem como anônimos. Ele conviveu e trabalhou com algumas das mais importantes personalidades do mundo e do Brasil. Muitos levam disparos de tiro seco, contundente. Sempre predomina uma observação ora cáustica, ora carinhosa, esperançosa, desanimada. Tudo sempre com muita lucidez. O olhar de Celso Furtado vai ao fundo. Tudo de repente parece uma grande ficção. Opiniões contundentes sobre grandes figuras de nossa república. Em março de 1986, você nos conta, Rosa, que Celso assumiu o Ministério da Cultura no governo Sarney, por indicação de Fernanda Montenegro que encabeçou um manifesto assinado por 176 artistas e intelectuais. A atuação dele foi colocar em pé uma coisa que não existia, “parecia uma colcha de retalhos de repartições herdadas dos governos militares.” De qualquer modo, a grande realização dele foi a implementação da primeira legislação brasileira de incentivos fiscais à Cultura, a chamada Lei Sarney. Legislação que se esfacelou no atual governo, que demoliu inclusive o ministério da Cultura.
A última anotação destes diários, de 2002 diz respeito a um assunto fundamental. Reproduzo duas frases dele, o suficiente para bons entendedores: “A luta pela conquista da soberania é a saga nacional de cada povo, o qual muitas vezes se confunde com a construção de um sistema cultural com valores específicos. Por outro lado, a desmontagem de um sistema nacional pode assumir várias formas que vão da dominação militar até a perda da identidade cultural.”
Nada mais atual, não acha minha cara Rosa Freire d’Aguiar? A cultura brasileira te agradece.

Os trechos citados foram extraídos da primeira edição dos Diários Intermitentes, 1937-2002, publicada pela Companhia das Letras, organização, apresentação e notas de Rosa Freire d’Aguiar





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