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A SANTA TERRA: NATUREZA, CIÊNCIA E RELIGIÃO
Acadêmico: Jorge Caldeira
"Mas como nem só de escolhas políticas se faz a vida, convido para uma jornada do espírito a meu modo simplório de jornalista de profissão, treinado para o prosaico, o fatual, a comunicação direta e simples."

Sei que o tempo é de escolhas políticas importantes para todos nós. Mas como nem só de escolhas políticas se faz a vida, convido para uma jornada do espírito a meu modo simplório de jornalista de profissão, treinado para o prosaico, o fatual, a comunicação direta e simples. Nunca consigo fugir dessa cartilha em meus escritos ainda que seja para narrar coisas muito acima de minha capacidade intelectual. Aconteceu neste caso, com o maravilhoso se mostrando bem ao meu lado.

Numa quinta-feira dessas a sessão da Academia Paulista de Letras corria tão normalmente como pode correr a prosa civilizada entre pessoas diversas. No ambiente atual apenas este fato já quer dizer muito. Mas este dia foi ainda mais especial.

Lá pelas tantas o confrade José Goldemberg tomou a palavra para comentar uma escolha de prêmio Nobel, dado a cientistas que conseguiram mostrar como o código fixo e relativamente limitado em quantidade de informação do DNA interage com o meio ambiente através da fabricação de proteínas. Por meio desta interação a estrutura permanente ia produzindo a manutenção e mudança da vida, já que as proteínas fabricadas a partir do DNA aproveitam o material ao redor; como nem sempre ele é o mesmo, uma proteína pode ser diferente da outra, dependendo do que o ambiente fornece. Assim a unidade se torna diversidade.

Enfim: aquilo que é herdado geneticamente em forma fixa gera vida diversa de acordo como meio ambiente.

O relato mereceu um comentário de outro confrade, o bispo dom Fernando Figueiredo. Especialista no cristianismo dos primeiros séculos, ele disse que o relato do fluir da vida entre o fixo e o variável evocava uma imagem de São Gregório de Nissa, um teólogo do século IV. Para o prelado a descoberta atual lembraria a visão do Gênesis elaborada pelo santo, segundo a qual o processo da Criação deveria ser interpretado não como um conjunto de tarefas divinas divididas em dias, mas como os desdobramentos no tempo do impulso inicial do Criador, fazendo e refazendo vida variada e diversa no tempo, até a eternidade.

Calma leitor. Sem ter a menor competência nem em ciências exatas nem muito menos em teologia, apenas narro aqui este diálogo entre ciência e religião surgido do quase nada para mostrar o que pode evocar uma boa prosa. As colocações iniciais foram gerando aproximações sucessivas entre o cientista e o religioso. Confesso que, a partir de certo momento, prestei pouca atenção a todas elas. Em parte porque não entendia, em parte porque lembrei-me imediatamente de outra aproximação, desta vez entre ciência e inconsciente desta vez envolvendo a Física e a Psicanálise.

Wolfgang Pauli foi um dos maiores físicos de sua época. Conseguiu ser, ao mesmo tempo, revisor da teoria da relatividade e inovador em física quântica tudo isso antes dos trinta anos. Então, em 1931, entrou em crise com a religião, viveu um casamento que fracassou depressa e teve um colapso. Acabou indo se tratar com uma discípula de Carl Jung, o mais conhecido psiquiatra de sua cidade, Zurique.

Além de inovador produtivo em ciência, Pauli revelou-se pródigo como paciente sonhador. Em pouco tempo narrou algumas centenas de sonhos conectados. A analista recebia relatos precisos de cada um. Diante da riqueza, procurou ajuda. Para se orientar no tratamento, foi fazendo supervisão com Jung.
Duas coisas aconteceram. Ao fim e ao cabo, em boa medida graças à interpretação dos sonhos, o tratamento baseado na análise desses sonhos funcionou. Wolfgang Pauli retomou sua vida profissional e afetiva. Enquanto isso, o analista do material imaginário descobriu um mundo ligando as imagens dos sonhos. Terminado o tratamento, depois da alta, o aliviado físico recebeu a notícia de que seus sonhos impressionaram Jung. Os dois se tornaram amigos. Depois de um tempo, Pauli acabou autorizando o emprego anônimo do material sonhado por Jung.
O resultado foi a monumental obra “Psicologia e Alquimia”. Basta o título dela para mostrar que os sonhos do físico, de forte teor religioso e simbólico, guardavam uma relação compensatória com sua obra de cientista com fama de extremamente rigoroso com a lógica.

Pauli leu a obra, gostou. Vivia um grande momento, ganhara o Prêmio Nobel em 1945. E resolveu desenvolver conjuntamente com Jung um conceito capaz de dar conta da espécie de fenômeno que os ligara. Assim chegaram a sincronicidade, que teve a seguinte definição pelo psicanalista:

“Escolhi este termo porque a aparição simultânea de dois elementos ligados pela significação, mas sem ligação causal, pareceu-me decisiva. Emprego, pois, o conceito de sincronicidade no sentido de coincidência, no tempo, de dois ou mais eventos, sem relação causal mas com o mesmo conteúdo significativo, em contraste com ‘sincronismo’, cujo significado é apenas a ocorrência simultânea de dois fenômenos” (Jung, Obra Completa, vol.8/3. 2011, Petrópolis, Vozes, p.35).

O tamanho da mudança envolvida era gigantesco: acrescentar uma nova maneira de conhecer para além da causalidade:

“Aqui se oferece a possibilidade de eliminar a incomensurabilidade entre observador e observado. Se isso acontecesse, o resultado seria uma unidade no Ser que se exprimiria através de uma nova linguagem conceitual, que Wolfgang Pauli, muito acertadamente, denominou ‘linguagem neutra’,” (idem, 104).

O conceito acabou ganhando uma imensa variedade de aplicações. Um dos empregos mais recentes está acontecendo com o par mente/cérebro e as observações de tomógrafos capazes de gerar imagens visuais do fluxo de energia vital em suas interações com a estrutura física corporal. Psicanalistas e neurocientistas têm produzido muito conhecimento de ponta conjunto, fundado nos pressupostos do conceito de sincronicidade.

Todas essas considerações me vieram à cabeça enquanto corria o afável diálogo acadêmico que entremeava imagens religiosas e discurso científico. A certa altura da conversa tive outra “lembrança não-causal”: além de físico, José Goldemberg é também ambientalista, tendo sido inclusive ministro do Meio Ambiente. Daí me voltou à cabeça a informação de um amigo: o papa Francisco estaria propondo uma nova relação entre ciência e religião, baseado na maneira como ambas deveriam pensar a questão ambiental.

Curioso, na noite da sessão fui fuçar a respeito na rede. Acabei dando com o texto completo da primeira encíclica do para, intitulada “Laudato Si”. Há no texto uma análise das questões do mundo contemporâneo que vale a pena. Mas o ponto que veio à minha memória naquele momento está relacionado com a espécie de empatia entre o cientista e o religioso naquela conversa.

Ali havia algo que é senso comum para nós que vivemos na era iluminista: o cientista trazia a informação, detinha a iniciativa; o religioso traduzia em imagens sagradas. Na bula papal acontece um pouco ao contrário. Existe ali uma proposta de diálogo interessante, já no versículo 3:

“Cinquenta anos atrás, quando o mundo balançava ao fio de uma crise nuclear, o papa João 23 (...) dirigiu a mensagem de Pacem in Terris a ‘todo o mundo católico’ e ‘todos os homens de boa vontade’. Agora, frente à deterioração do meio ambiente em escala global, quero dirigir-me a todas as pessoas que habitam este planeta”.

Este dirigir-se tem novidades importantes, especialmente a de propor um diálogo no qual a verdade nem sempre está com a fé:

“Sobre muitas questões a Igreja não tem porque propor uma versão definitiva e entende que deve escutar e promover um debate honesto com cientistas, respeitando a diversidade de opiniões” (61).

Tal modo de ver implica novas modalidades de diálogo:

“Não ignoro que no campo da política e do pensamento alguns rechaçam fortemente a ideia de um Criador ou a consideram irrelevante a ponto de relegar ao âmbito do irracional aquele enriquecimento que as religiões podem trazer para uma ecologia integral e o desenvolvimento pleno da humanidade. Apesar disso, ciência e religião, que trazem diferentes para a realidade, devem entrar num diálogo produtivo para ambas” (62).

A contribuição específica das religiões neste diálogo estaria na oferta de limites , na crítica que pode fazer ao ponto cego da mirada tecnológica:

“Cada época tende a desenvolver uma escassa autoconsciência dos próprios limites. Por isso é possível que a humanidade não perceba a seriedade dos desafios trazidos. (...) A liberdade do ser humano se reduz ao entregar-se às forças cegas do inconsciente, às necessidades imediatas do egoísmo e da violência. Neste sentido o Homem está nu e exposto frente a seu próprio poder, que cresce cada vez mais sem capacidade de controle” (105).

Para a discussão desses limites é que ciência e religião deveriam se complementar, buscando aquilo que o papa Francisco chama de uma ecologia integral:

“É ingênuo imaginar que os princípios éticos possam apresentar-se de modo puramente abstrato, desligados de todo contexto. O fato de aparecerem em linguagem religiosa não lhes retira o valor no debate público. Os princípios éticos que a Razão é capaz de perceber podem aparecer sob distintas roupagens e expressos por diferentes linguagens, inclusive a religiosa” (199).

Assim s atingiria um novo patamar de conhecimento:

“A maior parte dos habitantes do planeta se declaram como pessoas que acreditam; por isso as diversas religiões devem entrar em diálogo entre si, orientado para o cuidado com a natureza, a construção de redes de respeito e fraternidade. É imperioso também um diálogo entre as próprias ciências porque cada uma muitas vezes se fecha nos limites de sua própria linguagem, com o que a especialização se transforma em isolamento e absolutização do saber específico de cada uma. Sem diálogo não se pode encarar adequadamente os problemas do meio ambiente” (201).

Esta conclusão levou-me de volta ao momento inspirador, o diálogo na Academia Paulista de Letras. Talvez as relações entre ciência e religião a que nos acostumamos secularmente, o que dávamos por certo como conhecimento, esteja realmente entrando em nova fase.

Para o leitor que me segue, lembro que há apenas algumas semanas escrevi uma coluna intitulada O Canto da Sereia, onde narrava a solidão de Theodor Adorno e Max Horkheimer em 1943, pensando numa nova maneira de reunir mito e razão. Eis aqui um papa que tenta o caminho de mudar o modo de pensar natureza a partir de uma nova relação entre religião e ciência que acabei conhecendo graças ao diálogo de um físico com um bispo na Academia Paulista de Letras. Fica a aventura espiritual aqui para você, leitor, que vai dar um voto para o futuro do país.

Publicado no Jornal Gazeta do Povo em 26/10/2018, que fala da sessão na Academia Paulista de Letras.




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