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Acadêmico: Bolívar Lamounier "Reconheço, pois, que os pequenos entraram na paralisação movidos por uma causa justa, mas não vou além desse ponto. Causas justas não conferem a quem quer que seja o direito de obstruir vias públicas, engendrando um caos daquele tamanho."
“A situação vinha mal, mal, mal, e de repente piorou”. A frase citada é atribuída a um contista mineiro, não sei qual. Mas se a “situação” a que ele se referiu foi o caos de nove dias provocado pelo movimento dos caminhoneiros, realmente, o autor da frase teve uma premonição notável. Na verdade, não tivemos um, mas dois movimentos. Uma greve e um locaute. Bagrinho é aquele cidadão que foi na conversa da Sra. Dilma Rousseff e do Sr. Luciano Coutinho. A fim de manter alto o nível de emprego objetivo que tinha uma boa pitada de interesse eleitoral -, a presidente despejou dinheiro nas montadoras e mandou o BNDES facilitar a vida dos bagrinhos, facilitando-lhes a aquisição de caminhões. Estes devem ter descortinado um pedaço do paraíso. Compraram seus caminhões e entulharam ainda mais as estradas, na esperança de transportar cargas que não chegariam a ser produzidas. Claro, o valor dos fretes desabou e os quase três anos de recessão desfecharam o golpe de misericórdia. O pobre coitado ia do Mato Grosso ao porto de Santos, tinha até que pagar pedágio na volta, com o caminhão vazio, e chegava em casa com uns trocados que mal davam para alimentar a família. Acontece que naquelas fileiras intermináveis havia também caminhões pertencentes aos grandes empresários do setor, muitos dos quais possuem centenas de caminhões, e dão-se até ao luxo de contratar somente os fretes que deixam boas margens, subcontratando as demais com os peixinhos de um caminhão só. Aqueles, o que fizeram foi pegar uma senhora carona no movimento dos bagrinhos, que engordavam e legitimavam a paralisação aos olhos da sociedade. Reconheço, pois, que os pequenos entraram na paralisação movidos por uma causa justa, mas não vou além desse ponto. Causas justas não conferem a quem quer que seja o direito de obstruir vias públicas, engendrando um caos daquele tamanho. Mas os pontos que quero hoje destacar são outros. Ao paralisar o país, o movimento ofereceu ao governo uma escolha de Sofia. Recorrer às Forças Armadas? Os riscos de tal opção (supondo que ela fosse exequível) seriam evidentemente tremendos. Negociar? Sem dúvida, mas neste caso o governo já começava quase nocauteado. A dimensão atingida pelo caos tornava-o refém, e refém não é governo, é refém. Ao governo restava apenas aceitar a condição de refém e fazer a toque de caixa os ajustes exigidos pelo movimento, transferindo o custo para a sociedade e tirando parte dele de rubricas orçamentárias virtualmente imexíveis. “Socializar os prejuízos”, para lembrar a frase clássica de Celso Furtado. Dizer que o governo teve que se ajoelhar já soa bastante grave, mas esta é apenas uma reflexão inicial. Temos que prossegui-la examinando - a título de hipótese, evidentemente- efeitos possivelmente abrangentes que atingirão todo o sistema político. Sugerirei que este, numa fotografia inicial, compõe-se de três blocos. O Executivo (e o Judiciário), cuja condição de refém já foi mencionada. O Legislativo e os partidos políticos, dos quais não se ouviu um pio, e nem seria plausível esperar isso, se o próprio Executivo estava manietado. Nosso Legislativo, como sabemos, tempo uca ou nenhuma capacidade proativa; seu poder se manifesta é no grau de resistência que opõe (ou não) aos ditames do Executivo. Nossos partidos foram quase todos postos num bolsinho de colete pelo cartel das empreiteiras. Sua força é inversamente proporcional a seu número. O terceiro bloco, menos perceptível, mas onipresente, principal protagonista da demonstração de força dos caminhoneiros, é o corporativismo. Para bem compreender esta hipótese, precisamos ajustar um microscópio sobre a estrutura política do país. Subjacente aos dois primeiros blocos mencionei e dentro deles também -, o Brasil é um país corroído até a medula por essa massa aparentemente amorfa, mas poderosa, atenta, aguerrida e disseminada por todos os setores de atividade. Para expressá-la com a máxima simplicidade possível, minha hipótese é a de que essa massa vem aumentando imensamente seu poder relativamente às instituições do Estado e aos partidos, e tudo faz crer que essa tendência ainda tem muito chão pela frente. O termo corporativismo, como é óbvio, designa categorias ou setores profissionais que se organizam fortemente e mantém um elevado grau de coesão, como “corpos”. Pelejam aguerridamente na defesa de seus interesses. Para tais organizações, o nome do jogo é o exclusivismo. O bem comum da sociedade (e até o das demais corporações) que se dane. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Nada a ver com mérito, merecimento, produtividade. A cada uma, o que importa é obter a melhor remuneração possível, valendo-se para tanto das trincheiras estratégicas em que se colocam, e de sua capacidade de ação política, que não raro resvala para a chantagem contra governos e coletividades. Claro, o emprego (ou uma fonte estável de renda) é um elo fortíssimo, e é dele, principalmente, que deriva a referida capacidade de ação coletiva. Veja-se o caso dos 185 mil empregados e funcionários da Petrobrás. É plausível supor que um corpo de tal dimensão compartilhe sinceramente a cantilena sobre o estatismo, o monopólio, o “setor estratégico” em que a empresa atual? Claro que não é plausível, mas em todo esse debate eles se omitem galhardamente. Escrevi acima que o bloco corporativista poderá se fortalecer ainda mais em relação aos partidos e ao Legislativo. Diversos argumentos poderiam ser aqui invocados, mas vou mencionar um apenas. Há vinte ou trinta anos, as corporações ou sindicatos que convocassem greves teriam que dedicar um grande esforço a atividades comezinhas como a panfletagem. Hoje não precisam mais. Com o celular e o whatsapp, eles conseguem em dois dias a mobilização que tempos atrás exigia vinte. Publicado no Facebook, 02 de junho de 2018. voltar |
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