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AGRADECÍAMOS AOS MORTOS PELAS MELANCIAS
Acadêmico: Ignácio de Loyola Brandão
"Finalmente ele dizia ao vendedor: “Cale esta.” Calar significava abrir um buraco triangular na melancia e dar a provar. Ninguém vendia no escuro. Ou era doce, ou não."

“Prontos?”, perguntava mamãe. Em seguida, passava uma revista em mim e meu irmão Luiz Gonzaga. Sapatos engraxados ( por nós mesmos), meias branca de algodão, daquelas que à medida que andávamos eram “comidas” pelos sapatos e incomodavam. Mamãe era severa: “não quero que meus filhos andem como Judas.” Referia-se aos bonecos de trapos que faziam o papel de Judas e eram malhados no sábado de Aleluia. Ao sairmos, meus pais levavam ramalhetes de flores. Não havia casa em Araraquara que não possuísse seu jardinzinho com rosas, dálias, violetas, crisandalias, buchinho, cravos, primaveras (buganvílias). Era ponto de honra. Hoje, vejo que a maioria cimentou ou ladrilhou o jardim, para não dar trabalho. Íamos para o cemitério logo d e manhã. Dias de Finados. Ou dos Finados como dizia a professora. Um belo dia para os dois irmãos.
O cemitério de São Bento cheio. Quando em Araraquara você pergunta de alguém e a pessoa responde, está no São Bento, sabemos. Morreu. Aquelas manhãs de 2 de novembro eram uma festa de encontros e abraços. Nem parecia celebração dos mortos. Ria-se, contava-se casos e piadas, trocavam-se flores, lavavam e enfeitavam túmulos, havia quem chorasse um pouco. Eu via aglomeração diante de alguns sepulturas, enquanto em outras não havia ninguém. Pensava: como deve ser triste estar morto e ser solitário. Íamos direto ao túmulo de Francisco, um irmão morto que Luiz e eu nem chegamos a conhecer, acho que viveu apenas um ano e meio. Era como que um fantasma. Eu tirava o pó da tumba, Luiz passava um pano molhado, mamãe colocava os arranjos de flores em vasos de cobre, rezávamos juntos e a esta altura eu estava louco para ir embora. Meus pais demoravam, falavam com um e outro. Finalmente saiamos correndo. Tinha chegado a hora das melancias.
Naquele tempo, as frutas eram por temporadas, cada uma dava na época certa, não era como hoje que tem tudo o ano inteiro e nada tem gosto. As melancias chegavam em novembro e parece que a partida era dada no dia de Finados. Ou dos. Dezenas de carroças estavam paradas diante do cemitério e cada uma exibia o que havia de melhor, Enormes e cortadas ao meio, vermelhas, como que a derramar sangue. Ansiosos, víamos meu pai indo de carroça em carroça a escolher. Demorava, apontava para um, mamãe dizia não. Para outra e outra e nós com a boca cheia de água.
Finalmente ele dizia ao vendedor: “Cale esta.” Calar significava abrir um buraco triangular na melancia e dar a provar. Ninguém vendia no escuro. Ou era doce, ou não. “Uma ou duas, Maria?” Em geral mamãe dizia duas. Uma ficaria num bacia, dentro da água fresca, passaria a noite ao sereno. A outra era atacada assim que chegávamos em casa e comíamos com a cara enfiada naquelas talhadas sumarentas, doces, nos molhando todo e agradecendo aos mortos por terem morrido.



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