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NOVO SERMÃO AOS PEIXES, EM TEMPO DE LAVA-JATO
Acadêmico: Luiz Carlos Lisboa
"Há quem creia que melhor seria esquecer, do que sangrar de novo com a lembrança daqueles instantes."

Vivesse ainda entre nós o Padre Antônio Vieira, não como vive hoje no Céu dos justos e das mentes brilhantes de todos os tempos, ele por certo repetiria com grande atualidade seu Sermão de Santo Antônio aos Peixes. Aquele mesmo que pregou em São Luís do Maranhão em 1654, três dias antes de embarcar escondido para Portugal no auge da luta dos jesuítas contra a escravização dos índios pelos colonizadores.
Diria de novo agora quase as mesmas palavras de então, levado por seu zelo no combate aos que se apossam dos bens alheios e pouco apreço têm à verdade. E o faria guiado ainda pela santa indignação que o celebrizou como o maior representante da prosa barroca no mundo, inconformado com a desonestidade e sua reincidência na maioria dos humanos. Só que agora seu sermão teria como alvo principal não mais os escravizadores de indígenas, mas os larápios que roubaram aos poucos os salários dos pequeninos e mais pobres. E o sermão de agora seria em quase tudo como o primeiro e original, que vale a pena evocar pela verdade e a riqueza barroca que contém.
Nas palavras iluminadas da sua fina oratória, Vieira começa o que nomeia de objurgação repreendendo e chamando às falas os que roubam o pão nosso de cada dia dos que mal têm para si as migalhas que lhes caem da mesa, nas festas vergonhosas dos guardanapos brancos em Paris. E o jesuíta invocaria, como o fez no passado, o evangelista Mateus, naquela sua ira santa: “Vós sois o sal da terra”, e se alonga lembrando que o efeito do sal é impedir a corrupção que grassa por toda parte, mais agora do que antes. E diria uma vez mais que “o efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser, a causa dessa corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar. (...) Mas quando o sal não é bom e a terra não se deixa salgar, não há outra coisa a fazer senão lançá-los fora, para serem pisados pelos homens”. Sem foro privilegiado e sem procrastinação, como se fala agora, com igual revolta, em nome da justiça e da decência. Em nosso tempo nunca havíamos pensado testemunhar tanta imaturidade e tanto despreparo, reunidos em assembleia, como naquela tarde em que a Câmara dos Deputados votou pelo impeachment de Dilma Rousseff.
Quando um dia quisermos um retrato verdadeiro da atual vida política brasileira, teremos em mãos aquele documento impressionante em que parlamentares dedicam a esposas, filhos e afilhados, líderes e heróis estrangeiros, e até a cães e gatos de estimação, entre discursos e lágrimas de emoção, sua devoção política naquele momento. E o seu tom foi no ato mais de confissão do que de homenagem. Há quem creia que melhor seria esquecer, do que sangrar de novo com a lembrança daqueles instantes.
Padre Vieira iniciou aquela que é talvez a mais elaborada peça oratória de seu tempo, com a indignação que a injustiça sempre lhe inspirou. Não parece desarrazoado perguntar se teria gasto sua voz e seu talento se pudera imaginar a inutilidade da sua pregação. Agora, quando falta a todos nós um Vieira com sua espada de fogo e com a palavra que castiga e purifica a um só tempo, onde buscar a voz que tempera tão bem a ironia e a compaixão, a alegoria e o testemunho, onde o pregador que fala aos peixes pregando aos humanos, e fala a estes exortando àqueles? Aos que recaem e se repetem, Vieira repetiria incansável, em face da corrupção que ameaça uma e outra vez, citando o Mestre: “Já que não me querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes”. Pode ser que a crise que envolve o Brasil se dissolva um dia, como por milagre. Assim, o que for lançado fora talvez não chegue a ser pisado pelos homens.
E falando aos peixes, Vieira fala aos homens, na forma de parábola: “Grande ambição é que sendo o mar tão imenso lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro elemento mais largo. Mas vede, peixes, o castigo da ambição”. Crítica e prepotência dos grandes que, como peixes, vivem do sacrifício dos pequenos, aos quais engolem e devoram, enquanto apenas fingem governá-los. Ora, senhores, os homens comuns não são pouca coisa, pois eis que são o próprio sal da terra.

*Luiz Carlos Lisboa é jornalista e escritor. É autor de O jejum do coração (Peônia Press), entre outros. Ocupa a cadeira n 6 da Academia Paulista de Letras.





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