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O RÁDIO NO BRASIL E MEUS 30 ANOS DE CULTURA FM
Acadêmico: Júlio Medaglia
"O radio pelo qual me apaixonei no passado, não existe mais. Hoje só resta para o ouvinte minimamente inteligente sintonizar emissoras públicas, onde ainda é possível ouvir-se uma programação digna e de qualidade."

Daqui a 5 anos o Brasil vai comemorar o bi-centenário da independência e para isso já se iniciam, aqui e ali, alguns preparativos para a comemoração. Em 1922 organizou-se no Rio de Janeiro uma grande exposição com eventos de varias naturezas, muitos deles trazidos de fora do país. Um dos mais excitantes, foi a exibição de um milagre eletrônico recém-descoberto que permitia a onipresença de um mesmo som fala ou música em toda a cidade: a radiofonia. A empresa norte-americana Westinghouse instalou no alto do Corcovado ainda sem o Cristo Redentor um equipamento de emissão de ondas eletromagnéticas que foram captadas por receptores instalados em vários pontos do Rio e fora dele. Roquette Pinto, famoso médico legista, professor, escritor, etnólogo, antropólogo e membro da Academia Brasileira de Letras ao intuir o potencial de comunicação daquele engenho, bradou por todos os cantos: “Eis o grande veículo para educar nosso povo”. Incansavelmente bateu em portas públicas e privadas até conseguir recursos para a aquisição daquele equipamento. No ano seguinte era inaugurada a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro.

Esse grande brasileiro imaginava uma substancial transformação educativa no país, já que, utilizando-se dos recursos tecnológicos daquele equipamento, se poderia fazer chegar de graça a todos os lares a melhor cultura universal. Seria o mesmo que, uma engenhoca milagrosa, fizesse chegar à mesa dos brasileiros a comida do restaurante D.O.M. sem pagar nada. A rádio passou a transmitir óperas, concertos, poesias, informações culturais e assim por diante.


Infelizmente os resultados não foram aqueles que Roquette Pinto imaginava. As coisas da alma não são trocadas com a mesma facilidade com que se substitui um prato de feijão com arroz por um Poisson en écailles de pommes de terre do Bocuse. Ou seja. Não se substitui com facilidade a prática de ouvir sambinhas de Noel Rosa diariamente por uma ópera de Verdi...
Em sua organização o rádio brasileiro adotou o sistema norte-americano de patrocínios privados, diferentemente do europeu que foi mantido por empresas para-estatais. Ele orientou o conteúdo da programação mais no sentido de uma cultura popular, já que tinha o compromisso de, não apenas entreter, mas também vender produtos.
Curiosamente, porém, ocorreu uma saborosa surpresa na evolução dessa radiofonia. Enquanto na Europa os radialistas iam buscar na tradicional e rica cultura de alto repertório a matéria prima para o conteúdo de suas programações, aqui o radialista foi brincar com a capacidade do som de provocar a imaginação do ouvinte. As novelas eram interpretadas por rádio-atores que pronunciavam os textos com vozes extremamente impostadas e com muita variedade de intonação, quase como se estivessem cantando. Essa locução era emoldurada por uma rica sonoplastia de música clássica que ia de Tchaikowsky a Debussy, de Villa-Lobos a Schönberg. As salas de contra-regra eram dotadas de centenas de aparelhinhos aqui mesmo inventados que produziam sonoridades que imitavam à perfeição ruídos naturais, verdadeiras imagens do som. Ou seja. Ingênuas novelinhas eram uma espécie excitante ópera popular vocalizada.


A música popular contava com bons cantores que interpretavam preciosas crônicas de costumes acompanhados de orquestras que executavam arranjos dos maiores autores de nossa música erudita. Pesquisando recentemente gravações dos anos de 1930 e 40 de Orlando Silva e Carlos Galhardo, tive a impressão de ouvir cameristas como Fischer-Diskau interpretando melodias de nosso cancioneirismo.

A chegada da televisão e o massacre do vultoso aparato mercadológico montado para comercializar gravações musicais afastou toda essa rica e autêntica cultura popular radiofônica de nossas milhares de estações de rádio. Hoje ele transmite um lixo sonoro de doer, traindo e deixando de lado uma das maiores riquezas deste país, o talento musical brasileiro. O “rádio de broadcast”, como se dizia no jargão do meio ou o chamado “rádio-teatro” de efeito quase psicodélico de então, desapareceu, dando lugar a locutores parlapatões que vivem de anúncios de produtos duvidosos ou “pastores” evangélicos que arrecadam fortunas vendendo “terrenos” no céu e processos de cura na terra.
O radio pelo qual me apaixonei no passado, não existe mais. Hoje só resta para o ouvinte minimamente inteligente sintonizar emissoras públicas, onde ainda é possível ouvir-se uma programação digna e de qualidade.
Por essa razão, há exatos 30 anos, aceitei o convite que me foi feito pelo diretor da Rádio Cultura FM de São Paulo da época, Jair Brito, para fazer um programa diário. Nesse período tenho me esforçado em oferecer aos ouvintes uma programação musical de qualidade, precedidas de pequenos comentários objetivando despertar no ouvinte curiosidade e interesse pela audição, alem de informações úteis do contexto cultural da obra.
Durante algum tempo desses 30 anos diários e ininterruptos, realizei também entrevistas com figuras importantes de nossa sociedade. Seus depoimentos fazem parte hoje de um precioso acervo de ideias e opiniões nos arquivos da emissora.
Neste triste momento de nossa história, onde o buraco em que fomos metidos por governos corruptos e incompetentes, está levando instituições públicas a cortar verbas de fomento à cultura e, como consequência, ao triste fechamento de orquestras e entidades culturais, nossa responsabilidade, como membros de um organismo de comunicação diária, torna-se ainda maior. Enquanto a internet não engolir completamente a prática da audição sonora e enquanto existir o hábito de se apertar um botão duma caixa radiofônica para ouvir boa música, lá estarei nos fins de tarde antes que as “duplas sertanejas”, os falsos pagodes, as gritarias do baladismo-pop-rock internacional, os pancadões dos punks, funks, raps ou hip-hops ensurdeçam ou imbecilizem por completo a população...

Júlio Medaglia
Março de 2017





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