Compartilhe
Tamanho da fonte


BEETHOVEN ESTAVA CERTO E FOI PREMONITÓRIO
Acadêmico: Júlio Medaglia
"Mas, se na política, a Europa era uma enxurrada de desentendimentos e conflitos, havia a voz de um grande músico denunciando essa irracionalidade e esse ódio continuo: Ludwig van Beethoven."

No início dos anos de 1970 eu vivia em Baden-Baden, encantadora e histórica cidade da região do sudoeste da Alemanha onde se saboreia a melhor comida e degusta os melhores vinhos do país, particularmente os brancos. Isso tudo tem a ver com sua proximidade da Alsácia, região francesa igualmente privilegiada em termos de cultura gastronômica e vinícola. Certa noite resolvi jantar com minha mulher em Estrasburgo, capital da Alsácia. Ao chegar na alfândega, notei que havia poucas luzes e quase ninguém. Saí do carro com os 2 passaportes a procura das autoridades controladoras da fronteira. Numa sala distante, havia dois guardas sentados à uma mesa com trajes das polícias alemã e francesa. Jogavam cartas, contavam piadas num dialeto inexistente e incompreensível - um misto de alemão com francês da região; a televisão, ligada a todo volume transmitia um jogo de futebol de 2 times das proximidades, um de cada país. Meio com cara de idiota, com os documentos em mãos, não ousei interromper os “trabalhos” de ambos. Num dado momento um deles, sem sequer me olhar, fez um gesto com os braços, indicando-me o caminho a seguir, França adentro. Ao deixá-los, depois de achar hilária aquela situação, fui tomado de especial emoção, quase chegando às lágrimas. Lembrei-me que, há poucos anos, os povos daqueles dois militares não jogavam cartas alegremente e sim, raivosamente, bombas, uns sobre as cidades dos outros. Mal sabia eu também que, naquela mesma década surgiria algo mais inimaginável ainda, uma moeda única para todo o continente.
Apesar de toda a beleza artística produzida no Velho Continente e a descoberta e desenvoltura da inteligência humana, a barbárie esteve presente em toda a sua história. Mandatários ambiciosos e enfurecidos passaram séculos e séculos invadindo países, sacrificando populações, criando máquinas de torturas, humilhando povos; a igreja, “em nome de Deus”, na chamada Inquisição, queimava pessoas vivas em praças públicas e coisas assim. Ou seja. Sua história é feita de fatos de fazer inveja a qualquer Estado Islâmico. E mesmo no século passado. Para acabar para sempre com os conflitos, fez duas grandes guerras que deixaram mais de 60 milhões de mortos e metade do continente destruído.
Curiosamente, porém, a ideia de uma efetiva integração europeia (e humana), a música já praticava há séculos, com a maior tranquilidade. Se os impulsos iniciais da arte renascentista que criaram padrões culturais e artísticos modernos para toda a Europa vieram da Itália, em pouquíssimo tempo as linguagens musicais em todo o continente eram as mesmas. Se ouvirmos a música do italiano Palestrina, a do espanhol Tomás Luis de Victoria, a do inglês Orlando Gibbons ou a do flamengo Orlando di Lassus, nos parecem composições de um mesmo autor em fases diferentes de sua vida. E não parou por aí. Händel nasceu na saxônia, desenvolveu seu talento na Itália, e tornou-se o maior compositor da Inglaterra de todos os tempos, sepultado diante do altar do símbolo político-religioso máximo daquele país, a Abadia de Westminster. E a força desse europeísmo unificado era tal que, aonde chegavam seus tentáculos coloniais, a cultura era a mesma. Em meados do século 18 negros compunham como Händel na Bahia, um filho de escravos no Rio como Haydn e um descendente de mulato com uma mulher de origem indígena, iria escrever, com grande sucesso, óperas em italiano como Verdi.
Mas, se na política, a Europa era uma enxurrada de desentendimentos e conflitos, havia a voz de um grande músico denunciando essa irracionalidade e esse ódio continuo: Ludwig van Beethoven.
Entusiasmado com os ideais da Revolução Francesa, Beethoven viu em Napoleão a figura que iria operar as transformações radicais políticas e sociais por ele há muito imaginadas. Transformações essas que nenhum monarca e nem mesmo a Revolução Francesa conseguiu concretizar. Por essa razão, lhe dedicou sua terceira sinfonia que deveria chamar-se Sinfonia Grande, intitulada Napoleão. Mas, quando Beethoven viu Napoleão se auto-coroar imperador em 1804, teve um ataque de fúria, rasgando a página inicial da sinfonia onde constava a dedicatória. “Ele não passa de um mortal comum. Um tirano que vai pisar em todos nós”.
Ao ver, porém, as transformações que o Código Napoleônico operou na França e influenciou toda a Europa, Beethoven voltou a se preocupar com as ações do monarca francês. Código esse que acabava com os poderes absolutos e absurdos dos monarcas e da Igreja, introduzindo o império da lei. Isso o entusiasmou mais uma vez e toda a tragicidade embutida em suas sinfonias de número 5 e 7, são atribuídas a esse seu estado de espírito.
Com a saída de Napoleão de cena e com o Congresso de Viena de 1814, que redesenhou o mapa europeu e trouxe momentos de paz ao continente, Beethoven sentiu-se à vontade para criar uma sinfonia, a de número 9, cujo último movimento traria, na voz de um grande coral, uma mensagem clara de otimismo do poeta alemão Schiller, a Ode à Alegria. Essa alegria, esse otimismo dizia o texto - possuem a magia que irá irmanar todos os homens, deixando de lado aquilo que seus hábitos desuniu.

E foi por essa razão que, quando foi criada a União Europeia, estabeleceu-se também um símbolo sonoro para aquela audaciosa e bem vinda solução política e social: a Ode à Alegria da Nona Sinfonia de Ludwig van Beethoven.
Lamentavelmente, porém, se Beethoven estivesse vivo, teria que criar uma “marcha fúnebre” diante da execrável atitude inglesa de se separar do harmonioso bloco chamado União Europeia. Decepção essa que viria endossada pelo maior universalista e dramaturgo da história, cujas obras, tanto quanto as sinfonias de Beethoven, são representadas em todo o planeta: William Shakespeare - que era inglês...

Júlio Medaglia

CONCERTO
Ago/16




voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.