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A CANTORA FRANCESA
Acadêmico: Gabriel Chalita
O tempo faz com que as histórias de ontem ganhem algumas desculpas para serem perfeitas.

Ela fazia aniversário no primeiro dia do outono. Como esquecer? Ela não gostava de falar sobre a idade, a não ser quando estávamos apenas nós. Então, ela lamentava os anos que nos separavam. Eu dizia não me importar. E a acariciava com tanta decisão que ela virava a conversa para outro assunto.

Eu era estudante universitário, e ela uma atriz, uma atriz que cantava músicas francesas. Que cantava e que traduzia partes da canção para explicar suas escolhas. 

Fui o escolhido em um dia em que a boate fervilhava alegria. Ela passava pelas mesas e brincava de seduzir. Fui seduzido. Teimei em esperar sua saída. Sem maquiagens, ela era ainda mais linda. Fomos caminhando calçada escura. Ela dizia sobre os signos, não me esqueço. Que os nossos combinavam. E ria. Ria, porque depois explicava que gostava de inventar explicações para a felicidade. 

Nos amamos já na primeira noite. Ela quis saber minha idade. Eu tinha 21. Ela fez um silêncio e depois sussurrou sobre aproveitar o hoje. O hoje se fez vários dias, vários meses. Nos amamos por quase 7 anos. 

Algumas manhãs, eu acordava ao seu lado e ela passava silenciosamente as mãos pelo meu corpo. E falava da minha juventude. Vez ou outra, eu a desmentia em seus assuntos sobre a impossibilidade de uma história com idades tão distantes. Eu enfeitava meus argumentos com exemplos de tantos homens casados com mulheres muito mais jovens. Por que o contrário não seria aceitável? Ela ouvia, parecendo agradecida à minha teimosia. 

Minha mãe tinha alguma implicância com nossa relação. Mas pouco dizia. Eu, filho único de mãe viúva. Um dia, ela disse apenas que Mayara, certamente, não tinha idade para ser mãe. E prosseguiu falando que éramos uma família muito pequena. As duas fingiam afetos. Mayara era o nome da cantora francesa. Não. Ela não era francesa. Ela cantava, em francês, o amor. E traduzia em mim o seu romantismo.

Um dia, eu estava conversando com uma mulher da minha idade. Nunca foi importante para mim essa história de idade. Era apenas uma conversa em um café com mesas na calçada. Mayara nos viu sorrindo. Apenas isso. Ela nos cumprimentou. Eu puxei uma cadeira para que ela se sentasse. Nos beijamos. E ela, nos poucos instantes em que ficou conosco, apenas disse que era lindo ver dois jovens tão felizes conversando. E saiu. E saiu da minha vida sem grandes explicações. 

Quando fui à sua casa, vi uma mala arrumada. Ela falou de uma turnê. Eu não entendi. Ela deu um abraço longo. Chorou ao tocar no meu rosto e anunciou o fim. Eu implorei um desmentido. Ela disse que entendia da vida e que era grata pelas manhãs acordadas ao meu lado.

Faz tanto tempo. O tempo demorou a curar meu vazio. Eu fiz de tudo para voltar. Cantava em mim as músicas francesas de amor. Abraçava a ausência, jurando nunca mais amar. Não cumpri a promessa. Encontrei uma outra história. Casei. Tive quatro filhos. A mais velha se chama Mayara. Minha mulher nunca perguntou a razão da escolha do nome. Sou feliz com o que construí. Mas, ainda hoje, quando ouço uma canção francesa ou quando o outono chega ou quando um luar ilumina mais forte a noite ou quando um pôr do sol está mais avermelhado, penso em Mayara. Não na filha, mas na mulher que, misteriosamente, me ensinou a amar e, paradoxalmente, me apresentou a dor do amor. 

O tempo faz com que as histórias de ontem ganhem algumas desculpas para serem perfeitas. Há uma parte dessa mulher, em mim, inventada, eu sei. Passei noites imaginando o seu desfecho. Se ela havia encontrado alguém. Se a esse alguém os ditos eram parecidos com os que eu ouvia. Se também passeava com os dedos pelo corpo ao despertar. 

Não digo que não amo minha mulher e não seja com ela feliz. Nada digo a ela dos meus inícios. Sou cuidadoso com as dores que se pode causar no outro, inclusive em matéria de amor. 

Hoje, acordei cantarolando "La vie en rose". Não posso reclamar das cores da minha vida. Nem do que tenho hoje, nem do que tenho guardado na memória secreta dos meus mais lindos sentimentos. Saudade é palavra que não me atormenta. Saudade é poema de gratidão e de esperança. O amanhã virá com todos os ontens que prosseguem em mim.




Publicado no site do jornal O Dia, 26 de março de 2023.



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