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PONTES ENTRE ABISMOS
Acadêmico: José Renato Nalini
As sementes de um Brasil unido e desarmado, fraterno e solidário, estão aí! Resta semeá-las, para que se expandam e frutifiquem.

Pontes entre abismos

Embora a geografia brasileira não disponha daqueles píncaros presentes em outras nações, nossas elevações parecem femininas, lembrando as curvas sensuais das lindas mulheres, na metáfora o Brasil tem inúmeros abismos. Neste passo, lembro-me de ter ouvido de Guilherme de Almeida, visitante assíduo daquela utopia chamada “Fazenda Campo Verde”, instituída por Dulce e Victor Geraldo Simonsen, uma instigante imagem: nossas montanhas lembram em tudo o corpo feminino. Até na vegetação que brota em suas entranhas.

Os abismos são aqueles com os quais convivemos, e – infelizmente – quase perdemos a capacidade de detectá-los. Como imaginar que ainda haja no Brasil vinte milhões de famintos? Tantos outros milhões de desempregados, de sem-teto, sem educação e sem saúde?

Aprofunda-se o fosso aparentemente intransponível entre miseráveis e milionários. Estes, cada vez mais potentes e poderosos. Aqueles, a cada dia mais privados do essencial para uma vida digna.

Já li que o Brasil de 1922, quando se preparou para celebrar o centenário da Independência, era uma nação muito mais otimista do que a de hoje. A grande exposição no Rio de Janeiro atraiu as nações amigas, havia um clima de entusiasmo e de real comemoração. O Brasil tinha o que mostrar. E hoje?

É urgente recobrar o espírito da Semana de Arte Moderna de 1922. Não foi uma fanfarronice de estroinas, jovens na faixa dos vinte anos, idealistas e sonhadores. Não. Foi um movimento pensado na eliminação desses abismos entre a cultura importada, quase toda de inspiração francesa, e a cultura popular. Ignorada e desprezada.

Redescobrir o Brasil autêntico, aquele dos homens e mulheres simples, com a nostalgia da vida campesina, saudosos da vida rural da qual uma legião foi expulsa quando cedeu espaço à monocultura. Pessoas crédulas e crentes, geralmente adeptas de uma confissão religiosa autêntica, quase toda católica. Gente que se espelhava na mensagem evangélica. Afeiçoada à cultura do bom samaritano. Talvez até inspirada na experiência dos primeiros cristãos, aqueles que eram olhados com admiração pelos pagãos: “vede como se amam!”.

E hoje? Será que sobrou essa ingenuidade, essa singeleza, essa busca de revalorização do que é autenticamente brasileiro?

O que o Brasil tem para mostrar ao planeta, que possa, se não sobrepujar a Exposição de 1922, ao menos se equiparar a ela?

Impõe-se repensar a celebração do bicentenário da Independência, conciliando-a com o centenário da Semana de Arte Moderna, com os noventa anos da Revolução Constitucionalista de 1932, coincidente com a criação da Justiça Eleitoral, uma “jabuticaba” que deu certo e que é produto de exportação para o restante da Terra.

Primeiro, se houve em 1822 uma “independência”, hoje, em 2022, há de se falar em “interdependência”. A soberania, como conceito básico da Teoria Geral do Estado, desapareceu. Todas as nações se vinculam por uma rede coesa e densa de relações e de interdependências. Basta lembrar que chuva ácida, aumento do nível do mar, poluição difusa, respeitasse as frágeis convenções humanas que estabeleceram fronteiras entre os países.

É urgente não esvaziar, mas recuperar o ânimo que levou Mário, Oswald, Menotti, Guilherme, Salgado, Victor, Guiomar, Anita, e outros jovens sonhadores, a prestigiar o que é próprio ao Brasil. Assegurar a cada brasileiro a dignidade explicitada na Constituição de 1988 é missão de todo brasileiro de boa vontade.

No momento em que a Constituição da República Federativa do Brasil é tão vilipendiada, desprezada, ultrajada, violada, interpretada à luz de interesses escusos, é oportuno resgatar a religião constitucionalista de julho de 1932. Ou se tem e se respeita um pacto fundante, ou se vive em regime autocrático, autoritário e distanciado do ideal democrático.

Prestigiar a Justiça Eleitoral, que consegue recolher a vontade cidadã e apontar o resultado das eleições, em tempo recorde. Um sistema confiável, a cada eleição aprimorado, que já passou por todas as inspeções, inclusive internacionais. Tanto que está prestes a ser copiada por grandes democracias ocidentais.

Tudo isso é metaforicamente análogo à existência de abismos que precisam ser superados, mediante construção de pontes consistentes. Elaboradas pela inteligência tupiniquim, pela Academia, pela Universidade, pelo empresariado, pela mídia, pela sociedade que é muito melhor do que os sinais emitidos por uma minoria.

As sementes de um Brasil unido e desarmado, fraterno e solidário, estão aí! Resta semeá-las, para que se expandam e frutifiquem. Nossos netos, bisnetos e trinetos merecem que levemos a sério esse desafio.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 16 05 2022




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