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O VARRER DOS DIAS
Acadêmico: Gabriel Chalita
Quem varre varre sujeira. Quem limpa quer deixar limpa a passagem. A dos outros e a nossa própria. Afinal, a passagem é a mesma. 

O varrer dos dias

Ele passou pela calçada e olhou  para onde pouca gente olha, nos meus olhos. E fez um aceno e disse algumas palavras de quem sabe apreciar.

Apreciei as palavras e a juventude daquele passante. Passamos pela vida. É o que eu venho aprendendo. Ele não se surpreendeu com o meu dizer sobre o varrer dos dias. Parecia o que devia ser dito, afinal, estava eu com a vassoura nas mãos varrendo. 

Quem varre varre sujeira. Quem limpa quer deixar limpa a passagem. A dos outros e a nossa própria. Afinal, a passagem é a mesma. 

Ele quis saber o que eu varria. Eu disse das sujeiras que se pode ver e das outras. Ele pareceu interessado nas outras. Falei, então, da inveja. É preciso varrer a inveja do mundo. Ninguém é feliz se incomodando com a felicidade do outro. Do outro que sabemos nada. Se soubéssemos, cultivaríamos a admiração, apenas. 

Ele gostou. Fez o silêncio dos atentos. E repetiu para si a palavra inveja. Decerto já foi vítima, decerto já vitimou. Aprendemos, também, com os nossos erros e, para isso, é preciso varrer a arrogância. Eita sentimento sem sentimento. Ninguém tem o direito de olhar de cima. De se achar mais. Nem de pisar. Pisar podemos é no chão, Por isso passo a vida a limpar os caminhos. 

Se nos sujamos, carregamos sujeiras por outros cantos. Outros cantos não conheço. Conheço por aqui, onde nasci, onde passo a vida a varrer. 

Perguntou a minha idade. Respondi. Sorriu ele desacreditando,  talvez. Nasci há tanto tempo e tenho o tempo que necessito para fazer o que faço, varrer. 

A perversidade também precisa ser varrida. Dói em mim as dores que doem no outro. Dia desses, um menino estava no portão esperando o pai que nunca voltou. Morreu de morte antecipada por ódio de alguém.

Nem bicho eu mato. Bicho suja menos que gente. E dizem que gente tem mais sentimento que bicho. Não sou das filosofias difíceis. Sou da limpeza. Já perdi um filho. Para os homens. Disseram que mataram por engano. Engano é matar. 

Lembro o dia. Desengavetei a tristeza que estava engavetada para o momento da morte de alguém amado, mais velho. Meu pai ainda era vivo, mas foi meu filho que morreu. Meu marido morreu, também. No tempo certo, no tempo em que o dia já é noite. Meu filho morreu no amanhecer. 

O jovem gastava olhares em mim e ouvidos e perguntava perguntas de quem quer saber. Sei pouco sobre a vida. Só sei que tem que varrer. Se descuidarmos, um pó do passado fica, uma sujeira que gruda e adoece. 

É preciso varrer os desânimos. Sou uma mulher de alma. É preciso varrer as desistências. Até choro a dor, mas é a alegria que me faz levantar todo dia. Todo dia nasce um dia. Se o dia é bom? É para ser. 

É para a faca ser boa. Depende da intenção de quem usa. É para o fogo ser bom. É só não se queimar nele. É só saber a distância que aquece da que assusta. 

A morte não me assusta. A despedida, talvez. Nunca saí do canto de onde nasci, como disse. E não sinto falta. Sinto falta do meu filho. E de quem  eu amava conversar e que já não passa por essa calçada.

No céu, não sei se tem necessidade de varredoura. Acho que não. É aqui que se limpa para chegar limpo por lá. 

Convidei o jovem para se achegar em minha casa e tomar um café. Tudo muito simples. Quem varre sabe que, depois que se varre, o que fica é a simplicidade. Não tem nada mais bonito do que a simplicidade. Tenho pena de quem não sabe. Ele aceitou o convite, sem nem pestanejar. Um dia eu conto a conversa.

Eu vi que ele reparou no roseiral, que eu trato de cuidar. Brincou com Princesa, a cachorrinha que eu trouxe da rua para amar. E até de uma velha árvore que faz sombra no banco em que a conversa é bem-vinda. A conversa limpa a alma.

Uma alma limpa sorri um sorriso limpo que afasta a neblina que nos impede de ver que há o alto que nos sorri, também, quando entendemos de simplicidade.

Ontem mesmo, foi dia de lua nova.



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