MEMÓRIA
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ACERTOS E DESACERTOS
Acadêmico: Academia
A DISTÂNCIA DE MEIO século, a leitura deste documento ainda nos comove, ante as dificuldades vencidas por aquele punhado de escritores, no afã de dotarem o nosso Estado com uma instituição cultural à altura de suas tradições. Os próprios defeitos estilísticos da peça, ou, digamos, certo desalinho na exposição dos fatos, a frase um tanto presa, traem a tensão em que se achava Amadeu Amaral no ato de redigi-la. Nem se concebe que em tamanha agitação tivesse alguém disposição para pensar no arredondamento dos períodos naquilo que escrevesse.

Era natural, assim, que os reformistas da Academia cometessem erros naquelas sessões agitadas, até encontrarem a solução compatível com a delicadeza da situação, uma vez tomada a decisão de eliminar os "ausentes" que, por isso mesmo, nada podiam fazer para o bom andamento da reforma.

Não admira, pois, que Amadeu Amaral não atinasse de pronto com a solução para o problema que lhe coubera resolver, e até mesmo na sua Exposição falasse muito pela rama da fórmula mais acertada para a questão em pauta e que viria, por fim, a prevalecer, como se se tratasse de uma simples hipótese de trabalho, não merecedora de maior estudo por parte dos presentes: criar a classe dos "sócios honorários" para abrigar de imediato os sete acadêmicos ausentes e, mais para diante, outras figuras exponenciais daqui ou do estrangeiro, e de que também poderiam beneficiar-se em futuro distante os acadêmicos titulares, por invalidez ou necessidade. Não se passariam muitos anos sem que essa fórmula demonstrasse na prática o seu valor. Diversos acadêmicos a ela recorreram, quando a velhice inarrável se manifestou por sintomas alarmantes, deixando-os inaptos para o bom exercício de suas funções. O professor Álvaro Guerra foi o primeiro a fazer uso desse privilégio; depois Basílio de Magalhães e Reinaldo Porchat. Em todos os casos, com alguma relutância por parte da Diretoria em diferir o requerimento. A operação ficava mais fácil, quando o candidato à sucessão era o portador do pedido e, por isso mesmo, interessado no despacho favorável do requerimento: abria-se vaga, com o que se iniciava a campanha eleitoral, de antemão assegurada.

Ao invés disso, perderam um tempo precioso em intermináveis debates sobre a distinção entre membros "honorários" e "efetivos", ou sobre as vantagens de aumentar o número de Cadeiras para 50 ou 43. Nesta última hipótese, em caráter provisório, até se verificarem três vagas por morte de acadêmicos legalmente eleitos.

Como vimos, todas essas sugestões desencontradas eram postas em votação e logo aprovadas, sem prejuízo dos conflitos dialéticos que pudessem provocar, no pressuposto ingênuo de que não estavam sendo adotadas em caráter definitivo.

Mas, na prática, nenhuma se revelava satisfatória. Tomando como exemplo esta última ideia, de criarem mais três Cadeiras extranumerárias, de que jeito observariam a cláusula de não serem preenchidas as três primeiras vagas por morte?

Para começar, as Cadeiras de número 41, 42 e 43, criadas por esse Decreto, muito embora sem antecedentes históricos, ficariam sob a égide de novos patronos, e seus ocupantes obrigados a fazer o elogio público daqueles paraninfos de última hora. E tudo isso, em caráter provisório, para serem oportunamente canceladas as Cadeiras e arquivados os Patronos, de mistura com, os discursos oficiais? Em verdade, muito trabalho teriam os historiadores do futuro, para deixar bem a Academia com relação à memória desses patronos de emergência que prestaram bons serviços no seu tempo, para serem agora despedidos sem maiores cerimônias.

Ainda bem que o redator do Projeto teve o cuidado de não condicionar tais cancelamentos com as vagas por morte dos próprios "ausentes", o que equivalia a deixar esses membros fundadores sob a vigilância macabra dos ocupantes das três Cadeiras novas, com promessas e votos em surdina de breve desenlace, na expectativa de três solenidades de sepultamento que viessem pôr fim àquela situação embaraçosa.

Das sessões dedicadas ao debate dessa questão intricada, a sétima, do dia 4, foi a mais longa e acalorada, depois da leitura da exposição de Amadeu Amaral. O próprio tamanho da ata, com dez páginas de letrinha miúda, reflete bem o ardor das discussões. Com apenas doze dias de existência e o regime de urgência que a si mesmo se impuseram, faltava aos acadêmicos a serenidade que só o tempo confere, para apreciar as diferentes propostas nas suas justas implicações.

Coube a Veiga Miranda apresentar a fórmula mais equilibrada para a questão dos ausentes, com o simples acréscimo de novos dispositivos ao Regimento interno.

"Propôs que no Regimento os membros ausentes sejam considerados honorários, mudando de categoria, e consideradas vagas as respectivas cadeiras. Esta proposta evitará nova reforma de estatutos, porque o Regimento dará solução ao caso vertente."

Mais claro não era possível. Manifestaram-se contra: Sud Menucci, Taunay, Otoniel Mota e outros.

"Pediu a palavra o Sr. Otoniel Mota para fazer distinção entre membros efetivos, honorários e correspondentes, mostrando que a aceitação da proposta discutida fere direitos adquiridos. Manifestou-se, por esse motivo, de acordo com o alvitre sugerido, de se elevar o número de acadêmicos a 50."

E logo adiante: "Posta a votos, foi recusada a proposta Veiga-Vampré por oito votos contra sete, sendo aprovada a que eleva o número de acadêmicos a 50".

Quer dizer : continuavam a marcar passo no mesmo lugar, aprovando hoje a ideia rejeitada ontem, e mais com a certeza de que seria rejeitada na próxima sessão. Atitudes inexplicáveis, porém freqüentes e até mesmo características das aglomerações de homens — cultos ou incultos, indistintamente — e com o que sempre devemos contar em conjunturas semelhantes.

Como vitória definitiva, ainda que parcial, consignemos que desde o início Cláudio de Sousa conquistara posição privilegiada, com relação aos demais "ausentes", graças ao desassombro com que defendera sua Cadeira, e da qual não pretendia desfazer-se. Já no dia seguinte, Amadeu Amaral, na sua exposição começou a falar em seis ausentes, não sete como no começo. E Gomes Cardim mais de uma vez recomendou a seus colegas que não aplicassem a Cláudio de Sousa o qualificativo de "ausente".

"Em seguida pediu que em qualquer hipótese, não seja o Dr. Cláudio de Sousa considerado membro ausente, mas sim efetivo, atendendo à sua atitude louvável, ao veemente protesto por ele feito e à sua declaração peremptória com referência às sessões da Academia."

A atarantação da assembléia era de tal porte, que a exclusão de três "ausentes" foi decidida por proposta assinada por 14 membros em que se preconizava o contrário disso, ou seja, a manutenção de todos os "ausentes" nas suas Cadeiras e a confirmação de três novos acadêmicos recentemente eleitos. Era um deus-nos-acuda de falta de senso e de serenidade:

"Propomos que a Academia Paulista de Letras, executando e, cumprindo os estatutos em vigor, mantenha na categoria de sócios ausentes os que se acham fora do Estado e dê posse aos três acadêmicos recém-eleitos".

Nessa altura, operou-se na cabeça dos senhores acadêmicos o estalo de Vieira, porém só pela metade, com aclaração parcial do problema, mas com quebra da eqüidade. Estava decidido: tomariam à força três Cadeiras, com aposentadoria compulsória de seus legítimos fundadores e sentariam nelas os novos acadêmicos.

Evidentemente, o grosso da discussão de semelhante proposta não aparece nas atas. O Secretário apenas se refere à explicação verbal dos signatários da proposta em foco, por haver três acadêmicos dos denominados "ausentes" em condições especialíssimas, que os deixavam à mercê da fúria reformista daquela assembléia de neófitos, no empenho de reerguer a Academia abandonada. Era a parte mais delicada da questão: indicar dentre os "ausentes" os três sacrificados em benefício da palavra dada. Mas, a verdade é que a condição "especial" dos três acadêmicos então apontados continuava sendo a mesma de todos os sete, desde o começo daquela barafunda: residirem fora de São Paulo. A única diferença era que os proponentes contavam com a aquiescência passiva das vítimas, para abrir três vagas no quadro social: Monsenhor Benedito de Sousa, João Vampré e o professor José Feliciano. Uma medida injusta, em suma, por não ser de caráter geral.

Somente a João Vampré seria dada alguma satisfação, pois o acadêmico Spencer Vampré se comprometeu a obter do titular da Cadeira n° 6 uma declaração escrita de que estava de acordo com a mudança projetada. Monsenhor Benedito de Sousa e o professor José Feliciano estavam por demais longe para serem consultados, tendo ficado ambos com a convicção de que haviam sido sumariamente eliminados da Academia que eles haviam ajudado a fundar vinte anos antes daquela acomodação. Pelo menos, sabe-se que o professor José Feliciano morreu com essa convicção, conforme teve oportunidade de declarar muitos anos depois, por ocasião de sua visita à nova sede da Academia, quando do seu regresso definitivo para o Brasil, onde sempre esperara dormir o último sono.

Monsenhor Benedito de Sousa foi mais duramente castigado. Conquanto seu nome figure no quadro social que aparece em todos os números da Revista da Academia, como ocupante da Cadeira n° 11, no número que deveria trazer a bibliografia de todos os ocupantes dessa Cadeira, a saber, a Revista n° 11, o redator da notícia pula do acadêmico fundador para o terceiro ocupante, Cassiano Ricardo, cujo retrato, naquela data — setembro de 1940 — inserto naquele mesmo número da Revista — já ostentava o fardão da Academia Brasileira.

Essa falta dos redatores da Revista só foi sanada recentemente com a publicação do discurso de posse do acadêmico Tito Lívio Ferreira, na vaga do poeta Cassiano Ricardo. Sim; com a publicação na Revista; porque no discurso lido naquela solenidade a respeitável figura do Bispo do Espírito Santo continuava "ausente" da Cadeira n° 11. Sem tratar abertamente da questão nem da maneira sub-reptícia da eleição do seu antecessor naquela Cadeira, fornece-nos o recipiendário elementos para melhor compreendermos e em parte justificar aquele esquecimento, com fazer-nos lembrados de que a passagem de Monsenhor Benedito por nossa Academia coincidiu com o grande recesso da instituição na década de vinte. Por ocasião da reforma Gomes Cardim, animados, como estavam os acadêmicos, do louvável propósito de atrair para o nosso grêmio escritores que pudessem dedicar-se à Academia, para a boa consecução de seus fins, com a criação da classe de sócios honorários, foi para ela transferido Monsenhor Benedito, que, havia muito, tinha sido consagrado Bispo da diocese do Espírito Santo, sem possibilidade de algum dia voltar a residir em São Paulo.



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