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A POSSE DO SR. ALTINO ARANTES COMO SUCESSOR DE AMADEU AMARAL
Acadêmico: Altino Arantes Marques
"Na ciência grave e profunda dos Teólogos, a Divindade tem os seus eleitos inexplicáveis ao juízo dos homens. As Academias também os têm. E foi esse o processo de seleção, fácil talvez, arbitrário com certeza, que vingou neste caso - por fortuna singular..."

DISCURSO DO RECIPIENDÁRIO

Na ciência grave e profunda dos Teólogos, a Divindade tem os seus eleitos inexplicáveis ao juízo dos homens. As Academias também os têm. E foi esse o processo de seleção, fácil talvez, arbitrário com certeza, que vingou neste caso - por fortuna singular...

Chamando-me dentre tantos outros mais dignos para ocupar, nesta casa, a cadeira patronímica de Teófilo Dias, que Amadeu Amaral inaugurou e para todo o sempre imortalizou com os fulgores do seu gênio e com as harmonias do seu estro, - a Academia Paulista de Letras, em sua alta sabedoria, entendeu fazer obra mais de generosidade que de justiça. E podia incontestavelmente fazê-lo: porque, na função, que lhe é privativa, de escolher os próprios consócios, os seus direitos são irrestritos, são quase magestáticos...

O exercício deles, na ocorrência que me é pessoal, não obedeceu a outras sugestões senão às da magnânima amizade que me orgulho de desfrutar no seio da ilustre Companhia, que ora me recebe no seu nobre e brilhante convívio.
Mas quebrastes assim, senhores acadêmicos, - e ninguém mais do que eu o deplora - a formosa tradição, secularmente consagrada nas sociedades de letras, que aconselha que a um poeta deva suceder outro poeta - no louvável propósito de conservar-se, nesta maneira, às respectivas cátedras o seu carisma batismal, a sua característica primitiva, a sua personalidade própria.

Foi por isso que, aqui, nesta valorosa Piratininga, tocou a Amadeu Amaral a honra, que ninguém jamais lhe disputaria, de recolher e de opulentar a herança poética de Teófilo Dias. Foi por isso que lá, na soberba Metrópole, sob um céu mais escampo, "à sombra natural, serena e íntegra de uma árvore de que Gonçalves Dias fora a rama, Olavo Bilac a flor e Amadeu Amaral o fruto" , pôde vir pousar "sentinela sonora e vigilante, Guilherme de Almeida, o nosso pássaro, o Uirapuru de canto mágico. Orfeu do seringal tranquilo"... Na exceção que agora se decreta em meu favor, mas a sério perdimento das letras paulistanas, não é lícito enxergar portanto, senão inestimável prêmio - pairando muito acima dos seus méritos e das suas ambições - ao obscuro apreciador de boas leituras, que ao folheio delas, entretanto, só tem podido consagrar os escassos e fugitivos lazeres que lhe sobram dos labores da vida e dos encargos da política.

Que dessa grave erronia vos peçam contas as Musas agastadas; que a mim, afortunado beneficiário dela, só incumbe o resgate, por imorredoura gratidão, da divida imensa, de que vos fizestes credores, ao acolher-me neste recinto, no regaço desta refinada estirpe espiritual que tem por missão irradiar pensamento e arte na vida e na história de São Paulo e do Brasil.

Verdadeiramente não sei se alguém que, como eu - estudioso e admirador, embora, da poesia e dos poetas - jamais se abalançou a compor um só verso, possa, com exatidão e competência, discorrer de quem, como Amadeu Amaral, não só fez poesia desde os mais tenros anos de sua juventude, mas viveu de poesia e na poesia, - de tal sorte que sentimento e esforço, ambição e glória foram, para ele, nem só motivos de arte, mas também, e principalmente, forma e substância da própria personalidade estética.

Como quer que seja, porém, cumprindo a obrigação que decorre da honra de pertencer à vossa grei, procurarei bosquejar - imperfeita e deficientemente embora - a hierática e altaneira figura do nosso grande vate.
A praxe geralmente seguida em cerimônias análogas - praxe a que, espírito eminentemente conservador que sou, de boa graça me submeto - manda que eu principie por determinar a escola literária a que pertenceu o meu antecessor, para, ao depois, estudá-lo, analisá-lo e julgá-lo em conformidade com os cânones da tendência a que se filiou ou que, acaso, tenha iniciado.
A esse trabalho preliminar de "catalogar e de etiquetar" chamou E. M. de Vogué la grande affaire ; mas Amadeu, despretensioso e simples, degradou-o de tamanha importância e relegou-o para a cozinha trivial em que se condimentam os molhos para a degustação mais ou menos saborosa dos vários escritores.

É que ele, em rigor, não acusou nenhuma tendência literária especializada. Escreveu como lhe aprouve, ao descuido do spiritus qui ubi vult fiat. E não teve, assim, senão uma única escola: a da sua funda e perene sinceridade.
Influências do meio, temperaturas do ambiente, ele as sofreu por força, e era natural que se ressentisse dos seus efeitos. Mas esses efeitos eram superficiais e passageiros, como as causas que os geravam, e apenas lograram imprimir, na admirável estrutura da sua obra, as marcas exteriores de uma atividade, que evolveu sem cessar e incansavelmente se renovou na pesquisa apaixonada da Perfeição.

Dante seria incompreensível para quem pretendesse prescrutá-lo fora dos moldes do dolce stil nuovo. Camões resume em si tudo quanto de mais alto encerra o classicismo quinhentista. Shakespeare encarna o inovador audaz, cujas pegadas teriam de seguir, mais tarde, os românticos, nas temeridades da sua revolução literária. Goethe concilia o romantismo com o classicismo: Helena com Margarida, o Panteão com o Walhalla.

Victor Hugo marca o sol meridiano a iluminar os derradeiros triunfos elo romantismo, a perigo de fatal declínio. Gonçalves Dias infunde alma e vida ao indianismo. Castro Alves - precursor e apóstolo da Abolição - vibra e deflagra na cólera sagrada contra a ignomínia negreira. Olavo Bilac, o excelso parnasiano, esmera-se por que

... a estrofe cristalina,
dobrada ao jeito
do ourives, saía da oficina
sem um defeito ...

Debalde, porém, procuraríamos classificar - o que vale dizer circunscrever - Amaeleu Amaral em qualquer destas correntes. Pois que, vario e multiforme nas manifestações do seu engenho e do seu estro, de todas ele participa, mas a todas se sobrepõe, preservando ciosamente a inteira independência da sua própria individualidade.
Dir-se-ia composto para ele o suave pensamento de Montaigne: "Les abeilles pillotent de çà, de là, leurs fleurs ; mais
elles en font aprés le miel qui est tout leur ; ce nest plus thym,
ni marjolaine; ainsi, les pièces empruntées dautrui, lauteur les
transformera et confondra pour en faire un ouvrage tout sien".

Nascido quando o criador de Iracema despedia os últimos, bruxuleantes lampejos do seu talento, e quando a estrofe condoreira de Castro Alves reboava ainda nas quebradas das nossas montanhas e nos grotões dos nossos vales; vivendo a sua meninice nesse "remoto e sossegado Capivari, - onde o tumulto do mundo lhe arrojava - últimas e trêmulas rugas de onda que
morrem aos pés de uma criança, na praia - algumas folhas do Rio e de São Paulo" ; era natural que Amadeu Amaral tivesse sugado, quase com o leite materno, o gosto e o amor do romantismo. E esse gosto jamais o abandonou de todo - embora combatido e recalcado, mais tarde, pela reflexão e pela convivência em meios mais apurados.
Resultante lógica desta primeira influência romântica é boa parte da obra poética de Amadeu Amaral, sobretudo no seu período inicial.

Urzes - o seu primeiro livro de versos - a lembrar "caminhos ásperos onde os pés, dilacerados por espinhos, vão deixando longas estrias de sangue" traduz fielmente o estado dalma langoroso e triste, essa espécie de melancolia deleitosa, que formava a talagarça preferida pelos românticos para bordarem os seus devaneios e gizarem as suas fantasias.

Ali vive e palpita um amor errante, flutuoso, panmorfo, que se declara e se expande em ardentes anseios sentimentais, repassados de misticismo, envoltos em brumas evanescentes de incenso, que povoam aquele perétuo sonhar acordado, em que alternam soluços e lágrimas, em que gemem desenganos e saudades... Que desfilam, em procissão, penitentes e vagarosos, por longos "claustros da Amargura" - silenciosos e frios, invadidos pela hera e adormentados ao monótono compasso do longínquo salmodiar de antífonas e litanias... Que rondam naqueles castelos sombrios, cavados de calabouços, varados de seteiras, recortados de ameias e aguçados de torreões e de vedetas, onde, pela calada da noite, vagam lendas brancas de Damas e recontos trágicos de Guerreiros...
Ali, o ideal do poeta é essa

Santa dum céu ignoto, céu de sonho,
ao qual toda sua alma se alevanta; e que ele,
Monge vagando em corredor escuro,
alheio aos ecos da comunidade,
mudo e grave e alquebrado, como um frade
que sonha um sonho religioso e puro,
segue por toda a parte, e doloridamente invoca:
Vem repousar, ó pomba forasteira,
desta alma escura no beiral tristonho!
Vem, ó minha esperança derradeira,
porque não fuja o derradeiro sonho!

E quando a visão radiosa, comovida e vencida pelo férvido apelo do delirante adorador, ao fim se deixa aproximar, não cantam os júbilos do epitalamio, mas, sobre a custosa conquista, sem sangue e sem pecado, já plange a elégia de uma saudade ...
E as palavras que me falaste
eram ondulas de água em doce veio...
Logo, porém, tu me sumiste em meio
das alegrias com que me embalaste.

Tu passaste por mim, anjo formoso,
à maneira dum sonho de criança,
leve e casto, sereno e luminoso.

Não lhe faltam, sequer, a recordação floral, as pétalas ressequidas e conservadas secretamente - relíquias inocentes de amores fugazes, que lá se foram, como as rosas de que elas mesmas se desfolharam um dia...
E são essas pobres pétalas descoradas e quebradiças que ditam versos maviosos como estes:

Revejo muita vez aquelas flores
que um dia tu me deste: o olhar magoado
prendo nas suas desmaiadas cores,
Vem-me à lembrança, então, todo o passado.

Assim aquele, que uma concha escuta,
imagina escutar
a ventania, os vagalhões em luta,
sobre um remoto e proceloso mar.

Outros tempos sobrevieram, porém, ressoantes dos primeiros rumores da campanha naturalista, ou realista, como alguns a designam. Ora, precisamente nessa época, um dos poetas mais conhecidos e mais apreciados entre nós era Lorenzo Stecchetti, notório pseudônimo de Olindo Guerrini, cujas composições também Amadeu Amaral, à semelhança do que, antes dele, já fizera Luiz Guimarães - não se dedignou de trasladar para o vernáculo.

Mas, ainda neste lance, a sua predileção foi recair exatamente sobre uma daquelas lindas miniaturas, com que o desgrenhado poeta bolonhês esmaltava, de quando em quando, as suas habituais produções realistas, como se fora por espírito de contraste, para o só efeito de imprimir maior realce às cruas dissecações a que, de sólito, o incitavam a maldade e a corrupção da época.
Vede, vós mesmos, neste único exemplo, a maravilhosa fidelidade da versão:

Quando, das folhas ao cair, tu fores
visitar minha cruz no Campo Santo,
hás de ir encontrá-la num recanto,
e em derredor terão nascido flores.
Colhe para o cabelo de ouro feito
essas flores nascidas do meu peito:
são os cantos que apenas ideei;
as palavras de amor que te não dei.

Em todo caso, com a leitura, que destarte se comprova assiduamente feita, de Stecchetti e de outros realistas contemporâneos, devia necessariamente infiltrar-se na obra de Amadeu, aliás tão desartificiosa e tão original, um sopro distante e mortiço daquele naturalismo forte e combativo que empolgou as classes literárias da Europa e da América, durante o último quartel do século findo.

Sopro leve que nem arrepia; aceno delicado que não ofende; referências ariscas, fugidias, - que, mal surdem, de logo se encolhem, pudicas e discretas - como no caso
...dessa reclusa Pálida, que arrasta
pela penumbra dum recolho escuro
a profunda amargura de ser casta;

ou como no episódio, mais frisante ainda, de "Pan e Siringe" duplamente - admirando e pelo pinturesco da intriga e pelo baleio do verso:

O barbaçudo Pan que, malicioso, finge
perlustrar, distraído, o campo de manhã,
contempla o corpo esvelto e branco de Siringe,
que ela, sim, distraída, anda pela rechã.

Seu olhar, que ele faz vago, como o da Esfinge,
de repente reluz de cupidez malsã,
e o Caprípede pula, a sonhar que já cinge
o alvo busto lunar da naiade... Mas Pan,

depois de se esfalfar na corrida exaustiva,
e quando vai tocar o ombro da fugitiva
e arrebatar o véu, que a cobre por seu mal,

os olhos arredonda e abre a boca de espanto,
vendo que alcança, em vez do bem que sonhou tanto,
a áspera ondulação de um verde caniçal.

Tais incidentes, entretanto, são simples debuxos, com lineamentos bem acentuados por certo, mas sem a precisão e as minudências que, possivelmente, comprometeriam o decoro e a nobreza do conjunto.
Mais do que ao influxo do realismo circundante, devem imputar-se ao intenso carinho que Amadeu tributava à verdade e à observação psicológica.

Não foi, aliás, Herriot quem, pretendeu, recentemente, descobrir nos austeros e majestosos períodos do divino Platão um que da ampla plasticidade que informava as túnicas das virgens helênicas e deixava adivinhar, nas dobras largas do panejamento leve e roçante, os contornos de carne rosada e púbere?...

Pois é só assim - conclui o literato-estadista - que se pode conceber e praticar uma estética irnpressiva e percuciente, em que o efeito da frase ressalte, não da dureza do traço, mas da habilidosa atenuação do termo.
"Ver bem não é ver tudo, mas ver o que os outros não vêem" - sentenciou, lapidarrnente, festejado romancista nordestino dos nossos dias.

E se nesta visão atenta, mas discreta, aguçada, mas eclética, é que consiste o naturalismo sadio, asseado e escorreito - Amadeu Amaral bem poderia matricular-se entre os discípulos dessa escola ...
Uma das mais nítidas e duradouras impressões que se colhe e se guarda dos seus trabalhos é, com efeito, a do vigor e da precisão das suas descrições -originais e verazes todas. É um paisagista consumado.

Neste sentido, e tão somente nele, foi que me não repugnou qualificá-lo de realista.
Realista, porque enxerga justo e descreve certo. Realista, porque possui olhar aquilino e... sabe o dicionário - paleta onicolor onde os escritores de escol hão de ir buscar as tintas cambiantes para a fiel representação gráfica das suas concepções.

A pena aprimorada de Amadeu, no entanto, nunca se abastardou na reprodução de umas tantas cenas grosseiras e cruas que afeiam e emprestam as páginas de outros literatos mais avançados, talvez, menos escrupulosos, com certeza.
O seu espírito, ao invés disso, só se expande e só se eleva na contemplação extasiante dos grandiosos quadros da nossa natureza e da nossa vida, para fazer dimanar deles, como seiva puríssima, lições alevantadas e fecundas de fé e de entusiasmo, de trabalho e de virtude.

Para comprová-lo, relede e admirai comigo esse tríptico soberbo que sobrenada e rebrilha na brancura alvinitente das Espumas:

A PALMEIRA E O RAIO

A Palmeira, entre a plebe hirsuta dos arbustos,
das árvores anãs, moitas de um verde baço,
ásperos taquarais, que o vento encurva e anima,
lá está calma e feliz: sem temores nem sustos,
- um só traço direito a fender o alto espaço
com um largo leque aberto a balançar-se em cima.

Quando o dia esmorece e o ocaso se esbraseia,
e uma cinza azul-negra enche as quebradas calmas,
sobre o outeiro, o perfil tinto de sol se enxerga,
solitário na turba imensa que o rodeia,
erguendo para o céu, no doce arfar das palmas,
o anseio de uma fé que não verga...


CREPÚSCULO SERTANEJO

Cai a noite. Um rubor fulge atrás da colina,
cuja sombra se alonga a pouco e pouco, enorme.
A velha árvore, além, verde nuvem, se inclina
poro o chão, balançando o vulto desconforme.

Sob a copa, uma forma em cinza se desmancha.
Um boi cansado, busca a fig1feira cansada;
muge e deita-se, em paz, numa violácea alfombra.

Muge. A fronde e o animal fazem uma só mancha;
o mugido e o rumor da fronde, a mesma zoada.
Manchas de som. Zoadas de cor. Silêncio. Sombra.




PRECE DA TARDE

Gênios mansos da tarde, escutai minha prece
Sinto-vos deslizar por estes ares... Pondes
um véu de seda azul no ombro nu da colina.
Entre as moitas, o rio, em silêncio, adormece.
E sobe, lento e lento, entre os cimos e as frondes,
da fadiga da terra o sonho da neblina.

Bolem na ondulação do campo, cujos termos
se vão perder ao longe em manchas de fumaça,
longas hesitações de água em açudes quietos.
E as mulheres, que vêm da fonte pelos ermos,
parecem respirar tranquilidade e graça,
erguendo no ar tranquilo os cântaros repletos.

Gênios da tarde azul, enchei-me de harmonia...
Doces, apaziguais o vale amplo e revolto.
Também minhalma é assim revolta: sossegai-a.
Permiti que o meu ser, na luz final do dia,
bóie e paire desfeito, ondeie calmo e solto,
num sereno esplendor de água brava que espraia.

Vós que comunicais a toda a natureza,
nesta lenta fusão das cores e das linhas,
do perfume e do som, tão longo êxtase mudo,
permiti que minha alma, ao jeito da represa,
que se abriu e inundou as regiões convizinhas,
se derrame, calada e extática, por tudo.

Por tudo se derrame, arrastada, envolvida
por esta alma abismal das coisas, ampla e bela,
e também se desmanche em sombra e em murmúrio
e sinta-se viver da imensa e obscura vida,
que por tudo circula e em tudo se revela,
e palpite com a fronde e soluce com o rio.

Passada esta hora leve, em que assim se repousa,
sem ilusão nem dor, numa serenidade
que surpreende e seduz o espírito contrito,
deixai-me carregar comigo alguma coisa
deste instante feliz de beleza e verdade,
de plenitude e paz, de sonho e de infinito.

Defendendo-se - com vivacidade que lhe não era habitual da eiva de parnasianismo de que o increpavarn, assim fala Amadeu Amaral no Elogio da Mediocridade:
"Eu não podia ter abandonado o parnasianismo, porque, na verdade, nunca fui parnasiano; e, se tal etiqueta me foi aposta, isso não se deve senão a esta profunda e irremediável flutuação de ideias em que vivemos, a respeito de escolas e correntes; em que teremos de viver, enquanto nossos movimentos literários continuarem a ser o que têm sido até hoje - simples "reflexos longínquos e tardios", nem sempre diretos sequer, de outros movimentos genuínos e originais, lá pela Europa". E vai mais longe: nega que jamais houvesse existido no Brasil um verdadeiro parnasianismo. "Pode-se hoje, como já ontem se teria podido, afirmar e demonstrar que no Brasil não ha parnasianismo, mas apenas reflexos fragmentários e incoerentes dessa coisa que só teve uma realidade, uma origem, uma explicação, uma definição, um papel no conjunto unido e seguido da vida literária francesa, na economia das atividades poéticas, em certo momento da história literária francesa".

Pois bem: em que pese a autoridade tão conspícua e, na hipótese, tão insuspeitável, eu, de mim para mim. atrevi-me a classificar Amadeu Amaral, de preferência, entre os mais lidimos e os mais apreciáveis sectários da corrente parnasiana, a qual - excusez du peu - aqui também teve voga e atuação notáveis ...

Pois não foi a esse manancial cristalino e refrigerante, a defluir serenamente, por entre carreiras de mármore, ensombrado de carvalhos e de loureiros, incontaminado das impurezas do percurso, que vieram abeberar-se, na sede insaciável de perfeição, o mestre insigne de Alcova Deserta e o genial cantor de Tarde? E não estou citando senão sumidades...
Pois, no valioso testemunho do próprio Amadeu, não foi essa a corrente reacionária contra os velhos processos, que veio preconizar e realizar, entre nós também, "a recortada precisão das idéias, o elevo forte da imagem, a cadência sacudida e vivaz do verso, o ressair pontiagudo da rima, - cada coisa bem limada, bem acabada, bem repolida e cada coisa no seu lugar?"

E todos esses predicados não se apontam, porventura, um a um, na formosa e castiça contextura dos versos de Amadeu?
Certo que sim, meus senhores. O mesmo cuidado e o mesmo capricho, o mesmo lavor e a mesma paciência daquele Benvenuto Cellini do verbo, que

Torce, aprimora, alteia, lima
a frase; e, enfim,
no verso de ouro engasta a rima
como rubim;

reaparecem, a viver e a estremecer, a fatigar-se e a exaurir-se no cinzel desse outro ourives primoroso que, no pórtico áureo de Névoas, pôde inscrever esta epígrafe rebrilhante:

Luta penosa e vã, esta em que vivo, imerso
na ambição de alcançar a frase que me exprima,
onde o meu pensamento esplenda claro e terso,
como o bago reluz pronto para a vindima.

Como cristalizar tanta emoção no verso?
Como o sonho encerrar nos limites da rima?
Bruma ondulante e azul, fumo que erra disperso,
não se pode plasmar, não ha mão que o comprima.

Não, eu não te darei a expressão que rebrilha
na rija nitidez de ua moeda sem uso,
acabado lavar de cunho e de serrilha:
só te posso ofertar estes versos nevoentos,
conchas em que ouvirás, indistinto e confuso,
um remoto tragar de vagas e de ventos.

Foram, de certa certeza, esse culto apaixonado da forma, esse meticuloso apuro no bom dizer vernáculo os fortes estímulos que levaram Amadeu Amaral a sondar os mistérios profundos da língua portuguesa; a explorar-lhe as imensas riquezas, ignoradas ou esquecidas, quer na sua maneira culta, quer no matiz popular - ao qual, a meúde, ele foi pedir abundantes subsídios de expressão rediviva, espontânea e variada.

As suas pacientes investigações, os seus acurados estudos sobre o dialeto e sobre o "folk-lore" caipiras, não obedecem somente a preocupações de ordem glotológica ou filológica; visam, por igual, escopos literários e artísticos - quais os de adentrar a mentalidade recôndita e esquiva dos nossos caboclos: de auscultar-lhe as íntimas pulsações; de extrair desse filão riquíssimo, que dorme escondido no "saber popular", os materiais capazes de contribuir para a sólida construção de uma legítima e bem definida literatura nacional.

Esse, sim; esse foi o grande sonho de Amadeu Amaral; essa a suprema aspiração de toda a sua carreira.
Ninguém, com efeito, mais do que ele sentia, lamentava e exprobrava a ausência, em nossas letras, de um "sentido social", de um "ideal coletivo" que viesse arrancar o Brasil a esse "beco de expectativas e de hesitações, onde estava sonolentamente parado, sem um estremecimento de desejo, de esperança ou de revolta".

E ansioso interrogava: "Como poderiam os poetas novos erguer vôos rasgados e luminosos, nesta atmosfera de nevoeiro e chuva?" Nesta atmosfera, onde - no dito incisivo de Agostinho de Campos - rolam nebulosas maleáveis e amorfas, em via de condensação, mas carecentes ainda daquela densidade interior que é dom dos astros acabados? E aos ouvidos atentos do artista e do patriota ecoavam, então, as palavras candentes com que Blanco Fombona ferreteava a mentalidade sul-americana: "As nossas almas parecem-se com as almas dos outros povos, com as dos povos cujos livros lemos. Não temos raça espiritual, não somos homens deste ou daquele país; somos homens de livros, espíritos sem geografia, poetas sem pátria, autores sem família natural e precisa, inteligências sem órbita e sem casta. O nosso eu é artificial. Ao nosso cérebro não chega, para o regar, o sangue do nosso coração. Ou será, talvez, que o nosso coração não tem sangue, mas só tinta - a tinta dos livros que lemos!"
Contra esta endemia que desfibra e corrói; contra esta degenerescência que aniquila e mata - urgia bradar, lutar, vencer...

Em conseguinte, que fugíssemos e refugíssemos à mediocridade ralaça e furta-cor da imitação sistemática. E que, sem renegar "as normas serenas e as formas regulares" do Belo universal, fossemos brasileiros, bem brasileiros. "Brasileiros com toda a conformação, todos os defeitos, todas as qualidades, todas as manias, todas as virtudes, todas as heranças e tendências conscientes e inconscientes, que um meio e uma naciona1idade imprimem nas mais profundas entranhas das almas nativas, sujeitas, por submissão, ou sem ela, às contingências da vida que se processa, independente quand même, dentro das fronteiras de um país, geográfica, política e moralmente definido".

Daí, dessa típica concepção nacionalista - tão sinceramente esposada e tão valentemente propugnada - derivou a marcada preferência de Amadeu pelos temas genuinamente brasileiros - aspectos naturais ou motivos emocionais peculiares à nossa terra e à nossa gente.

Ilustram e comprovam essa predileção - além de múltiplas e frisantes passagens de sua obra de poeta e de prosador - a erudita conferência sobre a "Poesia da Viola" e, notadamente, as duas preciosas monografias sobre o Dialeto caipira, e sobre o Folk-lore Caipira.

Mesmo sob este ponto de vista, porventura restrito demais para o feitio do seu talento e para a complexidade da sua produção, Amadeu Amaral conseguiu afirmar-se como autêntico e indiscutível poeta nacional. Poeta no sentido nobre da palavra. Poeta na acepção clássica de vate e de profeta, de bardo e de animador. Poeta que tem a consciência e quer a sumir a responsabilidade da sua vocação quase sobrenatural, no perpétuo evolver das coletividades humanas.

Donde, a sua revolta insopitada contra o preconceito corriqueiro e pejorativo com que muita gente intenta insular, num duplo cerco de zombaria e de menosprezo, a poesia e os poetas, erigindo-os "em cabeças de turco da retórica nacional e apontando-os como um obstáculo tremendo à penetração dos hábitos salutares de ordem, de disciplina e de trabalho, à solução sistemática dos nossos problemas econômicos, ao êxito do saneamento rural e da guerra contra o analfabetismo".

E linhas adiante acrescentava: "É moda no Brasil, moda velha, mas sempre moda, falar mal dos poetas. O pais está, naturalmente, cheio de maus lavradores, de maus cidadãos, de péssimos políticos, de detestáveis músicos, de desastrados pintores; mas só os maus poetas, e mesmo os que não são maus, bolem com os nervos de toda gente".
Porque essa prevenção contra os poetas, quando já "era acabado o tempo do poeta pedinte, do poeta protegido e do poeta madraço?"

Porque essa hostilidade contra a poesia, quando ela já deixara de ser "um salvo-conduto para a malandrice e se tornara um meio de vida, uma sobrecarga de trabalho com que os poetas se oneravam para dar emprego ao excesso de sua atividade mental ?"
E o veemente protesto clama, exalta-se e inflama-se em arroubos de entusiasmo nesta objurgatória de soberba eloquência:
"A poesia é a florescência radiosa e divina da espiritualidade. Tem a sua razão de ser na sua própria existência de produto humano. E vária, profunda, contraditória e enigmática como a própria vida. Resume em si todos os encantos, desde os encantos mais subtis e fugitivos dos sentidos até os encantos ásperos e sangrentos da luta. É vôo de pássaro e é relâmpago; é luar e é oceano; é suspiro e é trovão; é aragem perfumosa e é vendaval destruidor. Derrama em torno de si as mais suaves consolações, bálsamos de rosas e de poeira de estrelas. Ampara os oprimidos. Anima Os fracos. Flagela os tiranos. Embala as criancinhas no berço. Estimula a circulação das idéias. Amansa os instintos. Antecipa os cautelosos passos da ciência.

Embeleza a vida. Rasga, no prosaísmo caliginoso da existência luminosas abertas para o ideal. É ao fremente ressoar da sua lira eterna que as gerações se encaminham para a Canaã das esperanças humanas. E quando se desfazem e morrem as nações, quando tudo que se engrandecia e orgulhava desapareceu para sempre, é ainda ela, a excelsa Poesia, que recolhe e guarda a alma do povo extinto na ambula doirada dos seus poemas".

Assim, em verdade, se define e se revela a concepção superior que Amadeu formou da arte divina, à qual de todo em todo se devotou, em face da injustiça ou da indiferença com que era maltratada ou amesquinhada por esse profanum vulgus, tradicional e inveteradamente infenso aos homens de espírito e que, por isso mesmo, já de tempos imemoriais, incorrera no anátema vingador de Horácio...

Do estranho, do eterno contraste entre as duras realidades ambientes e o mundo ideal do intelecto e do coração derivou, porventura, o sentido geral de melancolia e de saudade, de suave e flutuante tristeza que reçuma e se difunde não só da poesia, como da própria compostura individual de Amadeu, e que muitos - erradamente a meu ver - levaram à conta de orgulho, de ceticismo ou de pessimismo.

Nada disto. Se dos versos de Amadeu, a espaços, promanam lágrimas e abrolham desilusões, umas e outras se me afiguram humanas, naturais -acidentes, por assim dizer, espontâneos e inevitáveis na vida ou no sentimento que as ocasiona.
Não imploram, nem maldizem. Não recriminam, nem blasfemam. Não descrêem, nem desertam. Não suscitam dúvidas lancinantes que desalentem. Não aconselham conformidades preguiçosas que enlanguesçam. Não comportam resignações abúlicas que paralisem.

Ao contrário: mesmo nos lances mais aflitivos, quando a canseira vem; quando o desânimo cresce; quando o sofrimento avulta, culmina e quer estalar no desespero, - surge e triunfa sempre um pensamento alto, sadio e generoso que nos compele para a frente e nos aponta, no empolgante tremular de uma
bandeira de combate e de vitória, por entre as incertezas, as contradições, as misérias e as crueldades da vida, as belezas eternamente sedutoras do Ideal!
Amadeu fala, então...

Ao triste, ele segreda:

Põe os olhos além. E na bruta aspereza
desta paisagem má - ruínas e escuridão -
sê um traço de paz, de sonho e de pureza.
Sentirás dilatar-te um dia o coração,
como a enchente a subir por trás de uma represa,
uma onda triunfal de amor e de perdão.

Ao sofredor, ele aconselha:

Guarda essa dor contigo...
Guarda o sonho, com que por não chorar te embriagas,
e humilde como Job volve esse olhar tristonho
a mais altas regiões, a mais serenas plagas.

Ao fadigado, ele encoraja:

Além, além alveja alegre e mansa
a aldeiola nativa da Esperança.
Ao indiferente, ele exora:

... Põe-te em comunhão, no entusiasmo que abrasa,
com a Beleza, esplendor da vida e do universo,
com a poesia, os heróis, os abismos e os astros.



Ao abandonado, ele consola:

A solidão se torna o mais seguro abrigo,
o refúgio mais certo,
onde a alma pode, enfim, encontrar-se consigo
e rever-se de perto,
e achar dentro em si mesma a desejada cura
desse mal, dessa dor, dessa torva loucura,
e torná-la sadia.

Ao ambicioso, ele admoesta:

Nem ouro nem poder, nem gratidões, nem glória:
nada vale o viver pairando sobre o abismo
e a graça de morrer antes que morra o sonho.

Ao moço, ele concita:

...Vive e luta, anela e vibra: Adiante!
Vive, como um falcão de olhar duro e profundo
vive amando o esplendor, a altura, a imensidade.
Avança, seja o sol resplandecente ou parco ;
e se a meta surgir, algum dia; a teus olhos,
impele-a para além, à proporção que avanças.


Mas o estigma mais profundo do feitio interior de Amadeu, a linha predominante da sua maneira artística reside, sem dúvida possível, na Bondade - nessa extrema e obsidente bondade que - na palavra magnífica de Guilherme de Almeida - constitui a forma inteligente da Beleza e, inexaurível, escorre ela sua vida de resignação como da sua obra de pensamento, para tudo e para todos.
Para a terra e para os céus. Para as flores e para os pássaros. Para todos os fracos, para todos os humildes e para todos os sofredores. Nem só para a doce velhinha que, "em meio de uma prece adormeceu sorrindo" e a quem o Poeta saúda, qual Anjo da Anunciada:

Bendita, sejas tu, santa amorável,
branco lótus de pútrida lagoa,
que conseguiste a glória incomparável
de ser pura e ser boa;

- como até para os maus, para essas míseras criaturas que o Destino marcou com o selo do infortúnio e com a tara do crime. Porque, excogita ele,

... há requintes de amor e de nobreza,
florindo como a lei da natureza,
na alma triste e revolta dos ladrões.

E esta mesma nota grandiosa de compaixão e de misericórdia freme, sobreleva e domina na magistral sinfonia de cor e de luz, de singeleza e de graça, de meiguice e de emoção, - reproduzida, como se fora em filme animado e sonoro - na admirável cena evangélica de "Jesus entre as crianças":

Jesus repousa sentado
sobre a grossa raiz de uma figueira velha.
Como a árvore na luz do ocaso ensanguentado,
está quedo e sombrio. Ao som leve da aragem,
seu esquecido olhar, onde se espelha
a dolência do sonho e da meditação,
vaga, sem nada ver, na sombra
da folhagem,
sobre a areia do chão.
Pedro, a um lado, contempla a face do Rabino.
Não fala; quer falar, mas não sabe que diga;
Receia interromper com uma palavra rude
o sereno esplendor do alto sonho divino ...


É, pois, com uma alegria prazenteira
que vê, além, no côncavo do vale,
vir uma ronda extensa de crianças,
como flórea guirlanda desnastrada,
pondo na asa do vento ansiada e rouca
o estrépito jovial dos cantos e das danças.
Faz menção de chamá-las, mas recua.
Olha para Jesus, que não vê nada,
e, carrancudo, leva o dedo à boca,
onde um resto de riso ainda flutua.
Mas o Rabino desperta
dessa meditação longa e soturna,
e um clarão de alegria o rosto lhe ilumina,
como um raio de sol bate o cêrro nevoento
ainda banhado da algidez noturna.
Fala, acena, sorri com a alma tão descoberta,
com a voz tão meiga, tão cristalina,
tão infantil no acento da ternura,
que o alacre bando para, hesitante, um momento,
avizinha-se enfim do estrangeiro que o chama
e cujo aspecto já o não assombra.

Jesus a todos fala com desvelos,
envolve-os numa nuvem de carinhos,
A este, prende-lhe as mãos nas suas mãos; estreita
aquele sob um braço, outro sob outro braço;
alisa-lhes os cabelos,
como quem amimasse passarinhos.
E o seu sorriso bom suaviza o espaço.
Mas há nessa efusão de ternura perfeita,
- sombras que as rugas da água fazem na água -
algo de um inefável desconforto,
de uma secreta mágoa,

Por fim Jesus, de novo meio absorto,
pegando as mãos de um pequenino louro,
cuja cabeça brilha, cujos olhos
brilham como cisternas de água clara,
depõe-lhe um beijo na madeixa de ouro...

Pedro põe-se a pensar que esse infante ditoso,
radiante de beleza e radiante de encanto,
assim acariciado pelo Cristo,
que o envolve num olhar tão longo e veludoso,
será de certo, no futuro, um santo,
é um querubim, talvez que se encarnasse.
Jesus larga, porém, o infante que se esquiva,
Levando a mão à face
volta à postura primitiva,
curvado para o chão, o olhar todo encoberto.
Pedro não se contém: Mestre aquela criança...
- Pedro, torna Jesus, como num livro aberto
li todo o seu futuro.
- Um futuro de paz e bem aventurança?....
(Jesus Cristo, sorri melancolicamente).
Diz-me, então, Senhor, eu te conjuro:
será um anjo, talvez, que nasce entre este povo?
Que grandeza reserva o céu a este inocente?
Será profeta? Será rei?....
- Sera ladrão...
diz o Rabino, o olhar mergulhado de novo
na sombra que se alonga e que oscila no chão.

Onde, porém, a bondade de Amadeu encontra a sua mais límpida e mais elevada concretização é em Lâmpada Antiga.
Que é, afinal, Lâmpada Antiga?
É o regorjeio manso, descuidoso, em surdina, do sabiá solitário, pousado no galho amigo, embalando, ao cair lento da tarde triste, a ninhada friorenta e pipilante. é o canto que o poeta canta para si mesmo. O canto da paz, o canto do amor, o canto da felicidade: - da felicidade, do amor e da paz do lar.

Nesse codicilo está lavrado o testamento familiar do Esposo e do Pai - modelares que um e outro foram. É a folha de partilhas de um patrimônio inestimável de lições e de bênçãos - longamente, persistentemente, avaramente acumulado. É a cartilha que os Filhos devem aprender. É o livro de Horas que a Família deve rezar...
Mas aqui - objeta o próprio autor - "não há poesia; há verso, ou, apenas, frases métricas".

E bem pode acontecer que esse sumário e severo auto-julgamento se confirme no tribunal solene da técnica crítica. Não, porém, perante mim que, repito, não sou poeta, nem crítico. Não perante mim que, de poesia, não sei analisá-la, senão e tão somente senti-la. E confesso-me, neste capítulo, rendido, sem reserva, ao argumento desse malicioso e quase satânico Anatole France: o reino da poesia assemelha-se ao reino do céu. Só podem entrar nele os simples de coração. O sentimento, e não o sistema, é que lhe abre as portas...

Eis aí o segredo que permitiu a Amadeu Amaral tirar das cenas íntimas e dos episódios mais singelos de sua recatada vida doméstica, motivos poéticos de encantador e inexcedível lirismo:

Ave canora, lépida Maria;
Ziza, serena flor do meu rosal;
Yola, ânfora de graça e de alegria;
Dedéu, meu bom rapaz, doce e leal;
por vós descubro em mim nova poesia,
um senso religioso, amplo e jovial;
e, árvore, canto em vós, ó romaria,
que outra não vejo pelo mundo igual.

Na cadeia ininterrupta da vida, na qual o materialista enxerga simplesmente a continuação necessária e fatídica da espécie; o Poeta descobre, ao invés, a lei sempiterna e incoercíve1 do amor:

Amai, pois, Pai e Mãe a dúplice haste
que vos sustenta e sustentais, e ainda
os velhos troncos de que fomos flor.

Assim nós amaremos sem contraste
a vossa floração - e será infinda
esta corrente secular de amor.

Ao império irrecusável desta lei, as vozes do Vate assumem tonalidades bíblicas, para pregar - também ele - o mandamento máximo do Evangelho:
Ora, porém, vos digo " a toda gente
amai:
Amai ao vosso próximo. Carrega,
como nós, a paixão, víbora cega:
filho e escravo da dor, é nosso irmão.

E o círculo amorável progride avança, alarga-se mais e mais até abranger, no amplexo imenso das suas ondulações lustrais, a Humanidade universal:

Amai a Humanidade, a silva inteira,
hordas, santos, escravos, capitães.
Vede: há mais de uma esplêndida clareira;
a força dos Heróis, a alma das Mais ...

Só pelo amor a triste humanidade
(se algum dia tiver de se remir)
redimida será...

Assim, num crescendo majestoso, à lei do Amor sucede a lei da Humanidade. A esta, a lei da Paciência. A esta, a lei da Energia. E a esta, enfim, a lei da Ascensão, - tope altíssimo dessa prodigiosa escada de Jacob, que remata e culmina "numa serenidade sem igual"...
Então,

Vendo lá do alto o formigante abisso,
onde se torce o turbilhão terreal,
vereis que ai se apura o bem castiço,
como aí se empeçonha todo o mal,

E amareis em conjunto a Selva escura...
Dela nos vem, com a mágoa e a tortura,
quanto de bom trazeis nos corações.

Amadeu Amara1 foi jornalista.
Militou na imprensa, desde os primeiros anos da sua mocidade até os derradeiros dias da sua carreira.
Ali, foi que a sua inteligência se formou e se desenvolveu; que a sua instrução se completou e se aprimorou; que a sua pena se apurou, enrijou e se adestrou.

Colaborando sempre e quase diàriamente no grande jornalismo desta e da Capital Federal, e nomeadamente no "Correio Paulistano ", no "Estado de São Paulo" e na "Gazeta de Notícias", versou com brilho inconfundível assuntos de letras e de arte; debateu, com elevação e proficiência notáveis, as questões políticas e sociais que os acontecimentos chamavam à ordem do
dia.

Por isso mesmo, teve de sustentar polêmicas ardorosas, a
lugares apaixonados. Mas nunca quebrou ou, sequer, desviou o aprumo impecável das suas atitudes altivas e cavalheirescas. Jamais amesquinhou, injuriou ou difamou o adversário. A sua pena nunca se degradou na mofina, infamou-se na calúnia ou acumpliciou-se no malefício. Nunca transigiu com os amigos, mas também nunca capitulou com os Potentados.

Porque Amadeu Amaral - sempre o mesmo, coerente sempre com o seu feitio e com o seu ideal, queria que a imprensa fosse o que ela realmente devera ser: uma verdadeira magistratura intelectual - alta, serena e íntegra; sem rancores e sem prevenções; sem interesses subalternos e sem ambições inconfessáveis; sem suborno e sem subserviência.
E foi dentro destes moldes que ele compreendeu e praticou o seu dever de jornalista.
Dizem que também foi político...

Teria ele esquecido, momentaneamente que fosse, a prudente advertência de Jean Moréas: un artiste ne doit jamais faire de la politique, vu, que rien nexiste en dehors de lart?

É possível. De minha parte, porém, asseguro-vos que nunca o encontrei nessas paragens ingratas e descampadas, varridas de ventos e de tempestades, em que, por meu mal, sou vaqueano.

Se por essas catingas ásperas e esmarridas, algum dia, ele viandou - foi de vereda, abstrato, quase displicente e - por defender-se do espinho e do pó da estrada - embuçado todo numa túnica ideal de sonhos alvejante.

Se por essas planícies requeimadas ele passou... passou a passo lesto, na passagem célere e distante de pássaro das alturas que perpassa rumo da cordilheira, triste e só sem fazer nenhum mal ninguém.

Nem mesmo, como tantos outros, à sua própria Pátria...
Por tudo isto, um outro poeta houve - e dos melhores e dos mais queridos - que, excedendo-se, talvez, na licença que a trovadores e a pintores classicamente se confere, se arrogou prerrogativas pontifícias e... canonizou o confrade e amigo. Proclamou-o "Santo Amadeu"...

Na linguagem eclesiástica, santo quer dizer herói. E herói Amadeu Amaral o foi, em verdade, pela sublimidade do seu engenho, pelo equilíbrio e pela harmonia da sua existência, pelo fulgor das suas virtudes, pela benemerência da sua obra artística e da sua atuação social.

Imagina Delteil, no mais moderno dos seus livros, que os homens são crianças grandes, às quais Deus, mestre-escola bravio e carrancudo, impõe, por castigo, a conjugação de um determinado verbo.

A uns, ele manda conjugar o verbo sonhar. A outros, trabalhar. A outros ainda, sofrer.
Mas de todos os mais sobrecarregados - a estes caberá o maior quinhão no dia da recompensa final - são aqueles a quem tocou conjugar o verbo amar...

Ora, dir-se-ia, meus senhores, que Amadeu Amaral, bom
até ao sacrifício, quis chamar a si, para alívio e gozo dos condiscípulos, a conjugação completa de todos estes verbos...

Ele sonhou. Ele trabalhou. Ele sofreu. Ele amou. Mas sobretudo amou. Amou a sua Arte. Amou o seu Lar. Amou a sua Pátria. Nesta trilogia de Amor é que vive a sua obra e viverá para sempre a sua Glória ...

Mas esta Glória é tão grande; é tão vasta e tão intensa a claridade que em torno ela derrama, a flux, que o mais tênue e o mais esbatido dos seus raios, ao desprender-se do foco refulgente e antes de diluir-se, impa1pável e despercebido, na diáfana serenidade do éter infinitamente azul, desgarrou... e, Iene e benfazejo como o próprio Nume tutelar donde partira, veio esmaiar sobre a cabeça fatigada e sonolenta do mais remisso - porque mais tardio - dos seus devotos,

Ao seu lume e ao seu calor, senti-me acordar... Levantei-me. Vim... Vim, na confusão que ainda me conturba o ânimo,
no deslumbramento que ainda me cega os olhos - guiado pela mão indefectivelmente amiga de Veiga Miranda, alto e generoso embaixador da vossa soberana munificência.

E cheguei. Vou sentar-me ao vosso convívio. Quero participar da comunhão substancial do vosso espírito - vínculo religioso, inquebrantável, que prende as nossas opiniões divergentes e unifica as nossas atividades dispersas.

Aqui, ao contato milagroso da vossa imortalidade e da imortalidade do nosso Instituto, convenço-me, senhores acadêmicos e confrades, de que, já agora, também eu não morrerei de todo, nem tão depressa. E - paupérrimo na penúria dos meus cabedais, mas imensamente rico na compósse dos vossos tesouros - prometo dar-vos o pouco que me resta, em troca do muito que me dais.


* Sessão realizada pela Academia Paulista de Letras, no Teatro Municipal, na noite de 23 de Setembro de 1930.
1 Guilherme de Almeida - "Discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras".
2 Olegário Mariano - "Discurso de recepção de Guilherme de Almeida, na Academia Brasileira de Letras".
3 E. M. de Vogué - "Sons les lauriers", 95.
4 Amadeu Amaral - "Discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras".
5 Magalhães Azeredo - "Discurso de recepção de Amadeu Amaral, na Academia Brasileira de Letras".
6 Ed. Herriot - "Sous lolivier", 209.
7 J. Américo de Almeida - "Bagaceira", prefácio.
8 R. Georgin - "Jean Moréas", 17.





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