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O DEDO OCULTO
Acadêmico: José de Souza Martins
O Brasil aceitou naturalmente a informação de que a perturbação nacional do processo democrático, que culminou com os surpreendentes resultados das eleições de outubro de 2018, tivesse sido decidida pela intervenção das redes sociais na formação da opinião eleitoral.

O Brasil aceitou naturalmente a informação de que a perturbação nacional do processo democrático, que culminou com os surpreendentes resultados das eleições de outubro de 2018, tivesse sido decidida pela intervenção das redes sociais na formação da opinião eleitoral.
Um único dedo, de uma única mão, o dedo indicador das digitações, armou a subversão política da frágil República e colocou no desvio nosso destino como povo e nação. Pelo fato elementar de que a mudança resultante passou a ser expressão de uma vontade única, a de um pequeno grupo de pessoas que agem como uma só e personificam uma só. A que resulta de caprichos ideológicos e sectários e deformações de uma mente autoritária, antipolítica, que trata o povo e a democracia como estorvos.
A força subversiva do dedo antidemocrático refabrica o país, relativiza a força legítima das instituições políticas, o modo da interferência popular no traçado do nosso destino, reformula direitos políticos, cria uma nova categoria de brasileiros, os de terceira classe, os que votam sem saber no que estão votando, os que já não são considerados sujeitos de direito e de vontade política.
O sociólogo e filósofo francês Henri Lefebvre, há algumas décadas, já havia chamado a atenção para o renascimento do caráter estamental, pré-moderno e précapitalista, na sociedade moderna. Nesse sentido, uma sociedade resultante de um novo peneiramento social, que exclui multidões das possibilidades que o capitalismo é capaz de criar e não é politicamente capaz de distribuir e realizar.
As pessoas já não são o que conseguem com seu esforço, o trabalho e o estudo, mas o que seu nascimento permite que sejam. Mesmo que não sejam nascimentos da incubadora hereditária de direitos feudais. Uma nova classe média conspira para ser o que não é nem nunca foi. Pauta-se pela suposição de que o oxigênio da democracia, do direito e da liberdade não existe em quantidade suficiente para assegurar a sobrevivência de todos com base no princípio da igualdade jurídica e da igualdade de direitos. Com isso, as novas gerações, a dos que estão chegando agora, estão condenadas a não ser o que poderiam ser e o que tem direito de ser. Esta já não é mais a sociedade da liberdade e da igualdade, mas tão somente a sociedade da iniquidade, a dos que quem pode mais chora menos.
Todos os dias, em todos os cantos, vemos e ouvimos afirmações e discursos sobre a naturalidade de que os jovens se conformem em ser aquilo para o que nasceram. É claro, como se ouviu num recente discurso de formatura no Rio Grande do Sul, que isso quer dizer que o oxigênio do saber e dos direitos deve ser racionado e reduzido a privilégio da minoria rica e dos estratos mais privilegiados da classe média. O resto é só resto.
Há algum tempo, a premiada jornalista e escritora inglesa Carole Jane Cadwalladr fez uma conferência sobre “O papel do Facebook no Brexit e a ameaça à democracia”. É assustador que um dos países mais politizados do mundo e com maior discernimento político tenha sido induzido a tomar uma decisão, provavelmente equivocada e irremediável, com base em subinformação, no desconhecimento e não no conhecimento. Tratou-se de um experimento político para colocar um cabresto na democracia e transformá-la numa ilusão digital. Violência que poderá disseminar-se por vários países e que já se dissemina por alguns, como o Brasil, citado pela conferencista. Aqui, operam variantes da mesma máquina de restrição e relativização da democracia.
Não sei se a subversão eleitoral de 2018 faz parte da mesma trama, mas faz parte do mesmo gênero de trama. Ou se os nativos da delinquência política fizeram uma inovação à brasileira para confinar no curral de uma nova sujeição a já pobre consciência política do povo brasileiro.
A conspiração digital tem à sua disposição várias portas e vários nomes, vários recursos, várias caras. Se o dedo indicador já serviu para moleque tirar meleca do nariz, agora é instrumento para colocar meleca na democracia brasileira. Gente sem mandato digita a esmo o que quer fazer de todos nós. Mesmo o dedo do governante quando digita as opiniões que quer impor ao país, é um dedo ilegal e inconstitucional. A mão presidencial tem que ser uma mão alfabetizada e politizada, capaz de escrever as coisas por extenso, legíveis e compreensíveis. Não é isso que estamos vendo.
Outras formas de atravessamento dos direitos do cidadão estão ativos no Brasil do dedo iníquo. Foi aqui legalizada a prática do “lobby”. O eleitorado elege senadores e deputados, mas os lobistas podem abordar os eleitos para seduzi-los em favor de suas causas particulares e, até, mesmo anticidadãs, fora da pauta de quem os elegeu.

Publicado dia 13 de março, no Valor Econômico [Suplemento Eu & Fim de Semana].





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